BARRIL NUCLEAR
Crise na Ucrânia pode ter efeitos muito mais devastadores do que outros conflitos recentes
Marcelo Zero (*)
A enorme truculência da política externa norte-americana só encontra paralelo em sua vasta e irremediável estupidez.
Com efeito, o Departamento de
Estado dos EUA parece uma entidade autista, incapaz de entender o mundo a
sua volta e de atuar racionalmente nele. Lembra, na realidade, um novo
Átila, pois, após a sua passagem, não nasce mais grama. Nem Estados
nacionais viáveis e democráticos. Os recentes exemplos do Afeganistão,
do Iraque e da Líbia demonstram claramente o quão ruinosas são essas
passagens, ou intervenções. Eles foram simplesmente implodidos como
nações.
No caso desses países,
tratava-se, de ponto de vista geopolítico, de barris de pólvora. As
intervenções dos EUA, secundadas pelos aliados europeus, causaram e
causam grande sofrimento à população e tiveram um efeito óbvio no
desenho geoestratégico regional. Contudo, não tiveram grande repercussão
no equilíbrio geral da ordem global.
A Ucrânia, no entanto, é outra
história. Uma história completamente diferente. Ela é um barril nuclear,
que pode lançar o mundo numa segunda Guerra Fria ou, no cenário mais
extremo, numa guerra tout court de consequências imprevisíveis.
Entretanto, esse barril que
ameaça o mundo não surgiu de decisões intempestivas. De fato, ao
contrário do que se possa pensar, o recente conflito na Ucrânia não é
fruto de fatores aleatórios e incontroláveis, ou de manobras de
curto-prazo, mas sim de uma geoestratégia concebida há quase 20 anos.
Em 1997, Zbigniew Brzezinski, scholar
extremamente influente, que fora assessor presidencial para assuntos de
segurança nacional no período de 1977 a 1981, publicou, na Foreign Affairs, um artigo intitulado Uma Geoestratégia para a Eurásia, que já antecipava algumas teses de seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Nesse artigo, ele argumenta que
a Eurásia é o eixo geoestratégico do mundo, já que esse
supercontinente, além concentrar boa parte do território e dos recursos
naturais do planeta, conecta os dois grandes polos econômicos do mundo
além dos EUA, a União Europeia e o Leste da Ásia. Para Brzezinski, é
vital que os EUA tenham o controle desse supercontinente, caso queiram
permanecer como a única e inconteste superpotência.
Pois bem, a geoestratégia
concebida por Brzezinski implicava várias ações de longo prazo
concomitantes. Em primeiro lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a
liderança dos EUA. Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a
celebração de um tratado de livre comércio transatlântico, como o
anunciado recentemente. Em segundo, o fortalecimento das novas nações
independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após o
colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até a
Ucrânia. Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de
Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de sua
política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus aliados.
Brzezinski argumentava que,
dada à fragilidade econômica e política da Rússia na época, a prioridade
do país seria o que ele chamava de “modernização”, e não o “exercício
fútil” de tentar reconquistar o seu status de “potência global”. Para
tanto, a Rússia deveria ser “encorajada” a se “engajar construtivamente”
na cooperação política e militar com a Europa. A Rússia deveria, assim,
direcionar a sua política externa para o Oeste, o continente europeu,
buscando os investimentos que a modernizariam.
Em outras palavras, Brzezinski
sugeria que a Rússia deveria se constituir numa aliada da Europa, sob a
liderança dos EUA. Brzezinski chegava ao ponto de propor um quase
desmembramento territorial da Rússia, com a constituição de três grandes
repúbicas autônomas: a República da Rússia Europeia, a República da
Sibéria e a República do Extremo Leste. Segundo Brzezinski, isso
permitiria o melhor aproveitamento dos recursos naturais e das
potencialidades econômicas locais, já que essa nova conformação
enfraqueceria o poder burocrático de Moscou. Além disso, essa nova
conformação tornaria a Rússia “menos suscetível” de uma nova
“mobilização imperial”.
