A
decisão dos nossos juízes anistiou previamente, por ausência de sentido
de justiça e ignorância de nossa história, aqueles que matariam
Amarildo e Claudia.
Segundo relatório recentemente publicado pelo
Forum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dia a polícia brasileira
mata cinco pessoas. Da mesma forma, dezenas de policiais são mortos nos
confrontos com o crime organizado, muitos deles – pessoas honradas –
abatidos de forma desigual pelo tráfico fortemente armado. Outra
organização independente, a “Human Rights Watch”, em relatório também
deste ano, denunciou a sistematicidade da tortura nas prisões
brasileiras, ressaltando que mesmo sob a custódia de um Estado (de
Direito), a tortura é uma realidade cotidiana no Brasil. Em alguns casos
recentes, como no Maranhão, as condições de tutela dos apenados chegou a
causar condenações internacionais ao país. Refletir sobre números tão
absurdos é uma necessidade imperiosa [1].
Em 28 de agosto de 1979
o general Figueiredo – aquele que pediu inutilmente para ser esquecido!
– aprovava a Lei 6.683, que estabelecia a anistia para atos
considerados criminosos, de motivação política, cometidos entre 1961 e
1979. A lei, aprovada ainda sob regime discricionário e autoritário, sem
a plena capacidade do Congresso Nacional decidir, estabelecia um
princípio único no mundo: os possíveis acusados de atos de violência e
tortura cometidos sob cobertura do Estado autoritário eram colocados
fora do alcance da Justiça. Em suma, os homens que torturam,
sequestraram, mataram e se desfizeram de corpos e das provas de tais
crimes, eram “anistiados” no mesmo diploma que “perdoava” os que lutaram
pelo retorno da democracia no país.
A Anistia, uma luta de
pessoas que sofreram a ditadura e do conjunto do povo brasileiro, foi,
pela Lei de Figueiredo, violentada e depravada no Brasil. A Anistia, foi
em princípio, um amplo movimento popular. Sob o impulso das ruas, de
milhares de comitês e de centenas de atos pela liberdade de presos e
retorno dos exilados, e pela reassunção de cargos de onde centenas de
brasileiros foram alijados ao arrepio da lei exigia-se o
restabelecimento dos direitos de todos os brasileiros. A ditadura,
entretanto, abriu uma cunha jurídica no texto legal – de tipo
jabuticaba, ou seja, tipicamente “nacional” - para proteger aqueles que
torturaram e mataram pessoas indefesas, sob a tutela do Estado, na
maioria dos casos em próprios, prédios, do Estado, sob administração do
Estado e por funcionários do Estado. Assim, a ditadura se autoanistiou.
Pegou, desavergonhadamente, carona nas lutas populares, para colocar no
ninho alheio o seu ovo de impunidade. A violência era uma política de
Estado e aquele Estado se autoanistiou em 1979.
Mas, não
precisava ser assim. A Constituinte de 1988 poderia ter mudado isso. Não
o fez. Sob impacto da ação do chamado “Centrão”, o então “blocão” da
direita brasileira que armou o controle dos trabalhos da Assembleia
Constituinte, bloqueou toda iniciativa nesta direção. Assim, o regime
híbrido, dito de transição, entre a ditadura civil-militar e a
democracia procurava, e conseguia, colocar-se à margem, para além, do
alcance da Justiça. Os autores desta façanha – ou seja, os atores
componentes da AD/Aliança de Democrática oriundos da ARENA/PDS que
abandonaram, na vigésima quinta hora, a ditadura para unir-se ao projeto
encabeçado por Tancredo Neves (trazidos por José Sarney, cujo o colo
foi o depositório do levante nacional contra o autoritarismo) – foram
capazes de barrar quaisquer esforços de imposição de punições,
afastamentos ou demissão dos torturadores.
Da mesma forma, a o
véu da corrupção foi mantido sob as instituições nacionais, confirmando a
prática nacional de usar as leis somente contra os inimigos. No
pós-Ditadura não houve CPIs, inquéritos ou investigações sobre homens e
instituições que violaram as leis, que se enriqueceram de forma ilícita
ou daqueles que quebraram as normas constitucionais em 1964 e nos anos
subsequentes.
