MST: o que o faz necessário

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 As imbricações entre a questão agrária e a urgência climática aguardam o desassombro de um protagonista, capaz de arrastar tempos históricos distintos.

por: Saul Leblon

No percurso dos seus 30 anos, o MST não pode ser acusado de benevolência com qualquer  governo, nem mesmo com o atual, do PT – alvo, não raro, da contundência de seu apoio crítico.

A manifestação de 15 mil pessoas que o movimento promoveu  esta semana, em Brasília, simultânea ao seu VI Congresso, tampouco  sancionou  a facilidade com que a  emissão conservadora tem usado a rua, desde junho de 2013, para propagandear a sua própria agenda.


Sem aderir aos seguidores de  Pilatos, que lavam as mãos na drenagem dos protestos para as manchetes, o MST reiterou uma avaliação que confere à gestão Dilma o pior índice de assentamento, desde FHC.

Pelas contas do movimento, foram menos de dez mil novas famílias beneficiadas em 2013; pelas do governo, seriam 75 mil nos últimos três anos  –ritmo modulado pela ênfase deliberada na viabilização dos projetos já existentes.

A mesma passeata que cobrou mais ousadia da política agrária  --pauta do encontro desta 5ª feira entre a Presidenta Dilma e lideranças do MST, dirigiu-se em seguida ao prédio do STF, que se viu cercado por  brados e faixas  autoexplicativas.

 ‘Crime é condenar sem prova’, dizia uma delas. Outra: ‘STF, refém da  Globo’.

Assim por diante.

O cerco ao Supremo  mostra como fica difícil manipular quem não quer ser  manipulado.

Mais que isso: quem tem  discernimento  para enxergar na relação de forças existente a centralidade da contradição determinante, sem abafar a urgência dos conflitos  subjacentes.

É essa argúcia de um movimento  que, não por acaso,  enfatiza a educação de seus militantes  --chegou a construiu uma universidade--  que autoriza a aposta na capacidade do MST  reinventar  uma agenda hoje abafada  no debate do desenvolvimento brasileiro: a reforma agrária do século XXI.

Uma pedaço dessa travessia passa, por certo, pelo desafio de reinscrever  a reforma agrária em um modelo de desenvolvimento que pavimente  um futuro capaz de produzir justiça social e preservar os recursos que formam a base da vida na terra.

A escolha do ‘decrescimento’, abraçada, entre outros, pelo neoecologista,  ou econeoliberal, André Lara Resende, está longe de ser a resposta para essa dupla transição (leia o artigo de Vicenç Navarro, ‘Os erros da tese do decrescimento econômico’; nesta pág.).

O problema não é de contabilidade malthusiana, mas de escolhas políticas que condicionarão  as formas de viver e de produzir  em nosso tempo.

Em síntese:  quem controlará a máquina do desenvolvimento;  quem decidirá como crescer, para quê  e  para quem?

Não se trata apenas de contemplar a emergência de um  desequilíbrio ambiental que frequenta nossas janelas  em marcha batida amedrontadora.

O economista Dan Rodrik , em artigo recente, lembra, ademais, que o avanço tecnológico limitará progressivamente a capacidade da indústria de absorver a mão de obra disponível nas cidades.  "Será impossível, para a próxima geração de países industrializados", diz ele, "deslocar 25% ou  mais de sua força de trabalho para atividades de manufatura, como fizeram as economias do Leste Asiático" (a China em especial)”.

Isso não deprecia a importância da industrialização na matriz do desenvolvimento.
Ao contrário.

Ela continuará sendo a principal usina irradiadora de produtividade em um sistema econômico sofisticado, como o do Brasil.  Mas retira do setor a competência para gerar os empregos que a sociedade continuará a demandar.

 O conjunto dilata o horizonte daquilo que hoje se convenciona chamar  ‘economia de serviços’.

É nessa transição tecnológica e conceitual que a reforma agrária do século XXI terá que reencontrar sua relevância para não morrer –ou talvez seja mais adequado dizer, renascer— no imaginário da sociedade.

Não se trata de validar miragens de uma idílica volta ao campo. Não há volta na roda da história.

A economia rural também se sofisticou tecnologicamente, em velocidade talvez até superior à industrial , nos últimos 20 anos –período no qual a incorporação agrícola de novas áreas no Brasil cresceu 40% , enquanto  o volume da colheita de grãos saltou 220%.

Mesmo em projetos comerciais de  base orgânica, a atividade rural será cada vez mais poupadora de braços.

O  sentido a recuperar, portanto, não se restringe a esfera produtiva, em que pese a exaltação conservadora  de uma eficiência graneleira nunca escrutinada  em seu custo social e ecológico.

