A Turquia está fora de controle
[*] Christopher de
Bellaigue, New York Review of Books,
vol. 61, n. 6 (ed. de 3/4/2014)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de:
1. The Rise of Turkey: The Twenty-First
Century’s First Muslim Power, Soner Cagaptay,
Potomac, 168 pp., $25.95
2. Gülen: The Ambiguous Politics of
Market Islam in Turkey and the World, Joshua D. Hendrick, New York
University Press, 276 pp., $49.00
3. I˙mamin Ordusu [The Imam’s Army], Ahmet Şık, 298 pp..
Entreouvido na tendinha do Rolha de Poço na Vila Vudu: Esse não é artigo sensacional. Mas,
ajuda a começar a entender a CONFUSÃO na Turquia, que o “jornalismo” brasileiro
só faz AUMENTAR, cada vez que finge que “noticia”, mas não noticia é porraniúma, nunca. O problema é que os “correspondentes”
das televisões, jornais e revistas do grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadão)
ignoram a Turquia – porque só fazem copiar o NYTimes, e o NYT ignora
a Turquia – na sequência, os “correspondentes” e “especialistas” subentrevistados pelos uiliamsvacas nas TVs ensinam a mesma ignorância-TOTAL aos infelizes
consumidores PAGANTES de canais fechados.
Então, o artigo abaixo é infinitamente
mais interessante que o BESTEIROL dos manholes & Co, aqueles panacas
udenistas uspeanos.
(E, aqui, tudo “de grátis”! Pense bem e
DESLIGUE OS JORNAIS das TVs!)
Dois
pilotos que pilotam juntos um avião começam a esmurrar-se na cabine. Um deles
ejeta membros da tripulação, que ele suspeita que apoiem seu rival; o outro
berra que seu copiloto nem é piloto, é ladrão. Nesse momento o avião começa a
girar descontrolado e perde altura rapidamente, enquanto os passageiros olham
em pânico.
Essas
linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can
Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para
apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em
quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça
desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.
As partes
em confronto são o Primeiro-Ministro, Recep Tayyip Erdoğan, 60 anos, e um
clérigo turco, Fethullah Gülen, 73 anos. Erdoğan lidera o partido que está no
governo, “Partido Justiça e Desenvolvimento” (tur. AKP), e trabalha na
agitação de Ankara, capital do país. Gülen é o pregador e didata moral mais
conhecido da Turquia. Vive em reclusão na Pennsylvania, ao que se sabe em
estado precário de saúde (sofre do coração). Gülen preside de modo pouco
formal, mas sem dúvida preside, um império de escolas, negócios e uma rede de
simpatizantes.
Esse
império é que Erdoğan agora chama de “um estado paralelo” ao que ele foi eleito
para governar; e está decidido a eliminá-lo. A disputa começou para valer em
dezembro passado e tem tido efeito extraordinariamente destrutivo. Muito dos
seguidores de Gülen trabalham dentro do governo e têm muito poder. Agora,
vastas partes do funcionalismo público foram evisceradas, grande parte da mídia
foi reduzida a porta-vozes de uma espécie de “revelação” politicamente motivada
e do “denuncismo” o mais tresloucado, e a economia está parando, depois de uma
década de forte crescimento. O milagre turco é passado.
O governo
do AKP de Erdoğan e o movimento de Gülen partilham uma ideologia de islamismo
modernizante, e embora as relações entre os dois já viessem se deteriorando há
algum tempo, antes da atual crise ainda era possível ser associado aos dois
grupos. A coexistência acabou repentinamente dia 17/12, quando mais de 50
figuras pró-AKP, entre as quais o presidente do banco estatal Halkbank;
um magnata da construção; e os filhos de três ministros do Gabinete foram
detidos para interrogatório por procuradores de justiça considerados homens de
Gülen.
