As filhas e os filhos das vítimas da ditadura militar no Brasil

A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil de cair nas mãos de torturadores e da repressão. 

Milton Pomar

Arquivo do SNI

Quando Carlos Alexandre Azevedo, filho de Dermi Azevedo e Darcy Andozia, suicidou-se em fevereiro de 2013, e sua trágica história foi amplamente divulgada, muita gente se espantou ao saber que no Brasil, na década de 1970, crianças foram levadas para os locais (DOPS, DOI-CODI etc.) onde seu pai ou sua mãe (ou os dois) estava(m) sendo torturado(s), para assistirem o sofrimento e servirem de pressão adicional – a ameaça de também serem torturadas desmontava de vez os presos, que acabavam falando o que os criminosos queriam saber.

 
Milhares de militantes políticos de esquerda, em março de 1964, tinham filhas e filhos ainda pequenos. Vários, dentre os mais conhecidos, tinham também netos e netas. Quando ocorreu o golpe militar, de 31 para 1º de abril, essas milhares de crianças  tornaram-se alvo da repressão, e ingressaram em um mundo novo, de medo, fuga e perseguições – cheio de segredos sussurrados, senhas, codinomes, “ponto”, “aparelho”, “queda” e outras variáveis importantes, que constituíam a terminologia da clandestinidade, espécie de universo paralelo ao qual a maioria desses militantes e suas famílias submeteram-se para poder continuar vivendo e atuando no país.

Pouco depois do golpe, meu pai e outros militantes foram presos em Iaçu, interior da Bahia, e levados para um quartel do Exército em Salvador, no bairro de Amaralina. Minha mãe conseguiu um habeas-corpus para ele, superando enormes dificuldades, e algum tempo depois nos reencontramos. Eu estava com cinco anos de idade, e havíamos regressado (minha mãe, meu irmão mais velho e eu) de Iaçu, na Bahia, para o Rio de Janeiro, pouco antes dos generais e coronéis derrubarem o presidente eleito João Goulart.

Vivemos daí em diante para lá e para cá, em casas de parentes e amigos, nunca muito tempo em lugar nenhum. Já havíamos passado pelo Rio, Minas, Bahia e São Paulo, quando, em 1966, fomos morar em Goiânia. Foi lá que fiquei sabendo por meus pais que teria um novo nome: Milton, bem mais adequado aos tempos de intensa perseguição que sofríamos, do que o meu nome original (Vladimir).

Mudaram nossos nomes e sobrenomes e locais de nascimento, e assim passei a ser natural de Goiânia, e, aos sete anos de idade, totalmente clandestino.

A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil. Quem já leu a respeito do que os militares argentinos fizeram durante a ditadura de 1976/82 com as crianças (inclusive centenas de bebês) e adolescentes, filhas e filhos de militantes políticos, presos, torturados, assassinados e/ou desaparecidos, pode estimar o que teria sido de nós, se não estivéssemos clandestinos.

Os militares argentinos tinham como lema matar os comunistas, seus parentes e amigos.

(Ler sobre os feitos da repressão promovida pelas ditaduras militares no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Perú, ... é traumatizante, tal a covardia e crueldade dos torturadores e assassinos – todos servidores públicos, com salários e previdência pagos pelo Estado – e a quantidade de casos de sofrimentos inacreditáveis de militantes políticos de esquerda.)

Quando meu pai foi preso pela segunda vez, em dezembro de 1976, meu avô Pedro Pomar foi assassinado, em episódio (conhecido como Massacre na Lapa) no qual morreu também Ângelo Arroyo, dirigente operário e líder da guerrilha do Araguaia. Durante os interrogatórios (e as torturas) a que meu pai foi submetido, uma das questões nas quais os militares insistiam era justamente onde nós (os filhos) estávamos.

Fiquei um ano sem vê-lo, e quando consegui visitá-lo, em dezembro de 1977, no presídio do Barro Branco, em São Paulo, onde ficavam presos os militantes políticos de esquerda julgados pela ditadura militar, eu estava às vésperas de cumprir serviço militar obrigatório. No início de janeiro de 1978, ingressei como recruta em um quartel do Exército, no qual permaneci (clandestino...) até o início de 1979.

Quando veio a Anistia, em 1979, algumas pessoas voltaram à identidade original, mas a maioria não acreditou que a ditadura acabara, e preferiu aguardar até considerar seguro sair da clandestinidade – eu inclusive, que defini como critério na época somente acreditar no fim da ditadura quando votasse para presidente da República, algo que demorou dez anos para acontecer. Em 1990, entrei com ação judicial para recuperar a minha identidade. Recebi a sentença favorável somente em 1993, e assim, 27 anos de clandestinidade depois, voltei a utilizar a minha certidão de nascimento verdadeira.