Não por acaso, registre-se, o Brasil figura como a nação mais urbanizada entre os gigantes do planeta, com 85% da população nas cidades.
Trezentos e oitenta anos de escravidão, uma abolição sem partilha da terra e uma ditadura que, em menos de três décadas, promoveu a transição rural/urbana que nações ricas levaram um século para completar, explicam muito do presente  ‘caos urbano’, cujos  propagadores preferem não debater as origens remotas,nem recentes.

Quem o faz, ainda, é o MST.

Sua presença incômoda estende o fio da memória entre  o golpe de 64, ‘contra a agitação no campo’, e a caixa de Pandora que o torniquete  civil-militar  instalou nas periferias conflagradas  das  metrópoles –e mesmo fora delas.

Cinquenta anos passados, cabe inaugurar um novo mirante para  rastrear o futuro que existe além da dimensão exclusivamente  produtiva da reforma agrária enfatizada nos anos 60.

Que continuará a existir,  ressalte-se.

Sobretudo em projetos cooperativistas, vinculados a compras públicas de alimentos –caso, hoje,  de 30% da merenda escolar e do Programa de Aquisição da Alimentos,  exportado como ferramenta de combate à fome em de fomento à agricultura familiar para a AL e África.

O  chave do novo horizonte  agrário  certamente passa pelo tema ambiental.

O governo ensaiou uma resposta nessa direção com os projetos de assentamentos agroflorestais.

Mas sem atribuir-lhes, ainda,  a centralidade de uma diretriz estratégica.

As imbricações  entre a questão agrária e a urgência climática padecem, ademais, de uma quase uniforme negligência no debate programático da frente progressista que apoia o governo.

Talvez não seja um mero acaso.

Talvez sejam agendas gêmeas, indecifráveis  de fato enquanto mantidas  dissociadas ou  apenas vinculadas de forma ornamental nas prioridades de Estado.

Uma,  remanescente do século 19; a outra, contemporânea da exacerbação capitalista em nossos dias.

Juntas, ao lado de outras, aguardam o desassombro de um protagonista político, capaz de arrastar tempos históricos distintos, dando-lhes a coerência impensável fora de uma agenda transformadora.

Não é pouco, como se vê,  o que desafia o MST a se reinventar, junto com o seu objeto, num momento em que ambos, reconheça-se,  foram desidratados pela universalização das políticas sociais de combate à fome e a miséria, no campo e nas cidades.

Mas é isso que o fez necessário.

E, indispensável, se for capaz de  sacudir  e romper as trancas que isolam o mundo rural –e a natureza--  do debate  sobre o novo ciclo de desenvolvimento do país.

