Pular para o conteúdo principal
A ideologia da alternância
Surgiu
uma curiosa preocupação com a alternância de poder, sem a qual haveria a
ameaça de uma inevitável degeneração do Judiciário brasileiro.
Por Fábio de Sá e Silva
Na sua incansável tentativa de retirar dividendos políticos do
julgamento da ação penal 470 – o chamado processo do “mensalão” –, o
presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, se deu ao direito de lançar
um “alerta à nação” antes de encerrar a sessão na qual o Tribunal, por
maioria de 7 votos a 4, acolheu os embargos infringentes opostos pelos
réus e inocentou-os do crime de formação de quadrilha.
Dizendo
ser aquela uma “tarde triste” para o STF, Barbosa denunciou a “maioria
de circunstância”, formada a partir da chegada de Teori Zavascki e Luís
Roberto Barroso ao Tribunal, como responsável por “lançar por terra todo
o trabalho primoroso levado a cabo pela Corte no segundo semestre de
2012” quando, por maioria apertada, os Ministros presentes o haviam
acompanhado na condenação por quadrilha. E, em tom tão fatalista quanto
ameaçador, destacou que via naquela votação “apenas o primeiro passo”
(De quem? Para onde?) eis que a nova composição do Tribunal teria “todo o
tempo a seu favor para continuar nessa sua sanha reformadora”.
O
“alerta” de Barbosa teve efeitos bem menos lineares que as suas
performances anteriores à frente da Corte e do processo do “mensalão”.
Veículos de massa, como o “Jornal Nacional”, deram apenas uma cobertura
genérica à fala do Ministro, enquanto que todos os grandes jornais, por
editoriais ou outros meios, fizeram ressalvas à maneira desqualificadora
com a qual ele se referiu ao voto de seus novos colegas de pleno. Até
porque, como seria possível defender as preocupações de Barbosa com o
caráter supostamente “político” dos votos daqueles novos integrantes,
quando ele próprio havia admitido, minutos antes, que a condenação e o
patamar das penas que gostaria de ver mantidos resultavam não da
aplicação rigorosa da lei, mas de uma conta “de chegada”, visando evitar
a prescrição e colocar os condenados em regime fechado (“Ora!”)?
Outra
parcela da opinião pública, porém, tirava claras e diretas implicações
da fala do Ministro: “Nos próximos anos, além da renúncia de Joaquim
Barbosa, deve haver a aposentadoria de outros cinco Ministros do STF. Se
reeleita, Dilma terá tido a possibilidade de nomear uma Corte inteira. O
Tribunal terá se tornado um mero departamento do governo. Qual será a
resposta das ruas?,” indagava uma postagem de internet que correu pelas
redes sociais. Surgia, assim, uma curiosa preocupação com a “alternância
de poder”, sem a qual, argumentava-se, haveria uma inevitável
degeneração do Judiciário brasileiro – e, mais ainda, da instância por
meio da qual ele faz a “guarda da Constituição” (CF, art. 102), o
Supremo Tribunal Federal.
Três aspectos dessa formulação, porém,
evidenciam o seu caráter falacioso – e, no limite, a sua
incompatibilidade com os princípios pelos quais a Constituição Federal
ajuda a organizar o exercício de nossas liberdades públicas.
O
primeiro é o seu atentado à soberania popular. A Constituição prevê que
“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente” (art. 1o., parágrafo único). A cada pleito
eleitoral, portanto – e não obstante todas as imperfeições do sistema
eleitoral brasileiro –, os cidadãos devem ter a oportunidade de examinar
da maneira mais livre possível os projetos em disputa e decidir pela
continuidade ou pela mudança dos mandatários e das forças políticas que
estes representam.
