A última noite do verão

 Autor: Fernando Brito
verao
O  pacato cidadão está ali deitado, vendo uma tevê, aliviado pelo ventilador que é equipamento de sobrevivência neste calor escaldante, que termina hoje com uma bendita chuva que beija, afinal, o Rio de Janeiro, na última noite do verão.
Faz o que todos nós fazemos nas noites quentes e até o que não devíamos fazer: pende ali de sua mão o cigarrinho maldito e gostoso.
Descansa, depois de carregar o dia inteiro sei-lá- que-peso, no carrinho que os cariocas chamam de “burro sem rabo”, porque é o destino dos que não têm escola.
Mas descansa,  e vendo sua novela, ventilando seus suores, baforando sua fumaça.

Os pequenos confortos – a prancha de compensado feita de cama, a bateria dentro da geladeira de isopor, a antena da TV, a almofada que se é seu armário de farrapos – foram todos ele quem fez, provando que  se não tem rabo, burro é que não é.
A lona plástica que guarda para proteger seus pequenos tesouros ficou até agora sem serventia neste Saara  carioca. Mas está ali, que nosso descansado é homem precavido contra os azares e cioso do que tem.
Mesmo que não tenha quase nada.
Nem um amigo para conversar, nem uma mulher para repousar em seu ombro, nem uns meninos – que estão por aí, perdidos no mundo – para infernizar seu repouso.
Não é o único a viver assim: quantos de nós, bem postos na vida, também não vivemos neste serena solidão dos aflitos que já não gritam e já não choram?
E depois, marca o relógio quase dez horas, tempo de estar na cama, dia finito, não é hora de alteração.
Já não há nem mesmo os olhares de estranheza para perturbar a sua normalidade: um homem cansado que se deita ao vento mesquinho e quente do ventilador e se entorpece de imagem e fumaça para que no sono venha em paz.
Tomara que ele não se engane.
Tomara que não  o vejam os  olhos do  ”onde já se viu” , do “pode ser um ladrão”, do “que imundície!”…
Olhos miúdos, mas de olhares perigosos, que empurram os homens da ordem (ou os da desordem)  para “acabar com essa pouca vergonha”.
Porque é uma pouca-vergonha, reparem, ele tem uma televisão igual à das suas salas e ainda se dá ao luxo de refrescar-se em um ventilador!
Diz que está morrendo de fome, pede uns trocados, mas está no vício, com este cigarro.
Até umas cachaças deve tomar, o  desgraçado.
Aí, refestelado, em plena rua, um vagabundo.
Um criminoso, decerto, não sei onde isso vai parar…
Os jornais te deploram, as senhoras se enojam, os homens “bons” sacodem a cabeça, inconformados com sua presença.
Mas você  está aí.
Durma, meu amigo, com teus pequenos e ricos confortos, que a vida já foi pior.
Durma o sono vigilante que você dorme, sempre esperando que o enxotem, que o humilhem, que o tanjam como um vira-latas – logo você, tão cuidadoso, no teu carrinho limpo e arrumado.
Durma sem os pesadelos da miséria, da fome, do desprezo, da desesperança.
Durma com sonhos, que sonhos não podem te negar, tirar, roubar.
Amanhã teu carrinho vai estar cheio de garrafões de água mineral ou de um sofá que alguém mandou embora da casa.
Mas já não é verão  e talvez seja chuva e não só o suor o que escorra do seu rosto.
Está pesado o carrinho e seguirá pesado por sua vida inteira, não te iluda.
Mas você já sabe que é um homem, que tem direito a tua concha sobre rodas e a um pedacinho tosco do mundo que nela carrega, para descansar.

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