Reproduzo abaixo mais um violentíssimo (no melhor sentido da palavra) petardo de Wanderley Guilherme dos Santos, no qual ataca os inimigos da democracia. Aproveito para dar alguns pitacos à guisa de introdução e advertência.
É preciso calma. A descoberta de que houve pagamentos a alguns militantes que participaram de manifestações ou eventos correlacionados não significa nada. Não podemos criminalizar uma festinha de Cinelândia. A tabela de pagamentos, com gastos de rabanada, pão, gelo, panfletos, não tem nada de culpável. Não há rojões, granadas, balas, metralhadoras.
Movimentos sociais, partidos, sindicatos, sempre dão ajuda a seus militantes. Isso não é terrorismo. É a vida como ela é. Não há nada de errado nisso. Ao contrário. Acho que essas organizações sociais são até muquiranas demais. Deviam ser mais ainda mais participativas. Pagar passagem de ônibus para os jovens virem das periferias às reuniões no centro da cidade. Dar lanche. Até mesmo uns trocados para a cerveja, de vez em quando.
Não vamos procurar pêlo em ovo. Nem inventar o terrorismo da rabanada. Não vamos criminalizar uma prática normal. Sou totalmente contra a tática black bloc, mas não vamos exagerar. São garotos, ponto. Não tem sentido tratá-los como terroristas.  Apliquem-lhes algumas penas alternativas e está muito bem. Repito: temos que esvaziar nossas prisões, não abarrotá-las ainda mais. Se reiterarem, aí sim, prisão. Leve. Os que não forem tão garotos, aplique-se uma pena diferente. O que não pode é a impunidade total, até porque houve suspeita de participação de milicianos e/ou bandidos em alguns saques e quebra-quebra.
Quanto aos garotos que participaram da morte trágica do repórter, é exagero chamá-los de assassinos. Foi um acidente. Vamos ter bom senso.
O problema aqui é de outra ordem, conforme mostra Wanderley Guilherme em seu artigo. O problema são os “white blocs”, intelectuais que pregam a violência. Isso sim é perigoso. Pregar a violência, tratar a violência como tática política urbana é uma agressão imperdoável à democracia. Isso deve ser combatido duramente. Não com polícia, mas com argumentos, como faz Wanderley.
Uma coisa é uma violência sem controle, causada por gente desesperada, sob forte impacto emocional por causa da morte de algum jovem querido numa comunidade. Entende-se, mas sabe-se que, mesmo assim, não é o certo a fazer. Uma mente responsável, com acesso a comunidade, deve convencê-la a lutar de forma democrática, registrar denúncia, usar os canais apropriados para obter justiça, organizar-se politicamente, eleger representantes políticos melhores.
Outra coisa é um professor, friamente, pregar a violência como estratégia política. Particularmente, violência contra patrimônio público.
Imagino que Wanderley ficou especialmente indignado com a invasão das câmaras e assembléias legislativas, como eu também fiquei. Eu votei em certos candidatos, ainda gosto de vários deles, e quero vê-los trabalhando; não quero que um coxinha revoltado, semi-politizado, semi-retardado, interrompa os trabalhos legislativos para tirar onda de revolucionário. E dá-lhe rabanada e refrigerante!
Esse tipo de ação não muda em nada o status quo, e mesmo que mude, não cria um hábito saudável para a democracia. É preciso estimular a politização, a inteligência, a estratégia, a organização, afinal estamos numa civilização, então precisamos ser civilizados. Francamente, nunca vão me convencer que a melhor forma de melhorar o país é instaurando a barbárie e a selvageria anárquica.
Até porque essa tática pode abrir as portas do inferno. E sempre haverá aqueles que lucram com o caos, e com o sofrimento alheio.
Numa democracia não se ganha no grito. Não se ganha na força bruta. A grande utopia da democracia é a paz. É um regime que depende de um pacto tácito entre seus membros: as contradições, inevitáveis, entre as diferentes forças sociais, devem ser resolvidas pacificamente.
Revolução? Uma revolução também não precisa, necessariamente, ser violenta. A revolução russa de outubro de 1917 aconteceu sem uma morte, sem uma violência. Mais tarde é que, para se consolidar, ela teve que lutar contra as invasões patrocinadas pelos regimes ocidentais. Mas o dia da tomada de poder foi pacífico. Os sovietes convenciam seus pares através da argumentação política.
De qualquer forma, não estamos na Rússia, não há um Czar a ser derrubado. Até se pode entender a juventude, rebelde por natureza. Sejamos compreensivos, mas não condescendentes. É preciso reagir politicamente, não policialescamente. A repressão do Estado tem de ser sempre cuidadosa, mas eficiente  e rápida quando necessária. A democracia, já disse alhures o professor Wanderley, não pode ser suicida, não pode, em nome de uma distorcida visão de liberdade, permitir que jovens mimados destruam o sistema. Até porque, se o permitirmos, os jovens o farão simplesmente por diversão, dado a lamentável falta de discernimento (e a falta do que fazer) da maioria.
Também é estúpido criarmos uma visão livresca da figura do “governo”, como se fosse uma entidade com a qual a sociedade não tivesse ligação ou responsabilidade. Eu vejo colunistas e ativistas falando de “governo” como quem fala de um Estado estrangeiro opressor. Não tem sentido. Nossos governos são democráticos e, como tais, merecem ser respeitados, até para que eles nos respeitem. Podemos fazer oposição, uma oposição radical, dura, ofensiva até, mas sempre com respeito, porque os governantes, assim como os parlamentares, não estão ali por obra divina. O povo os elegeu. Se não respeitarmos governos e políticos, então porque respeitar o Judiciário, por exemplo? Por que respeitar o Ministério Público? Ambas as entidades também oferecem inúmeras vidraças a serem quebradas, e às vezes são mais conservadores e até mesmo mais corruptos que os demais poderes. E não são eleitos. Seria absurdo, porém, conceber um Ocupa Judiciário. Se os jovens querem criar uma comunidade, que o façam. Acampem onde quiserem, mas se quiserem entrar num legislativo, façam-no com o respeito que os valores democráticos determinam. Repito: respeitem para serem respeitados. Um articulista do Globo (da Academia Brasileira de Letras!) disse que o rojão era direcionado à PM, e que, portanto, a intenção era “boa”. Ora, isso é estupidez. Não podemos descontar nossa indignação política nas costas dos trabalhadores sofridos do governo do estado.
Viva a democracia, viva a energia das ruas, mas não nos interessa um gigante mimado e descontrolado, disposto a dançar qualquer música, desde que o paguem bem. Precisamos de movimentos sociais orgânicos, inteligentes, estratégicos, e, sobretudo, democráticos. Com rabanada ou sem rabanada.
Vamos ao artigo de Wanderley.

