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50 anos de um comício que ainda fala ao Brasil
O
governo Jango, como o de Vargas -e o ciclo do PT- buscava revestir o
desenvolvimento brasileiro de soberania e direitos sociais inaceitáveis
para as elites.
por: Saul Leblon
A derrubada violenta de Jango em 1964 foi antecedida, a exemplo do que
se fez com Vargas dez anos antes, e da tentativa frustrada contra Lula,
41 depois, de uma campanha midiática de ódio e acusações de corrupção
contra o seu governo e a sua pessoa.
As motivações também se assemelhavam.
E não eram aquelas estampadas pelo alarido moralista.
O
governo Jango, como o de Vergas --e o ciclo atual do PT— buscava
revestir o desenvolvimento brasileiro de travas de soberania e
direitos sociais inaceitáveis pelo dinheiro graúdo de ontem e de hoje.
Jango
ensaiava expandir o alicerce varguista, ao qual servira como ministro
do Trabalho, com o impulso a reformas de base dotadas de expressivo
apoio popular.
Nos jornais, no entanto, o clima era adverso.
A crispação editorial desenhava um Brasil aos cacos, uma sociedade a caminho do esfarelamento econômico e social.
O
jogral do desgoverno, do desabastecimento e da infiltração estrangeira e
marxista servia o medo no café da manhã; guarnecia o jantar com a
insegurança do dia seguinte.
Pesquisas do Ibope sonegadas então à
opinião pública, e assim ocultadas por mais de 40 anos, contradiziam o
bombardeio diuturno das expectativas veiculadas pelos órgãos de
comunicação.
A mídia agia ostensivamente como parte interessada
no assalto ao poder que interrompeu um governo democrático, instaurou
uma ditadura, suspendeu as liberdades e garantias individuais, sufocou o
debate das reformas estruturais requeridas pelo desenvolvimento.
Para isso denegriu, mentiu, prendeu, matou, torturou e censurou.
Foi
dela a iniciativa de convocar o pânico e a mentira e com eles sabotar o
debate plural sobre o passo seguinte da história brasileira, cercando-a
de interditos ideológicos e moralistas.
Ontem como hoje, seu
papel foi decisivo para levar a classe média a incorporar um
discernimento preconceituoso e golpista à sua visão do desenvolvimento
brasileiro.
E mesmo assim, só uma parte dela.
Os dados
coletados pelo Ibope, em enquetes de opinião realizadas às vésperas do
golpe (e hoje armazenados no Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp),
mostram uma realidade distinta daquela cristalizada na narrativa
hegemônica.
O conjunto assume incontornável atualidade quando
cotejado com a ênfase predominante no aparato midiático do Brasil,
Argentina ou da Venezuela nos dias que correm.
Pesquisas levadas
às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia era
sofregamente tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa,
mostram que:
a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como: ótimo (15%); bom (30%) e regular (24%).
b) Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco do martelete midiático.
c) quase 50% ( 49,8%) cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição em 1965 (41,8% rejeitavam essa opção).
d)
59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa
sexta-feira, 13 de março , quando assinaria decretos que expropriavam
terras às margens das rodovias para fins de reforma agrária,
nacionalizaria refinarias, comprometia-se com a reforma urbana, fiscal e
educacional.
As pesquisas sigilosas compõem agora o
desconcertante contrapelo das manchetes golpistas que podem ser
acessadas em modernos bancos de dados, ou lidas nas edições correntes
dos mesmos veículos, escritos e dirigidos pela mesma cepa que urdiu a
fraude informativa de 1964.
Um jornalismo que oculta elementos da
equação política e econômica, exacerba adversidades, manipula o debate e
interdita as soluções requeridas pelo desenvolvimento –a exemplo do
que fez com a agenda das reformas de base em 1964.
Em editorial
escrito com a tintura do cinismo oportunista, um dos centuriões
daquelas jornadas, o diário O Globo, fez recentemente a autocrítica
esperta de sua participação no episódio.
Como certos confidentes
da ditadura, ora promovidos a historiadores do período, o diário dos
Marinhos escusa-se se no acessório para justificar a violência golpista
como inevitável diante do quadro extremado: o golpe viria de qualquer
jeito, um lado ou de outro, sugere-se.
Se havia extremismo em
bolsões à esquerda, a verdade é que a incerteza social e a rejeição ao
governo, como se vê pela pesquisa do Ibope, foram exacerbadas
deliberadamente para gerar o clima de animosidade insanável e
legitimar assim a ruptura institucional.
As semelhanças com a engrenagem em movimento avultam aos olhos menos distraídos.
Esse é o ponto a reter.
Ele
faz da rememoração do discurso que completa 50 anos nesta 5ª feira, um
mirante oportuno para enxergar não apenas o passado.
Mas a partir dele arguir interrogações de latejante urgência no presente.
Em
que medida a reordenação de um ciclo de desenvolvimento pode ocorrer
dentro da democracia quando esta lhe sonega os meios para o debate e o
espaço político para construção das maiorias requeridas ao passo
seguinte de uma nação?
O Brasil dos anos 60 vivia, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do seguinte.