Tratava-se, claramente, dos limites de uma
transição “tutelada”, onde homens do “antigo regime” reinavam como os
condutores da abertura democrática. As presidências José Sarney e Collor
de Mello, tiveram, claramente, a função de evitar que a história fosse
escrita a partir de uma clara denúncia dos atos bárbaros da ditadura.
Vieram, então, homens da resistência, que lutaram pela democracia:
Itamar Franco, FHC e Lula da Silva. Cada um deles, ao seu modo, buscou
corrigir os aspectos mais dolorosos do “esquecimento” do passado
recente. Mas, em nome da “unidade nacional” e da “conciliação” de todos
os brasileiros decidiram-se pelo “esquecimento” da história do tempo
presente no Brasil. Todos que exigiam transparência, Justiça e
restabelecimento de direitos foram vistos como “encrenqueiros”,
“revanchistas” e “radicais”.
Este era o “transformismo”
brasileiro: sempre negar o passado, sempre pregar o esquecimento, sempre
defender a “paz social” – claro, que negros escravos, índios, os mortos
e torturados, desde a Revolta dos Alfaiates na Bahia, passando pelas
terríveis punições da Revolta da Armada, até os torturados durante o
Estado Novo (1937-1945) e, depois, pelo Regime de 1964, culminando nos
tantos “Amarildos” ficariam esquecidos em nome da “paz” e da
“reconciliação” social.
“Glória, à todas as lutas inglórias, da
nossa História”! Assim, a história do Brasil se construiu em
continuidades e esquecimentos.
Tratava-se de “superar o passado”,
“esquecer uma página triste da nossa história”. Queimar os registros da
escravidão, para apagar a “mancha” na histórias nacional.
No
entanto, esforços foram feitos por familiares dos presos e desaparecidos
do Regime de 1964, colocando em questão o “esquecimento”, e algumas
entidades, entre elas “Tortura Nunca Mais”, insistiram em buscar toda a
verdade. Em enterrar, não a história do tempo presente, mas, os corpos
ainda insepultos da ditadura. Coube a Dilma Rousseff, ela mesmo uma
militante anti-ditadura, dar o passo mais avançado, instalando uma
Comissão da Verdade.
A Comissão, de mandato e poderes restritos,
possui o mérito de abrir aqui e ali frestas no silêncio e recusar-se,
pela primeira vez no Brasil, a “virar a página” de um livro que ainda
não foi escrito. Os resultados, ainda que parciais, já são uma ruptura,
uma novidade, na sociedade brasileira. De posse de tais resultados cabe,
ainda uma vez, bater ás portas do STF e pedir que o silencio e o
esquecimento sejam, desta vez, quebrados. Por que? Porque é história,
nossa história, nosso tempo e nossa obrigação. Mas, há algo ainda maior a
exigir o fim do silêncio: a história, entre nós, se repete!
A
tortura, como no geral a violência, a truculência e arrogância cotidiana
nas relações sociais no Brasil – em especial entre a dita “elite”
(aqueles mesmos que não andam de ônibus ou de trem e metrô e para os
quais tudo vai bem!) e a massa do povo -, não foi uma invenção do regime
de 1964. No máximo tornou-se, desde então, uma política de Estado. Nem
mesmo, como poderíamos pensar de forma indulgente, foi produto de um
ensinamento técnico importado do exterior, seja de manuais franceses da
primeira Guerra da Indochina ou da Guerra da Argélia, seja dos manuais
norte-americanos utilizados urbi et orbi. Uma elite com mais de 400 anos
de escravidão não precisa de lições de como torturador seu próprio
povo. A novidade era, em 1964, a transformação da tortura em política de
Estado, sua extensão e sua aplicação por objetivos específicos e contra
grupos de militância política cujos membros, muitos, eram oriundos da
própria elite do país.