*
A nova era da violência
Autores intelectuais dos assassinatos já acontecidos e por vir são os whiteblocs. Devem ser combatidos com a mesma virulência com que combatem a democracia
Por Wanderley Guilherme dos Santos, na Carta Maior.
Professores universitários do Rio de Janeiro, de São Paulo e outras universidades falam do governo dos trabalhadores como se fosse o governo do ditador Médici, embora durante aquele período não abrissem o bico. Vetustos blogueiros, artistas sagrados como marqueteiros crônicos, jovens colunistas em busca da fama que o talento não assegura, políticos periféricos ao circuito essencial da democracia, teóricos sem obra conhecida e de gogó mafioso, estes são os mentores da violência pela violência, anárquica, mas não acéfala. Quem abençoa um suposto legítimo ódio visceral contra as instituições, expresso em lamentável, mas compreensível linguagem da violência, segundo estimam, busca seduzir literariamente os desavisados: a violência é a negação radical da linguagem. Mentores whiteblocks, igualmente infames.
A era da violência produziu a proliferação dos algozes e a democratização das vítimas. Antes, a era das máquinas trouxe a direta confrontação entre o capital e o trabalho, as manifestações de protesto dirigiam-se claramente aos capitalistas em demanda por segurança no serviço, salário, férias, descanso remunerado, regulamentação do trabalho de mulheres e crianças. Reclamos precisos e realizáveis. Politicamente exigiam o fim do voto censitário, o direito de voto das mulheres, o direito de organização, expressão e manifestação. Exigiam, em suma, inclusão econômica, social e política.
Os mentores dos algozes possuíam nome e residência conhecida. Os executores eram igualmente identificáveis: as forças da repressão, fonte da violência acobertada pela legislação que tornava ilegais as associações sindicais, as passeatas, os boicotes e as greves. As vítimas estavam à vista de todos: operários, operárias, desempregados, além de cidadãos, escritores e jornalistas solidários com a causa dos miseráveis.
Não há por que falsificar a história e negar que, ao longo do tempo, sindicatos mais fortes e oligarquizados também exerceram repressão sobre organizações rivais, bem como convocatórias grevistas impostas pela coação de operários sobre seus iguais. A era das máquinas não distribuía a violência igualitariamente, mas algozes e vítimas possuíam identidade social clara.
A atual era da violência, patrocinada por ideólogos, jornalistas, blogueiros, ativistas (nova profissão a necessitar de emprego permanente), professores, artistas, em acréscimo aos descontentes hepáticos, testemunha a agregação de múltiplos grupelhos, partidos sem futuro e fascistas genéticos aos tradicionais estimuladores da violência, os proprietários do capital. São algozes anônimos, encapuzados, escondidos nos codinomes das redes sociais, na covardia das palavras de ordem transmitidas a meia boca, no farisaísmo das negaças melífluas.
Os whiteblocs disfarçam o salário e a segurança pessoal nas pregações ao amparo do direito de expressão e de organização. Intimidam com a difamação de que os críticos desejam a criminalização dos movimentos sociais. Para que não haja dúvida: sou a favor da criminalização e da repressão às manifestações criminosas, a saber, as que agridam pessoas, depredem propriedade, especialmente públicas, e convoquem a violência para a desmoralização das instituições democráticas representativas.
As vítimas foram, por assim dizer, democratizadas. Lojas são saqueadas, vidros de bancos estilhaçados, passantes, operários, classes médias, e mesmo empregados e subempregados que a má sorte disponha no caminho da turba são ameaçados e agredidos. A benevolência do respeito à voz das ruas é conivência. Essas ruas não falam, explodem rojões. Não há diálogo possível de qualquer secretaria para os movimentos sociais com tais agrupamentos porque estes não o desejam. E, quando um quer, dois brigam.
A era da violência é obscura. Não me convencem as teorias do trabalho precário porque não cobrem todo o fenômeno, também é pobre a hipótese de uma classe ascendente economicamente com aspirações em espiral (já sustentei esta hipótese), e, sobretudo, não dou um centavo pela teoria de que almejam inclusão social. Eles dizem e repetem à exaustão que não reclamam por inclusão alguma, denunciada por seus professores como rendição à cooptação corrupta.
Os autores intelectuais dos assassinatos já acontecidos e por acontecer são os whiteblocs. Têm que ser combatidos com a mesma virulência com que combatem a democracia. Não podem levar no grito.
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