Tal geoestratégia vem sendo
seguida, em maior ou menor grau, com avanços e recuos, pelos EUA. Com
efeito, a OTAN se expandiu bastante para o Leste europeu, em direção à
Rússia. Hoje em dia, Polônia, República Tcheca, República Eslovaca,
Hungria, Bulgária, Romênia, Letônia, Estônia e Lituânia já fazem parte
desse grande bloco militar, bem como da União Europeia. Ademais, a
aliança transatlântica, apesar de conflitos eventuais, especialmente com
a França, parece estar bem-consolidada, com a UE funcionando,
frequentemente, como disciplinado ator coadjuvante das pretensões
hegemônicas dos EUA.
Não obstante, a geoestratégia
concebida por Brzezinski repousa sobre um pressuposto falaz, qual seja, a
fragilidade econômica e política da Rússia.
De fato, quando Brzezinski
escreveu o mencionado artigo, a Rússia era apenas uma vaga sombra do que
fora nos tempos da União Soviética. Com o colapso da URSS, a economia
russa encolheu 76% em apenas 5 anos. O desemprego e a informalidade,
praticamente inexistentes no período do anterior, chegaram a níveis
estratosféricos e até a expectativa de vida dos habitantes encolheu
drasticamente. Criou-se uma espécie de “capitalismo mafioso”, que
produziu vários bilionários corruptos e uma vasta população de
deserdados e perdedores. E o novo Estado, extremamente fragilizado e
apoderado por interesses privados, perdeu a sua capacidade de
implementar políticas públicas consistentes, inclusive a de Defesa.
Naquela época, muitos achavam que a Rússia jamais se reergueria e
caminharia para desempenhar um papel totalmente secundário na ordem
mundial.
Mas Brzezinski e outros não
conseguiram prever duas coisas: a ascensão econômica dos preços do
petróleo e a ascensão política de Putin. Com o aumento dos preços do
petróleo e do gás, e sob a nova liderança de Putin, a Rússia se
reergueu. Não é mais a URSS, mas é um ator internacional de grande peso,
com boa musculatura econômica, política e, sobretudo, militar.
E esse novo ator tem uma
geoestratégia própria. É a da constituição de uma “União Euroasiática”,
voltada para a criação de um bloco econômico envolvendo Rússia,
Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, bem como à
integração com a China e outras potências econômicas do leste asiático.
Assim, a Rússia de Putin, ao invés de se voltar para o Ocidente, com a
integração subalterna à Europa prevista por Brzezinski, voltou-se para a
Ásia Central e o Oriente, procurando contrarrestar a crescente
influência dos EUA/UE no leste europeu.
Não era necessário ser nenhum
gênio para prever, nesse novo cenário que se delineou a partir do início
deste século, que a Rússia não iria tolerar mais novos avanços da OTAN,
especialmente na Ucrânia, berço cultural e histórico da nação russa. Em
2009, a França chegou a pedir que novas adesões à OTAN fossem
negociadas com Moscou, para evitar conflitos indesejáveis. Foi
praticamente ignorada.
Observe-se que, caso a Ucrânia
entre na OTAN, esse bloco poderá estacionar tropas e mísseis há pouco
mais de 500 quilômetros de Moscou. Para a Rússia, isso é simplesmente
intolerável. Manter a Ucrânia longe da OTAN é, para Moscou, uma “questão
existencial”.
Dentro desse contexto maior da
disputa geoestratégica entre Washington e Moscou, o conflito interno de
uma Ucrânia dividida e extremamente empobrecida ganha contornos
dramáticos. Esse país, que afundou economicamente desde a sua
independência, jamais conseguiu se reerguer, como a Rússia fez. Sua
economia é inteiramente dependente de Moscou, com quem tem uma pesada
dívida. Ademais, a Ucrânia depende também do gás e do petróleo fornecido
pela Rússia. Sem eles, a Ucrânia para. Putin, sabedor dessa estreita
dependência, tentou firmar um acordo pelo qual a Ucrânia entraria na
união aduaneira que Moscou já tem com o Cazaquistão e a Bielorússia. Em
troca, perdoaria grande parte da dívida ucraniana, assegurando também o
fornecimento de energia e novos investimentos. Desse modo, Putin tentou
atrair a Ucrânia para a União Euroasiática.
