Em 64, a ditadura também veio em nome da ordem e da liberdade.
Autor: Fernando Brito
Eu morava numa pequena rua do Méier, a Travessa Miracema, num apartamento térreo e tomava café da manhã, como sempre, com meu pai, num quartinho que era uma espécie de copa. E, como todos os dias, ouvíamos rádio, um portátil Semp, com sua capa de couro marrom e a novidade: “all transistor”, isto é, sem válvulas, como os caixotões.
Meu pai ergueu-se de súbito e saiu. O portão do prédio era baixo, como eram baixos os portões naquele tempo, e não se fechou. Fui atrás dele, assustado, segui-o pela calçada até que ele parasse. Parou e vi um tanque rolando preguiçosamente pela Rua Dias da Cruz, a principal do bairro.
Foi só o que vi do golpe na rua, pois fui corrido para dentro de casa.
Depois, vi livros e papéis sendo queimados e um “tio”, muito assustado, fazendo pouso lá em casa, assustado.
Minhas memórias infantis deste período são pequenas. Lembro do filho de uma professora, amiga de minha mãe, em dificuldades ou desaparecido, nem lembro mais.
Lembro da frase tristemente chistosa: “O que você acha? Eu não acho nada, porque o último que achou não acharam mais”. E da vizinha mais odiada do prédio, Madame Vila Kennedy, que se orgulhava de seu marido ser lacerdista e ter participado de remoção dos pobres para aquelas lonjuras da Zona Oeste.
Cresci sob a ditadura e talvez só pela idade tenha escapado do fim trágico que muitos jovens, poucos anos mais velhos, tiveram.
Alcancei a maturidade já nos estertores do regime e o que sofri não foram senão umas bordoadas e algumas ameaças em carinhas do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. Tenho uma delas até hoje, com um ridículo machado pingando sangue.
Talvez por ter visto o que foi um regime sem liberdades, eu as preze tanto e me arrisque a andar na contramão de alguns “libertários” que, no seu barulhento autismo, não enxergam além de seus narizes empinados de donos da verdade.
A falta de lucidez política – natural até em muitos e imperdoável nos mais velhos – está abrindo caminho para os esgares autoritários.
Não, não estou me referindo aos facínoras miúdos que aparecem nas redes sociais defendendo a lei da selva, o moralismo udenista (pelo qual todo mundo é ladrão, inclusive eu, que recebo dinheiro do Governo – não tem importância que não receba de fato um tostão – para defender um governo de natureza trabalhista e nacionalista, ainda que falho e imperfeito) e a demonização da política.
Falo do espanto do qual muitos não estejam tomados, como eu, ao ver que são cada vez mais inquestionáveis os movimentos que apontam para uma ruptura democrática no Brasil, como de resto em toda América Latina.
A pesquisa Datafolha, que este blog antecipou , em dois posts (aqui eaqui) é um escândalo contra a democracia, travestido de liberdade de informação.
Não, não é democrático promover pesquisas para aferir o grau de apoio ao fim da democracia, à tortura, ao fechamento de partidos e sindicatos, à censura aos meios de comunicação (que é algo totalmente diferente de seu controle social), ao fechamento do Congresso às prisões indiscriminadas e à revogação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Não tem finalidades sociológicas, mas propagandísticas, que nem mesmo dependem de que se forme uma eventual maioria em favor destas monstruosidades.
É o sinal para que se formem, se é que já não estão formados, núcleos que visem sua legitimação política em torno do “restabelecimento da ordem” que não está abalada, embora a mídia, como um partido único, apresente o país como em caos ou em chamas.
Com a prestimosa ajuda dos delirantes blocos do “nós somos a revolução” que nem mesmo sabem dizer que revolução seriam.
A direita os trata bem, mesmo quando lhes bate e pede polícia, porque lhes dá um tamanho que não possuem.
Transforma-os em espantalhos a justificar o rebrote autoritário.
Assistimos à sabotagem de um governo democrático e eleito e, pior, vemos que esse governo também o assiste, sem reação.
Reação não é um papelucho propondo que não tenha máscara em manifestação ou que se tire tal ou qual franquia dos movimentos sociais e dos eventuais protestos.
Reação é combate político, é esclarecimento da população, é desmascaramento de conspirações, é apelar para o que o povo brasileiro deseja: desenvolvimento, progresso, paz e o direito que meus filhos têm – como o seu jovem pai não tinha – de decidir para onde caminhar.
A liberdade não é o algoz das liberdades, mas a covardia o é.
Temos um gaguejante ministro da Justiça, que ouve calado os que se levantam contra os abusos serem chamados de incitadores da desordem, mas que não vai ter a coragem de ir a público indagar o que se quer com uma “pesquisa” que quer, supostamente, detetar o volume de apoio à subversão da ordem democrática.
Leia isso de novo, por favor: o volume de apoio à subversão da ordem democrática!
Pois é disso que se trata e não uma simples curiosidade estatística, por jamais se fez isso ao longo de mais de 30 anos de democracia e de existência do Datafolha.
Por que agora?
Por que há um cheio de golpe cada vez mais forte.
Ontem, Fernando Henrique Cardoso, disse que país precisa de um “sacolejão”.
Que tipo de “sacolejão”?
O do voto, ao que parece, não está ao alcance deste desejo de “sacolejar”.
A pesquisa CNT divulgada hoje, que dá a Dilma folgada vantagem (43,7%) sobre a soma de Aécio (17%) e Eduardo Campos (9,9%) transfere para outros campos este desejo de “sacolejar”.
Os tolos que ajudam com provocações a este clamor por ordem talvez sejam mais infantis que eu, aos meus cinco anos, correndo a ver o que assustava meu pai.
Porque não quero o mesmo para meus filhos e porque não somos crianças tolas e assustadas.
Leia também:
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