Fethullah Gülen |
As prisões
foram executadas, ao que se sabe, por policiais gülenistas, e receberam muita atenção dos jornais e redes de
televisão, esses, também, com tendência semelhante pro-Gülen. Denúncias de que
os bem relacionados prisioneiros seriam culpados de suborno, contrabando e
outros malfeitos foram tuitadas e retuitadas num frenesi
condenatório-executório; o ataque pelos gülenistas,
de dentro do governo e também de fora dele, foi bem planejado. Descobriram-se
provas, entre as quais cerca de US$ 4,5 milhões escondidos em caixas de sapatos
na casa do principal executivo do banco Halkbank, além de indicações de
pagamentos feitos a ministros. Rapidamente se divulgou que uma segunda fase da
mesma investigação atingiria também o filho do Primeiro-Ministro.
A
velocidade e o vigor da reação de Erdoğan a esses eventos indicam que ele os
considerou como precursores de sua própria destruição. Imediatamente, começou a
varrer de sua própria entourage traidores potenciais ou nomes que lhe
parecessem comprometidos; em poucos dias substituiu metade do próprio Gabinete,
inclusive os ministros cujos filhos haviam sido presos para interrogatório. O
expurgo alcançou pontos longínquos do funcionalismo civil. Como parte da
campanha de Erdoğan contra a influência de Gülen, milhares de policiais foram
tirados dos respectivos postos, além de altos procuradores de justiça,
envolvidos no caso de corrupção e burocratas associados aos ministros
demitidos.
No início
de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas,
acusados de formarem “uma organização ilegal dentro do estado”. Erdoğan
suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses
de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera
concorrer, Erdogan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa,
uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o
primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por
vir.
Antes de o
confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes
dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as
ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo
modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan –
que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas,
contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo
entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário.
Nos seus
primeiros anos no cargo de Primeiro-Ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo
encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte
maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar
e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos
do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e
maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as
Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma Forças Armadas
que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos
eleitos.
Em todo
esse processo, o partido AKP esteve numa coalizão não oficial com
islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o
movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados,
patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de
negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen
pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia
eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula
deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a
vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas
prometiam fazer as coisas de outro modo.
Abdurrahman Dilipak |
Mas há
ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras
prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por
internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito.
(Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria
mais de 40 outros vídeos em circulação, todos “forjados”). Conversas gravadas
envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa
delas, Gülen é ouvido numa conversa em que se decidia que empresa turca
receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e
um de seus assessores discutem a probabilidade de três “amigos” (i.e., seus
seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os
bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya,
contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do
vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava
imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e
caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.
O conflito
assume agora tons absolutamente desbragados, e já é visível nos postos mais
altos. Erdoğan recusa-se a pronunciar o nome de Gülen em público, mas quando
fala de “falsos profetas, videntes e pseudos sábios vazios”, seu alvo é claro.
Num dos frequentes sermões que Gülen pronuncia de sua própria casa, e alcança
vastas audiências na Turquia graças a redes de televisão que o apoiam e à
Internet, o pregador exilado lançou uma maldição contra seus inimigos: “que
Deus consuma em fogo as casas deles, destrua os ninhos deles, quebre os acordos
entre eles”. Denúncias de vasta corrupção dentro do governo, muitas das quais
envolvendo contratos viciados para projetos de construção e violação de áreas
reservadas de zoneamento, são insistentemente repetidas pelos veículos de
imprensa-empresa gülenistas, tão insistentemente repetidas que acabam por já
serem vistas como verdade comprovada.
Dia 24/2,
gravações de conversas telefônicas entre o primeiro-ministro e seu filho Bilal,
nas quais pai e filho estariam combinando o modo de esconder dezenas de milhões
de euros, foram distribuídas por YouTube.
O primeiro-ministro declarou que as gravações eram forjadas, mas elas foram
ouvidas dois milhões de vezes em 24 horas imediatamente depois de postadas.
Ainda que os expurgos que Erdoğan promoveu no Judiciário e na Política
impliquem que não haverá processos nem, portanto, condenações (e a imunidade
parlamentar na Turquia proteja alguns dos aliados de Erdoğan), ainda assim é
difícil supor que o governo volte a recuperar a reputação de probidade de que
gozava antes.