Tal proposta e a recusa de
Yanukovich de assinar o acordo com a União Europeia, que continha
draconianas condicionalidades de corte de gastos e outras medidas
econômicas de “ajustes” para o ingresso da Ucrânia no bloco europeu,
foram o suficiente para despertar a fúria dos ultranacionalistas
abrigados principalmente nas agrupações neonazistas do Svoboda e do
Pravvy Sektor, saudosas do tempo em que ucranianos do oeste cooperaram
com Hitler contra o “domínio soviético”.
Com o incentivo e o apoio dos
EUA, que estimularam a violência nas ruas de Kiev, Yanukovich, um
político pró-Rússia tão inepto e corrupto quanto os políticos
pró-Ocidente que o antecederam, foi deposto mediante uma reunião
parlamentar fajuta, que não contou com a presença do Partido das
Regiões, base política de Yanukovich. Em outras palavras: foi um golpe
mal-ajambrado.
Nesse episódio, a ação dos EUA
e, até certo ponto, da União Europeia chegou às raias da mais cínica
irresponsabilidade. Os EUA e a União Europeia podiam ter pressionado os
grupos mais exaltados a respeitarem o acordo feito em 21 de março, pelo
qual se criaria um governo de transição e seriam convocadas novas
eleições gerais para maio. Nesse quadro, haveria espaço para negociações
internas entre as forças políticas ucranianas, isolando os neonazistas e
evitando um aprofundamento da divisão do país, bem como para
negociações diplomáticas entre EUA, UE e Rússia, evitando um conflito
geopolítico maior.
Não obstante, o Departamento de
Estado, sôfrego pelo enfraquecimento da Rússia, parecer ter querido
apostar no tudo ou nada. O resultado é essa Ucrânia à beira da guerra
civil, profundamente dividida entre o oeste pró-Ocidente e o leste e sul
pró-Russo. O resultado é um governo ucraniano com participação
destacada de forças claramente nazistas e antissemitas, cuja primeira
medida foi a proibição do idioma russo como uma das línguas da Ucrânia.
O resultado é, também, a dura e
previsível resposta da Rússia, que começa apostar na independência da
Crimeia e, possivelmente, de outras regiões da Ucrânia de predominância
demográfica e idiomática russa. E não adianta nada os EUA falarem em
desrespeito à lei internacional, pois não têm nenhuma legitimidade para
usar esse argumento e, ademais, processos separatistas legitimados em
referendos dificilmente podem ser contestados. Questionar uma possível
independência da Crimeia seria a mesma coisa que questionar a possível e
próxima independência da Catalunha ou da Escócia.
Para complicar ainda mais a
situação dos EUA e da UE, a China já deixou claro de que lado está, e
ameaça, inclusive, usar do seu imenso poder de credor para retaliar os
EUA. Tal situação, fundamentada nas profundas transformações
geoeconômicas que o mundo sofreu nas últimas duas décadas, também não
foi prevista por Brzezinski e seus alienados seguidores dentro do
Departamento de Estado.
Enfim, o resultado é,
sobretudo, esse lamentável “barril nuclear”, criado pela cegueira de uma
geoestratégia irresponsável e distanciada da nova realidade da Rússia e
do mundo.
Além do futuro da Ucrânia, está
em jogo também o futuro do planeta. Ninguém vai conseguir lucrar nada
com esse conflito, que já ameaça a lenta e frágil recuperação da
economia mundial.
O novo Átila não se emenda.
(*) Marcelo Zero é formado em Ciências Sociais pela UnB e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores
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