A objetividade na pesquisa social e suas contaminações ideológicas
Na física, disse um recente prêmio Nobel de verdade, a teoria apresentada precisa ser certa, enquanto na economia basta ela ser brilhante.
Ladislau Dowbor
*) Gunnar Myrdal – Objectivity in social research – Wesleyan University Press, Middletown, 1983 ISBN 0-8195-6091-x
A
deformação ideológica na economia é uma praga. Um eminente professor de
Harvard explica com calma que Keynes não podia entender de economia
porque era gay e não tinha filhos. Vale tudo. A defesa escancarada de
interesses aparece como ciência, e se os interesses são poderosos, a
divulgação é poderosa. A explicação do professor de economia passa
tranquilamente na nossa TV Escola, dizendo que Pinochet valeu a pena. E
estamos falando de 2014. Na física, disse um recente prêmio Nobel de
verdade, a teoria apresentada precisa ser certa, enquanto na economia
basta ela ser brilhante. Como avaliar o que tem fundamento científicos
real nesta área tão fluida das ciências sociais? É a questão que Myrdal
analisa, no seu pequeno e brilhante ensaio A Objetividade na Pesquisa Social.
Gunnar
Myrdal foi um dos economistas de maior influência na área da economia
do desenvolvimento no século XX. Pertence a uma geração de economistas
suecos de altíssimo nível, como Knut Wicksell, Gustav Cassel, Eli
Heckscher e outros. Os seus livros são amplamente traduzidos no Brasil, e
merece destaque o estudo O Dilema Americano (The American
Dilemma) que lhe valeu o prêmio Nobel, e é até hoje considerado um dos
livros de maior influência na cultura norte-americana. Exerceu
igualmente grande influência o seu estudo O Drama da Ásia (Asian
Drama), caracterizado por não se trancar numa visão economicista, por
entender as dimensões culturais do desenvolvimento, e por um grande
realismo nas propostas.
Florestan Fernandes pediu-me há tempos
atrás para organizar um livro sobre Myrdal, infelizmente não consegui na
época, mas o autor está sempre presente nas minhas leitura e nas minhas
aulas. Estive com ele no congresso de Economistas do Terceiro Mundo,
nos anos 1980, é sempre uma emoção, me apoiou quando os americanos
tentaram me tirar da ONU. Estou aqui me redimindo um pouco.
Um
aspecto menos estudado no Brasil é o seu aporte metodológico. Myrdal já
trazia esta preocupação num dos seus primeiros livros, O Elemento Político na Teoria do Desenvolvimento Econômico,
escrito ainda nos 1930, e este sim publicado no Brasil. Preocupava-se o
autor com o fato de tanta construção científica sofisticada que ele
encontrava nos economistas da época, levasse a visões totalmente
distintas, quando não opostas. Na realidade, as construções científicas
eram rigorosas em termos de estudo das cadeias causa-efeito, mas
esqueciam de tornar explícitos os pontos de partida, as premissas que
sustentavam o edifício. E estas premissas constituem em geral, nas
ciências sociais, pre-conceitos, no sentido rigoroso de não estarem
baseadas em ciência, mas em ideologia. Ou seja, havia juizos de valor
que definiam o que o economista queria demonstrar, levando a uma busca
sistemática de argumentos que confirmassem o que era um a priori não
científico.
No presente estudo, desenvolvido nos anos 1970 e
publicado em 1983, há um aprofundamento deste problema, uma
sistematização da relação entre as nossas opiniões (o que “achamos” que
é), o que valoramos (o que gostaríamos que fosse), e o que sabemos
(correção dos dados, o fato de serem completos, e adequação teórica na
construção do como se relacionam). A verdade é que na área das análises
sociais, o que predomina é a busca da aparência de raciocínio
científico, e escondemos as dimensões não-racionais das opções. Em
outros termos, há muito mais racionalização do que racionalidade.
O
livrinho de Myrdal, francamente, é genial. Mais atual de que nunca nos
seus argumentos, em particular com tantas construções sofisticadas sobre
premissas falsas que constatamos tanto no nosso universo acadêmico como
naturalmente na mídia.
Avalia por exemplo o “comportamento de
manada” dos cientistas: “Em termos gerais podemos observar que os
cientistas em qualquer contexto científico e político se movem como uma
manada, preservando as suas controvérsias e originalidades particulares
para assuntos que não colocam em questão o sistema fundamental de
preconceitos que compartilham”(1). A montanha de argumentos repetitivos
em torno das bobagens do Consenso de Washington (e não só) vem
naturalmente à mente.
A pseudo-ciência que se esconde atrás de
matemáticas mal assimiladas é igualmente avaliada: “O emprego de
fórmulas de álgebra (por mais que sejam úteis para dominar relações
complexas), de letras do alfabeto grego, e de outros símbolos torna
fácil escapar de afirmar claramente o que foi implicitamente assumido e,
em particular, de estar consciente do peso de valores nos principais
conceitos.” (2)
Não há, segundo Myrdal, análise social
“desinteressada”. A objetividade nesta área tem de basear-se na
explicitação honesta e clara dos valores que movem o autor: “A única
maneira de batalharmos pela “objetividade” na análise teórica é expor os
valores que nos movem em plena luz, torná-los conscientes, específicos e
explícitos, e permitir que determinem a pesquisa teórica”.(3)
Myrdal
sugere em geral a modéstia como uma virtude científica útil. “A ciência
social nunca é nada mais do que senso comum altamente sofisticado. Como
as pessoas em geral, os cientistas sociais são capazes de esconder os
seus valores e conflitos entre valores ao afirmar as suas tomadas de
posição como se fossem simplesmente inferências lógicas que partem dos
fatos. Já que, como qualquer pessoa, escondem a dimensão valorativa dos
valores, e apenas apresentam “razões”, a sua percepção da realidade pode
facilmente ser distorcida, ou seja, enviesada”.(4)
Neste ensaio,
na realidade, Myrdal torna explícitos os planos de raciocínio tão
frequentemente confundidos: a visão teórica que busca os encadeamentos
de causa e efeito, a visão pragmática que visa a conciliação dos meios e
dos fins, e a visão normativa que busca o juízo de valor, o critério do
bem e do mal.
Como tantos excelentes livros, não se encontra nas
livrarias. Comprei o meu nos “usados” da Amazon. Me custou 3 dólares,
mais correio. Bem mais barato do que tantos tons de cinza. Acho a
tradução e divulgação desta pequena obra prima uma prioridade para o
mercado editorial.
NOTAS
(1) “Generally speaking, we
can observe that the scientists in any particular institutional and
political setting move as a flock, reserving their controversies and
particular originalities for matters that do not call into question the
fundamental system of biases they share”. (53)
(2) “The
employment of algebraic formulas (however useful they may be for
mastering complicated relationships), of Greek letters, and of other
symbols facilitates the escape from stating clearly implied assumptions
and, in particular, from being aware of the valuations load of main
concepts” (59)
(3) “The only way in which we can strive
for “objectivity” in theoretical analysis is to expose the valuations to
full light, make them conscious, specific, and explicit, and permit
them to determine the theoretical research.”(56)
(4)
“Social science is never anything other than highly sophisticated common
sense. Like people in general, social scientists are apt to conceal
valuations and conflicts between valuations by stating their positions
as if they were simply logical inferences from the facts. Since, like
ordinary people, they suppress valuations as valuations, and give only
“reasons”, their perception of reality easily becomes distorted, that
is, biased”. (51)
Créditos da foto: Arquivo
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