O terreno
da disputa é tanto comercial quanto político. O governo acusou o Bank Asya de
afiliados de Gülen de ter comprado 2 bilhões (de liras turcas) em moeda
estrangeira pouco antes das operações policiais de dezembro passado – o que
implica dizer que os funcionários do banco teriam sido avisados com
antecedência sobre o que viria e da consequente queda do valor da lira turca. O
banco luta agora para deter uma corrida de saques, que fez o preço das ações
cair cerca de 46% entre 16/12 e 5/2. Até especialistas não gülenistas entendem
que o governo orquestrou a corrida ao banco, tentando arruinar o Bank Asya, sem
se preocupar com danos colaterais, tanto contra os pequenos correntistas como
contra todo o sistema bancário que a corrida fatalmente causaria. O capitalismo
turco é só muito tenuemente controlado pelo sistema jurídico-judiciário.
Recep Tayyip Erdoğan |
A imagem de
Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao
público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como
quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular,
não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas
com cassetetes, porretes bombas de gás e denúncias de um complô sinistro
orquestrado ‘do exterior’, mantido por um sinistro “lobby das taxas de
juros”, para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.
Quando diz
“lobby das taxas de juros”, Erdoğan fala de especuladores ocidentais
inescrupulosos – judeus, por implicação –, e os discursos dele despertam
antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos
bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império
antes do colapso, na Iª Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios
anos 1990s, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva
foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus
lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável,
beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.
Soner Cagaptay |
Esses
traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise.
Mesmo antes de 17/12, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a
ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca
começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão
passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das
prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na
taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas,
fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para
cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28/1, o Banco Central
aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.
A
resistência ideológica de Erdoğan, contra o aumento dos juros, custou muito
caro a empresas turcas. Nas palavras de Inan Demir, economista do Finansbank,
em Istambul:
Não havia outra saída, além de aumentar os
juros, ou haveria pânico em grande escala, mas deveriam ter sido aumentados
muito antes. Agora, as empresas turcas estão no pior dos mundos, com dificuldades
sempre crescentes para pagar, por causa da lira fraca; e com custos financeiros
sempre mais altos, por causa dos juros altos.
Em apenas
quatro meses, o Finansbank revisou a previsão de crescimento para 2014, de 3,7%
para 1,7% – depois de uma década de crescimento médio de mais de 5%. (...)
The Rise of
Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, novo
livro de Soner Cagaptay [discute a economia turca] e nada diz sobre o
movimento Gülen, exceto que organizou coruscante conferência internacional, da
qual o autor do livro participou, sobre “o papel de liderança da Turquia na
Primavera Árabe”.
De
importante, é que tal conferência seria hoje impensável, porque os Irmãos da
Fraternidade Muçulmana aliados de Erdoğan foram já expulsos do poder no Egito,
e toda a política deles para a Síria (que previa, erradamente, que seria fácil
derrubar o governo de Bashar al-Assad) já fracassou completamente. Cagaptay não
é, absolutamente, o único acadêmico que aceitou a hospitalidade do movimento
Gülen, que ele classifica como movimento “de prestígio”. O problema é que
Fethullah Gülen além de ser feito de “prestígio”, também é feito de muito
dinheiro.
Gülen: The
Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World foi
escrito por um sociólogo norte-americano, Joshua Hendrick, que trabalhou
durante sete meses como editor voluntário numa editora afiliada ao movimento
gülenista em Istambul. Eu, que passei recentemente alguns dias com gülenistas,
que me pareceram entusiasmados, radiantes, extremamente solícitos e
surpreendentes, de início, e, logo depois, cansativos e tediosos, só posso
admirar o tempo que Hendrick sobreviveu entre eles. Afinal, valeu a pena,
porque nos oferece um estudo detalhado de um movimento definido, se é que se
pode dizer assim, pela distorção, pela ocultação e pelo obscurecimento.