Antes, na escravidão e na República Velha,
a tortura era para escravos, pobres, migrantes – internos e externos – e
marginais, no melhor sentido da expressão, todos aqueles estranhos à
“boa sociedade”. Foi o Estado Novo (1937-1945) que generalizou, ampliou,
treinou e montou as bases da violência sistemática de Estado como
política no Brasil. Órgãos públicos como Deops, Dops, Polícia Especial –
foram, numa expressão corrente – “o ovo da serpente”, todos gestados no
Estado Novo. Depois, na “democracia” estabelecida em 1945 e tolerada
pelas elites até 1964 (malgrado os golpes “falhados” em 1954, 1955, 1956
e 1961) criaram-se centros policiais de tortura e morte, com os mesmos
homens do Estado Novo: as “invernadas”, como de Olaria no Rio de
Janeiro, as “escuderias” policiais – como a autodenominada “Le Cocq” -,
as “Rotas” e os esquadrões que torturavam e matavam.
Depois de
1964, os esquadrões da morte vicejaram. Policiais treinados na torturado
foram emprestados aos órgãos militares, delegados organizaram
“repúblicas” próprias onde exerciam o direito de vida e morte sobre
oponentes do regimes, criminosos de direito comum ou quaisquer outros
que merecessem sua atenção.
Pelo menos em duas ocasiões, uma em
1963/1964, e a outra de quando da criação da chamada Operação OBAN, em
1969, policias, militares, grandes empresários e autoridades civis se
uniram para montar e financiar centros de tortura no país. Muitos destes
policiais, alguns com codinomes de “doutor” ou de “capitão”
passaram-se, mais tarde, pura e simplesmente para o crime organizado, e
lá estão, ainda hoje, impunemente.
A cadeia explicativa da
tortura no Brasil (enquanto uma política sistemática) ainda hoje vigente
une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão
mantidos vivos na “democracia” de 1946-1964 (como os Dops), a simbiose
polícia PMs militares e grandes empresários temerosos do “comunismo”,
com autoridades civis, aos quais juntar-se-iam a polícia civil, os
paramilitares e milicianos dos nossos dias.
Uma exemplar história sem rupturas
Deixamos
passar, ignoramos, maltratamos todas as possibilidades, desde 1945,
passando pela Constituição de 1988, até hoje, de criar formas jurídicas,
e princípios políticos, que pudessem impedir a repetição do trauma
histórico, fundante da pior vicio da vida política brasileira: a
violência sistemática contra pobres. Pior de tudo: os políticos que
fundaram e refundaram a “democracia” brasileira, como os liberais de
1945 e 1946 e os homens no poder em 1985 e 1988, preferiram um discurso,
e uma construção da narrativa de nossa história, centrada no
“esquecimento”, em “virar a página”, em “deixar no passado” e em
“perdoar à todos” (como se vítimas e algozes fossem iguais) que
enlutaram e envergonharam a história do tempo presente no Brasil.
No Brasil, nenhum lugar seria Nuremberg! E
no Brasil, ninguém seria acusado de tramar contra a liberdade, em
organizar-se, em prédios e sob a cobertura do poder público, para
sequestrar, torturar, matar, ocultar e, então, mais uma vez, repetir
toda a história. Os homens que compuseram o Tribunal de Segurança
Nacional, entre 1935 e 1945, não só não foram tocados ou “incomodados”
em seus postos e nos seus salários, como ganharam cargos prestigiosos,
na “democracia” de 1945-1964, na mais alta magistratura do pais. Muitos
tornaram-se ministros do Supremo Tribunal Federal e de outras
instâncias. Torturadores do Estado Novo tornaram-se delegados da polícia
e do Dops depois de 1945 e foram eles que ajudaram e participaram da
repressão depois de 1964. Suas vítimas foram esquecidas, os crimes
ocultados. Trauma transforma em recalque e repetição.