As
reformas de base – a agrária, a urbana, a tributária, a política, a
educacional — visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema
exaurido.
O impulso industrializante de Vargas, dos anos 30 a
meados dos anos 50, e o do consumo , fomentado por Juscelino, mostravam
claros sinais de esgotamento.
Trincas marmorizavam todo tecido
social e econômico. Os remendos já não sustentavam o corpo de uma
sociedade que reclamava espaço para avançar.
Esgarçamentos eram
magnificados pelos guardiães da estabilidade, a exemplo dos que agora
clamam pelo rebaixamento da nota do Brasil junto às agências de risco.
O
déficit público latejava entre as urgências do desenvolvimento e as
disponibilidades para financiá-lo sem uma reforma tributária corajosa.
O PIB anêmico e a inflação renitente completavam a encruzilhada de um sistema econômico a requerer um aggiornamento estrutural.
O
conjunto tinha como arremate a guerra fria, exacerbada na América
Latina pela vitória da revolução cubana, que desde 1959 irradiava uma
alternativa à luta pelo desenvolvimento regional.
O efeito na
vida cotidiana era enervante. Como o seria no Chile, nove anos depois;
como o é hoje, em certa medida, na Venezuela de Maduro; ou na Argentina
de Cristina.
As reformas progressistas propostas por Jango
estavam longe de caracterizar o alvorecer comunista alardeado
diariamente nas manchetes do udenismo midiático.
O que se buscava era superar entraves --e privilégios-- de uma máquina econômica entrevada em suas próprias contradições.
Jango
pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social,
ampliando o acesso à educação e aos direitos no campo e nas cidades para
dar um novo estirão ao mercado interno.
Diante do salto
ensaiado, convocada a democracia a discutir as grandes avenidas do
futuro brasileiro, os centuriões da legalidade optaram pelo golpe.
Deram
ao escrutínio popular um atestado de incapacidade para formar os
grandes consensos indispensáveis à estabilidade e duração de um ciclo
de expansão produtiva e florescimento democrático.
Os ecos
persistentes desse período encerram uma lição negligenciada por aqueles
que ainda encaram o binômio 'mídia e regulação' como um ruído
contornável com a barganha de indulgências junto a um aparato que em
última instância deseja-lhes a mesma sorte de Jango.
A verdade é
que nem mesmo um programa moderado de reformas e oxigenação social como
o da coalizão centrista liderada pelo PT é tolerável.
É imperativo iluminar a seta do tempo que não se quebrou na atualidade das mudanças estruturais reclamadas pelo país.
Em
13 de março de 1964, Jango pronunciaria o discurso memorável, que
daria a essa agenda o lugar que ela ainda cobra na história brasileira. E
que a narrativa conservadora insiste em lhe sonegar.
Leia, a seguir, a íntegra do comício pronunciado pelo Presidente João Goulart, na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964
“Devo
agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício,
ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em
praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos
sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a
todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais
longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.
Dirijo-me
a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir
instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão
ao brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em
privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a
grandeza deste país.
Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.
Vou
falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios,
mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança
no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do
presente.
Aqui estão os meus amigos trabalhadores,
vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente
organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável
encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais
significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.
Chegou-se
a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao
regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da
democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a
democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.
Democracia
para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o
povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado
nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.
A
democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do
anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos
interesses dos grupos a que eles servem ou representam.
A
democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a
Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e
internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e
que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.
Ainda
ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de
trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime
democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores
reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua
solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente
isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas,
sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das
instituições.
Democracia é o que o meu governo vem
procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os
anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da
legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.
Não
há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do
povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a
voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais
sentidas reinvindicações.
Estaríamos, sim, ameaçando o
regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a
sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de
estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da
abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam
no interior, em revoltantes condições de miséria.
Ameaça
à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à
democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos,
mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo
a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos
Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras
do episcopado brasileiro.
O inolvidável Papa João XXIII
é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente
como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra,
ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade
privada a todos.
É dentro desta autêntica doutrina
cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política
social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.
O
cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos
Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os
que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em
mãos de uns poucos afortunados.
Àqueles que reclamam do
Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que
posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça
social.
Perdem seu tempo os que temem que o governo
passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos
ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste
governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação
repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai
amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como
em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do
povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e
jogam com seus preços.
Ainda ontem, trabalhadores e
povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras,
levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo
contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela
ganância.
Não tiram o sono as manifestações de protesto
dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na
realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a
impunidade para suas atividades anti-sociais.
Não receio
ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e
continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade
da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e
aos anseios do desenvolvimento desta Nação.
Essa
Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica
já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e
que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da
terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da
vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça
a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja
assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem
quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.
Todos
têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o
seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem,
contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a
todos os brasileiros.
Está nisso o sentido profundo
desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante,
manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo
dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem
adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na
unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da
nossa emancipação.
É apenas de lamentar que parcelas
ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem
insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.
São
certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque
poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a
História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao
pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de
seu povo brasileiro.