Fethullah
Gülen nega que comande qualquer tipo de movimento ou que mantenha qualquer
vínculo institucional com organizações que o reverenciam. Seus seguidores – já
estimados em cerca de 5 milhões – dizem que não formam rede; que são unidos
exclusivamente pelo respeito pelo Hocaefendi, o “estimado professor”, movidos
por sua visão de um Islã moderno e tolerante, que valoriza o conhecimento e o
progresso material, tanto quando a piedade e a caridade. Empresas que pertençam
ou sejam apoiadas por gülenistas não se identificam como tais, embora haja uma
associação, a Confederação Turca de Empresários e Industriais, cujos membros
não ocultam a admiração pelo líder. Por tudo isso, é difícil saber quantos bilhões
de dólares circulam nessa “comunidade”. O retrato de Gülen nunca desaparece das
paredes das mais de mil escolas privadas, em mais de 120 países, organizadas
por seus aderentes, ou das manchetes do jornal Zaman, também de
seguidores de Gülen – e o maior jornal da Turquia.
Joshua Hendrick |
Como
observa Hendrick, muita gente sequer se dá conta de que vive na órbita de Gülen
– um pai que envie a filha para uma escolha “de gülenistas” na África do Sul,
por exemplo; ou um empregado de serviço terceirizado de uma empresa de construção,
mandado trabalhar na Rússia. A negabilidade e a ambiguidade sempre foram e
continuam a ser “cruciais para o ininterrupto crescimento [do movimento] nos
últimos 30 anos”.
O outro
fator é o próprio Gülen. O magnetismo pessoal sempre o ajudou a conquistar
seguidores desde os anos 1960s, quando, ainda jovem imã de mesquita, já era
conhecido pelo estilo emocional de pregar, frequentemente explodindo em
lágrimas e, mesmo, atirando-se e rolando pelo chão. Um seguidor que acabava de
voltar de uma visita ao Hocaefendi nos EUA, descreveu-o para Hendricks
como “dono de poderes que uma pessoa medianamente culta e educada nem consegue imaginar.
É um presente de Deus”.
Em alguns
sentidos, Gülen é reverenciado como se reverenciam os “pole” sufis, seres
humanos eleitos por Deus para difundir a verdade divina; mas o movimento Gülen
é mundano demais para ser incluído entre movimentos sufis. “Agir” é o princípio
orientador declarado dos gülenistas, não qualquer distanciamento ou
introspecção.
Acompanhando
os ensinamentos de dum adivinho turco do século 20, Bediüzzaman Said
Nursi, Gülen crê que a
humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o
exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas
muçulmanos no século 19, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a
violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa.
Prega “abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de
mundo, ideologia, etnia ou crença” e com vistas à “democracia, aos direitos
humanos e às liberdades” – o que para Qutb é anátema.
Bediüzzaman Said Nursi |
A visão de
mundo de Gülen ajuda a entender, em certa medida, o internacionalismo do
movimento, a ênfase no ensino de idiomas nas suas escolas, e a busca do diálogo
entre várias fés, em encontros, conferências e projetos universitários.
Diferente de outras organizações islâmicas, o movimento Gülen não recolhe
dinheiro exclusivamente para muçulmanos, mas também para não muçulmanos (para
as vítimas do terremoto no Haiti, por exemplo). Gülen e seus principais
assessores dedicam muito trabalho no esforço de se afastarem de qualquer
antissemitismo, e, até, de qualquer crítica contra Israel. Assim, os esforços
do movimento para fixar-se nos EUA foram muito facilitados; há ali cerca de 140
escolas especiais gülenistas, e Gülen cultivou boas relações com aliados
poderosos na política, na educação e nas artes.
Apesar
disso tudo, os gülenistas estão sendo examinados de perto por pais e mães
norte-americanos que enviam seus filhos para aquelas escolas, e que se
preocupam com a opacidade de seus objetivos e métodos; e, em termos mais
gerais, também por observadores que não veem com clareza o que, exatamente,
Gülen prega ou representa.
Desde o
início do século 19, a
educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos – com ênfase nas
ciências – e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já
controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de
350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de
acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa
reputação; os pais, então, economizam para conseguir mandar os filhos para
essas instituições pré-vestibulares.