Crimes
mal-ditos, ocultados, como traumas guardados no fundo d´alma, se
repetem. Os mesmos homens, “grandes” juristas como Francisco Campos e
Carlos Medeiros, que apoiaram e fundaram o Estado Novo, tornaram-se os
redatores dos Atos Institucionais liberticídas de 1964 e chefes de
polícia de 1937, como Filinto Müller, assumiram funções de coordenação
da repressão e de poder depois de 1964. O trauma mal-dito, oculto,
transforma-se me repetição. Os torturados de 1935 e 1937 renasceram nos
“Amarildos” de 2013. Mas, nem então, foi dito basta! A nossa história
não se repete como comédia, como quereria Marx. Pior, a história do
Brasil gagueja o mesmo trauma: da escravidão, das Leis Celeradas da
República Velha, dos porões do Estado Novo até o Regime de 1964 somos
uma sucessão de gaguejos. Graciliano Ramos, Stuart Angel Jones,
Amarildo: são todos um só!
Contudo, o pior gaguejo, o entalo da
fala, o lapso da razão, deu-se em 2010. Portanto, em plena democracia da
Nova República fundada em 1988. Neste ano, o Supremo Tribunal Federal,
recusou a ação da OAB questionando a validade da Lei 6.683 e reafirmaram
a anistia dos torturadores. A democracia brasileira, e suas sumidades
jurídicas, tiveram uma chance única na proposta da OAB: romper com as
continuidades, impor o respeito pela dignidade humana e a punição pelo
pior de todos os crimes. O STF, então, recusou-se “a abrir velhas
feridas”.
Indo além, a Justiça brasileira estendeu a anistia aos
torturadores vindouros num futuro imprevisível: crimes em curso, como
sequestro e ocultação de cadáveres, e, acima de tudo, os crimes
posteriores à própria anistia – como o atentados contra os jovens do
Riocentro, a OAB e o poder legislativo do Rio nos últimos anos da
ditadura – foram prévia, e futuramente, anistiados. Na ocasião, a
justiça encenou uma farsa, e em 2010 o STF tornou tal farsa numa
tragédia permanente da vida brasileira.
Uma massa de policiais civis, militares e alcaguetes comemoraram sua liberdade de tipo “007”: a liberdade para matar!
Quando
deu-se de forma debochada, evidente, pornográfica a tortura, morte e
ocultação do pedreiro Amarildo, no Rio em 2013, estávamos repetindo,
gaguejando, a nossa própria história. Os crimes cometidos contra as
massas de escravos brasileiros, contra os trabalhadores migrantes,
estrangeiros e nacionais, na República Velha, contra os oponentes do
Estado Novo e, enfim, dos resistentes contra o regime de 1964 se
repetiriam de forma sistemática e crescente. Agora, restabelecida
formalmente a “democracia”, as vítimas não seriam mais grupos de
advogados, militantes, professores e estudantes da classe média
brasileira. Depois de 1988, com a anistia e a decisiva e forte ação do
STF de não punir a tortura no Brasil, os trabalhadores, os “associais” e
“marginais”, os pobres, negros, gays e índios seriam o alvo central de
um poder que nunca prestou conta, em toda nossa história, de seus
crimes. Mata-se sistematicamente. Impunemente. Abertamente. Cadáveres
são ocultados por funcionários públicos, arrastados em praça pública por
viaturas públicas; negros nus reencenam involuntariamente aquarelas de
Debret, amarrados e espancados em postes públicos, por “justiceiros” e
por homens que, com fardas e viaturas públicas, somam mais de cinco
dezenas de mortes por “autos de resistência”, protegidos pelo Estado e
amparados pela Justiça.
A decisão do STF, em 2010, como o
general Figueiredo em 1979, será inesquecível. A decisão dos nossos
juízes supremos anistiou previamente, por ausência de sentido de justiça
e ignorância de nossa história, aqueles que matariam Amarildo e, agora,
Dona Claudia Ferreira.
[1] EL
PAIS (edição brasileira): “Polícia brasileira mata cinco pessoas a cada
dia”, 27/02/2014. Ver, ainda, no mesmo jornal, o artigo: “Tortura é
problema crônico em cadeias do Brasil”, em 21/01/2014.
(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ
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