De minha parte, à frente do Poder
Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga
um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem
a conquista de novas etapas do progresso.
E podeis
estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo –
operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões
brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus
interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da
emancipação econômica e social deste país.
O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.
A
maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social
imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se
com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de
um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais
humildes.
Vamos continuar lutando pela construção de
novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais
fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo
sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for
assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos
frutos deste desenvolvimento.
Não, trabalhadores;
sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela
aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo.
Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo
de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir
sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura
ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões
de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a
vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.
O
caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é
solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e
jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.
Trabalhadores,
acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a
tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria.
Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.
Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.
Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.
Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro.
O
que se pretende com o decreto que considera de interesse social para
efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos
de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras
de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou
subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e
intolerável.
Não é justo que o benefício de uma estrada,
de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos
especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos
açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do
povo, não deve bemeficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor
de suas propriedades, mas sim o povo.
Não o podemos
fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos
os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras
abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.
Reforma
agrária com pagamento prévio do latifundio improdutivo, à vista e em
dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas
ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo
brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.
Sem
reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem
emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da
Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e
bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais
profundas.
Graças à colaboração patriótica e técnica das
nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA,
graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de
60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das
estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes
construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento
realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os trabalhadores do
campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais
sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra
para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o
trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até
aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel,
metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se
fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países
civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que
obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a
pagamento em dinheiro.
No Japão de pós-guerra, há quase
20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio
do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares
das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24
anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o
General MacArthur de subversivo ou extremista?
Na
Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de
hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária
cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram
beneficiadas.
No México, durante os anos de 1932 a 1945,
foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das
indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5%
ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.
Na
Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande
propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.
Essas
leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da
área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de
seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.
Nações
capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente,
chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o
latifúndio.
A reforma agrária não é capricho de um
governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de
todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva
da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no
campo.
A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.
Os
tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas
fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo
em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e
andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.
Assim,
a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida
do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e
melhor remuneração ao trabalhador urbano.
Interessa, por
isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma
agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o
país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.
Como
garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões
de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e
meio são proprietários?
O que estamos pretendendo fazer
no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do
que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de
progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.
Esta
manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a
reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio
custo daprodução, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros
alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a
terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50
por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros
baratos, não pode haver tranquilidade social. No meu Estado, por
exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é
obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do
valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de
terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra
que ele trabahou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é
medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que
torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso
país.
A reforma agrária só prejudica a uma minoria de
insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um
miseravel padrão de vida.
E é claro, trabalhadores, que
só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente
aproveitáveis. E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária,
para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A
reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado
dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu
escoamento.
Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum,
por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá
enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o
povo assalariado, se não form efetuadas as reformas de estrutura de
base exigidsa pelo povo e reclamadas pela Nação.
Tenho
autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta
reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o
caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso
povo.
Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação
me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes
beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os
governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma
Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma,
por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a
História nos legou. Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do
Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.
Nela,
estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo.
Espero que os senhres congressistas, em seu patriotismo, compreendam o
sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o
progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de
vida e trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é pelo
caminho reformista.
Mas estaria faltando ao meu dever se
não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas
150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso
Nacional para que venha ao encontro das reinvindicações populares, para
que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir
caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também,
trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar,
interpretando os sentimentos nacionalistas destes país. Acabei de
assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de
encampação de todas as refinarias particulares.
A
partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as
refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio
Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio
nacional.
Procurei, trabalhadores, depois de estudos
cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos,
procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos
ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua
imortal em nossa alma e nosso espírito.
Ao anunciar, à
frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de
todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem
de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso
povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.
O
imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a
caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particurlamente, vivo hoje
momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube
interpretar o sentimento do povo brasileiro.
Alegra-me
ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior
significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a
aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas
criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas
ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos
como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de
continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.
Na
mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão
igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro
reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa
democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a
todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus
destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo
engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil.
Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio
democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.
Também
está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária,
reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que
sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos
populares nacionalistas.
Ao lado dessas medidas e desses
decretos, o governo continua examinando outras providências de
fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes
populares.
Dentro de poucas horas, outro decreto será
dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço
extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a
afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em
dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em
cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam
tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.
E
realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para
seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos
insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem
exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que
ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também
exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o
povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu
poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder,
perante a lei, pelo seu crime.
Aos servidores públicos
da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também
não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso
afirmar que suas reinvindicações justas estão sendo objeto de estudo
final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja
cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para
com o país.
Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que
me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto
maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de
nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei que o povo também
apertará sua vontade contra aqueles quenão reconhecem os direitos
populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.
Sei
das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque
sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua
força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de
sentido popular e nacionalista.
Quero agradecer, mais
uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais
significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro,
especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que
preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força
será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta
liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com
orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e
gloriosas Forças Armadas da Nação.
Hoje, com o alto
testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que
só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao
povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com
todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas
pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma
eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os
brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação
econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.
(*) Atualização de nota publicada neste blog em novembro de 2013.
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