Numa dessas
instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista,
professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos
nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para
alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa
conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou
depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças
estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema “grande
irmão”, pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe
de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos
rapazes observou que os professores o tratavam “como seu próprio filho”. O
movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores
que só se dedicam “das nove às cinco”; e a dedicação é apreciada igualmente nos
alunos e nos professores.
Riqueza,
sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime – o movimento Gülen
difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o
senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados
àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente
entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi,
eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias
originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de
escolher entre a família velha e a nova família.
Cultos e organizações
fechadas em todo o mundo se têm servido de métodos semelhantes, e os resultados
nem sempre são felizes. Uma psicóloga em Istambul contou-me sobre um menino
muito pobre, filho de um porteiro no distrito mais caro da cidade, que a
procurou depois de ter tido contato com um grupo de gülenistas. Eles o
acolheram, convidaram-no a visitar a casa onde viviam juntos, o apresentaram às
ideias do Hocaefendi, e o fizeram sentir-se vivo, realizado e acolhido.
Até que um dia, sozinho em casa, mexendo numa pilha de DVDs, pôs no aparelho um
dos discos. Era um guia para atrair novos recrutas, com táticas que o rapaz
reconheceu que haviam sido usadas para atraí-lo. Pouco adiante, o rapaz procurou
minha amiga psicóloga.
No início
de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que
foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi
julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por
conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos
seus apoiadores:
Vocês devem mover-se nas artérias do sistema,
sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder
(...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado.
Mas
Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que
se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que
não é trabalho que lhe caiba.
Alegações
de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado,
particularmente o Judiciário e a Política datam, pelo menos, de 1971, quando
Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o
secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o
movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras
tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que
lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os
gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares
(nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao
mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.
Ahmet Sik, ao ser preso em 31/5/2013 |
Em 2011, um
jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam’s Army [O
Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle
da força policial turca, ao longo de vinte anos.
The Imam’s
Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva
que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990s, no
auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos.
Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para
retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela
casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem “secular”. Şık também
escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais
veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de
vilificação movidas contra eles pelas empresas-imprensa ligadas aos gülenistas,
em especial pelo jornal Zaman.
Şık
recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um
ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data
em que teria de comprovar suas denúncias numa conferência de imprensa, e apesar
de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a
uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data
prevista para o lançamento de The Imam’s Army. (Apesar dos esforços da
polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na
Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias). Mais jornalistas foram
presos na sequência, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos
numa só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo
antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon,
da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.
Quando foi
iniciada em 2007, a
investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos como oportunidade
para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas Forças Armadas e seus
aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano
passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-Maior,
acusado de pertencer à “organização terrorista Ergenekon”, já muitos haviam
mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no
inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de
gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas “plantadas”
contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se
verificou num processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre
aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados,
condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova
contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali
estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.
Hanefi Avcı |
O
julgamento “Ergenekon” deveria ter sido a vingança final colhida pelos
longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas
razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização
Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo
Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a
operação foi montada e executada não por Erdoğan, mas por “uma gangue de
seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário”. Na opinião
de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos.
Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos –
alguns dos quais ainda esperam pela sentença – foram punidos por serem
“críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen”.
Ainda em
2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco,
mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela
investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem
dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos
pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria:
fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para
controlar juízes e procuradores.
A disputa
entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao
poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que,
se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais
justo.
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[*] Christopher de
Bellaigue nasceu em
Londres em 1971. Trabalha como jornalista no Oriente Médio e Sul da Ásia desde
1994. Seu primeiro livro, In the Rose Garden
of the Martyrs: A Memoir of Iran, foi indicado para o Prêmio Ondaatje
da
Royal Society of Literature. Seu
último livro é Patriot of Persia: Muhammad
Mossadegh and a Tragic Anglo-American Coup. Vive atualmente em Teerã
com sua esposa e dois filhos.
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