Mas muitos descendentes das milhares de vítimas da ditadura brasileira não conseguiram recuperar suas identidades; por receio, dificuldade de provar a clandestinidade, falta de recursos para a ação judicial, e até por não acreditarem que conseguiriam.

Todos(as) que sobrevivemos à ditadura militar de 1964/1985, militantes e descendentes, convivemos até hoje com os traumas adquiridos naquela época, independentemente de terem sofrido torturas físicas. Foram tantas as pessoas conhecidas atingidas, presas, torturadas, exiladas, assassinadas e desaparecidas, que a vida continuou, mas marcada pela ditadura militar. E a vida, naqueles longos 21 anos, foi uma tensão permanente. Viver sob terror de Estado, por tanto tempo, é algo realmente difícil de suportar e de descrever.

Adquire-se hábitos de segurança que o tempo não desfaz, de sempre olhar à sua volta, para avaliar quem está em qualquer ambiente, prestar atenção a todas as pessoas em qualquer ambiente, a prestar atenção, quando voltava para casa, se a luz da varanda estava acesa, ou em outro detalhe

 A propaganda permanente contra nós, estilo “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, perturbava, não era fácil ser criança e sentir-se criminoso, portador de um segredo perigoso etc. Além dela, havia também a propaganda anti-comunista boçal, disseminada entre a população, que a repetia com freqüência, obrigando-nos a manter-se em alerta total, para não despertar suspeitas. Alguém que fosse chamado de “melancia” (vermelho por dentro...), em alguns ambientes, corria o risco de ser detido e torturado, até provar que não era “vermelho”.

O estresse resultante daquela situação opressiva, certamente contribuiu para adoecer muitas mães, filhos e filhas, não diretamente envolvidas, mas de fato na linha de frente, se fossem pegas sofreriam muito – como ocorreu com centenas delas.

Muitos desses filhos e filhas nasceram durante a ditadura. Já nasceram clandestinos, sem ao menos saber que seu pai e sua mãe levavam uma vida “diferente” da dos vizinhos, e que seus parentes tinham outras identidades. Muitos(as) não possuem amigos(as) daquela época, tal a frequência com que mudavam de casa e escola, e a impossibilidade de contar a verdade e fornecer o novo endereço a tais amigos(as) ou namoradas(os).

Durante o período em que a ditadura espalhava cartazes de “procurados”, com dezenas de fotos de militantes políticos que ela acusava de “terroristas”, o terror de muitas dessas crianças era encontrar ali a foto de seu pai, mãe, avô ou avó.

Há o trauma de dezembro, mês preferido pela repressão para atacar quem tentava visitar suas famílias: muitos militantes foram capturados assim. E naquela época, capturados significava presos, torturados, mortos, desaparecidos. Por isso, o Natal sempre nos deixa tristes, tanto tempo depois.

Essas questões voltaram agora com força, dada a proximidade dos 50 anos do golpe militar no Brasil. É emocionante ver nas redes sociais as fotos de muitas das vítimas da ditadura militar, algumas das quais conhecemos, nos anos 1960/70. Dói lembrar que há muitas vítimas que permanecem anônimas, ou das quais muito pouco se sabe. Pessoas corajosas, determinadas, generosas, que enfrentaram a ditadura militar como puderam, e por isso não estão aqui conosco, vivenciando o país muito melhor que nos legaram. Para pessoas como eles e elas, o poeta alemão Bertold Brecht  escreveu “Aos que virão depois de nós”, uma bela homenagem a quem tombou na luta por um mundo melhor.

Nós, os milhares de filhas, filhos, netos e netas desses(as) militantes, que sobrevivemos aos 21 anos de terror de Estado, e até hoje continuamos na batalha, apesar do sofrimento, dos traumas, e da saudade de nossos parentes, mortos e desaparecidos pela ditadura militar, não aceitamos a impunidade dos torturadores e assassinos.

A ditadura militar no Brasil foi cruel e covarde, como todas são, mas foi derrotada. E agora em 2014, coincidindo com os 50 anos do golpe militar, há de ser também a eleição do 4º mandato consecutivo das esquerdas na Presidência da República, e, por ironia da história, a reeleição de uma ex-presa política da ditadura, barbaramente torturada.

Adiante, que ainda há muito o que fazer para melhorarmos a vida do povo.




Créditos da foto: Arquivo do SNI

 

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