A possibilidade de reeleição, estabelecida
pela Emenda Constitucional n. 16, de 1997 – essa sim, ao que se sabe,
fruto de uma “maioria de circunstância” – não é a única maneira pela
qual os cidadãos podem sinalizar para um interesse de continuidade: a
eleição de outro candidato proveniente do mesmo bloco que governa, como
ocorreu com Dilma em relação a Lula, é também uma manifestação legítima
das pretensões da cidadania.
No momento em que as pesquisas
apontam para fortes chances de reeleição da Presidenta Dilma, a
disseminação de uma retórica abstrata em favor da “alternância no poder”
pode até parecer um bom substituto para a incapacidade de enunciação de
projetos alternativos por parte das oposições. Trata-se, no entanto, de
medida que – essa sim – “lança por terra” o esforço para a construção,
entre nós, do processo público, aberto e bem informado de escolha que
está na base das principais teorias modernas de democracia
representativa.
O segundo aspecto é a desconsideração dos meios
de controle de nomeações do STF garantidos – ou, ao menos permitidos –
pela Constituição brasileira.
A suposição de que um Chefe do
Executivo dispõe de poder ilimitado para a composição da Suprema Corte
diz mais sobre quem a vocaliza do que sobre o processo de nomeação dos
Ministros em si. É verdade que, entre as principais dinâmicas políticas e
institucionais que marcam a vida brasileira após o advento da
Constituição de 1988, a nomeação de Ministros do STF é das que permanece
mais opaca. Mas isso não ocorre porque faltam meios de controle, e sim
porque esses meios não são utilizados na proporção em que poderiam
sê-lo.
Basta ver o que são – mas, também, o que poderiam ser – as
sabatinas do Senado aos candidatos do STF: não seria o caso de os
Senadores transformarem esses processos em verdadeiras audiências
públicas, nas quais os requisitos de “notório saber jurídico e reputação
ilibada” (CF, art. 101) pudessem ser aferidos diretamente pelos
cidadãos? Ou – caso se avalie que esses meios de participação e controle
ainda são muito tímidos –, não seria o caso de se levantar discussão
sobre como ampliá-los? Por que evitar o debate sobre as práticas atuais e
as possibilidades de reforma, em favor de preocupações “de
circunstância”, endereçadas para as eleições de 2014?
O terceiro
aspecto, por fim, é o silêncio quanto à responsabilidade do Judiciário –
e, mais particularmente, do STF –, sobre a promoção de sua própria
solidez e legitimidade.
O processo do “mensalão” jogou muitos
holofotes sobre o poder dos Juízes e dos Ministros da Suprema Corte.
Holofotes, no entanto, tendem a iluminar partes de um objeto, ao mesmo
tempo e com a mesma intensidade em que obscurecem outras. Que outros
casos aguardavam nos escaninhos do STF, enquanto Barbosa lia as mais de
mil páginas do seu voto na ação penal 470? A que políticas públicas se
referem e quais são os interesses que eles afetam? Quanto tempo demora
para o julgamento desses casos? Há casos que andam com maior velocidade
que outros? O que determina as diferenças nos tempos de tramitação?
Como, enfim, é formada a pauta do STF – ou seja, como são definidos os
processos que serão julgados em um determinado ano ou mesmo em uma
determinada sessão?
Essas são questões cuja resposta não deriva
das urnas, mas sim do tempo, da seriedade e do compromisso mantido pelos
integrantes da Magistratura e, antes de tudo, pelo Presidente do STF,
que – por mais uma dessas imperfeições de nossas instituições – também
acumula o cargo de Presidente do órgão ao qual caberia controlar todo o
Judiciário: o Conselho Nacional de Justiça.
Ao invés de buscarem
constranger o voto alheio, aqueles que se preocupam com um Judiciário
mais sólido deveriam, isso sim, exigir uma nova “sanha reformadora” para
torná-lo mais transparente, participativo e aberto ao controle por
parte dos cidadãos. O resto é ideologia, para não dizer tentativa de
golpe.
(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela
Northeastern University (EUA). As opiniões expressas neste artigo são de
caráter estritamente pessoal.
Comentários