Contra insurreição urbana armada: de volta ao básico
The Saker, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
The Saker |
Enquanto se
desenrolam os dramáticos eventos na Ucrânia, a questão de o que o presidente
Yanukovich pode, ou não pode, fazer volta com regularidade à discussão; e acho
que é mais que hora de voltar ao básico e examinar o que um governo – qualquer
governo, independente de orientação política – pode e mesmo deve fazer, se
confrontado com uma insurreição urbana armada.
Primeiro, um Chefe de Estado, qualquer Chefe de
Estado, tem obrigação de defender a Constituição e de manter a lei e a ordem,
de proteger seus cidadãos contra abusos e violência contra a pessoa deles e
contra as propriedades deles. Soa como frase feita? Sim, mas o conceito
importante aqui é o que tudo isso é dever, não é nem direito nem opção.
Segundo, um chefe de Estado, qualquer chefe de
Estado, é Comandante-em-Chefe das forças armadas do país no sentido mais geral
da palavra: quer dizer, de todas aquelas forças, unidades e indivíduos aos
quais são entregues os instrumentos de violência para proteger o país:
militares, polícia, forças do Ministério do Interior, polícia antitumultos, guarda
nacional, o que houver. Assim, e como qualquer Comandante-em-Chefe, o Chefe de
Estado também carrega a responsabilidade radical pela vida e bem-estar não só
dos cidadãos que essas forças existem para proteger, mas, também, das próprias
forças que obedecem a suas ordens. Outra vez, não é ideia original, mas, ainda
assim, tem sido repetidas vezes esquecida na atual situação (mais sobre isso,
adiante).
Manifestações pró-União Europeia em Kiev - nov/2013 |
Agora,
consideremos com que tipo de “oposição” temos de lidar no centro da cidade de
Kiev. Segundo a maioria dos relatos, é grupo muito diversificado de
pessoas:
1) Ucranianos “comuns” (“comuns”, no
sentido de “não alinhados politicamente”) fartos da corrupção, da pobreza, da
incompetência, arrogância e violência das elites governantes. É o tipo de gente
que se via pelas ruas de Moscou ou São Petersburgo no início e meados dos anos
1990s, tentando desesperadamente ganhar a vida, ao mesmo tempo em que tentava
não se deixar matar nem roubar pelas inúmeras gangues mafiosas e funcionários
corruptos que os caçavam pelas ruas. Esses são manifestantes, mas, crucialmente
importante, são não violentos. Para nossas finalidades, chamaremos esse grupo
de “civis”.
2) Vários tipos de manifestantes que
querem usar de violência contra a Polícia, contra outros manifestantes e contra
prédios. A esses chamaremos “os vândalos”.
3) O passo acima são os vândalos
organizados em equipes ou grupos armados com vários tipos de armas
improvisadas, mas letais, incluindo não só barras de ferro e furadores de gelo,
mas também coquetéis molotov, facas, porretes, pistolas, rifles e até veículos
(caminhões e tratores usados como arma para atropelar policiais). São, aqui,
“gangues urbanas”.
4) Por fim, há alguns poucos indivíduos
bem treinados, que atuam em pequenas equipes para tarefas especiais, como fogo
de atiradores postados em pontos estratégicos, demolições, sequestros, tomada
de reféns e assassinatos. São “terroristas”.
Hoje, e
dado que todos os lados mentem, é difícil estimar com precisão a proporção de
cada um desses grupos nos confrontos em Kiev, mas pode-se afirmar com segurança
que todos esses elementos estão ativos na cena.
Polícia antitumultos (Berkut) é atacada por terroristas com coquetéis Molotov |
Agora,
consideremos o que o governo usou, como forças suas, contra esses elementos:
polícia comum, polícia antitumultos (os Berkut) e, segundo notícias recentes, cerca de 500
soldados de infantaria para proteger alguns depósitos de armas nos arredores de
Kiev (que não participam nos eventos no centro de Kiev). Tanto quanto sei, as
forças de polícia regulares foram mantidas na retaguarda, e os combates
propriamente ditos só envolveram os policiais antitumulto, os Berkut.
Outra vez, é difícil afirmar se é verdade ou não, mas funcionários ucranianos
têm afirmado que os Berkut não estão usando munição real, só balas de
plástico. Têm granadas de efeito moral, cassetetes e canhões de água. Todos os
vídeos e imagens que examinei até agora confirmam isso, pelo menos em Kiev.
Acabo de
assistir a um vídeo do que parece ser tentativa, por vândalos, para invadir um
prédio do Serviço Ucraniano de Segurança [orig. Ukrainian Security Service
(SBU)], que resultou em uma rajada de tiros de arma automática de dentro do
prédio, que atingiu e possivelmente matou um ou mais vândalos. Considerado o
nível dos buracos de bala na janela, parece-me que os tiros foram dados de cima
para baixo, de uma posição mais alta dentro do prédio, e que os vândalos podem
ter sido atingidos por balas ricochetadas. Parece-me que aconteceu na cidade de
Khmelnytskyi, no oeste da Ucrânia.
Apesar de
saber que as dinâmicas podem ser diferentes noutros locais, quero focar o que
está acontecendo no centro de Kiev, na Praça Independência (vulgo “a Maidan”) e
ruas circundantes.
O que um
governo deve fazer, se posto diante do tipo de ganguesterismo e caos que se
veem em Kiev?
Meu parecer
é que a primeira tarefa, imediata, é conter a violência e tentar separar, o
mais completamente possível, os civis, dos vândalos, gangues urbanas e
terroristas. Dado que é absolutamente impossível mandar os policiais e retirar
os civis um a um, muito menos pela força, o governo pode, por alto-falantes ou
por panfletos lançados por helicópteros, tentar convencer os civis (não
violentos) a voluntariamente deixar uma área na qual a violência está
onipresente. Esses tipos de medidas em geral têm efetividade mínima, mas
cumprem uma importante função legal: são indicativas dos esforços, pelas
autoridades, para discriminar entre os vários grupos em cena, e da tentativa
para preservar a segurança de passantes ou manifestantes inocentes.
Nazi-fascistas do Pravy Sektor armados para enfrentar os Berkut |
No mínimo,
esses alertas põem a responsabilidade pelas consequências de rejeitar a ordem
para dispersar sobre os próprios civis que, ao se recusarem a dispersar, tomam
voluntariamente a decisão de permanecer ao lado de vândalos, gangues urbanas e
terroristas violentos. Em todos os casos, entendo que o governo sempre terá
como argumentar a seu favor que, depois de os alertas terem sido repetidos por
tempo razoável, já não se pressupõe que ainda haja civis nas áreas
conflagradas. Pode soar ‘duro’ ou cruel contra os civis ingênuos ou
simplesmente estúpidos que inevitavelmente ignorarão os alertas, mas é preciso
não esquecer que os governos têm a obrigação de proteger não só a vida de civis
envolvidos em agitação de rua, mas, também, do restante da população, e a lei e
a ordem em geral.
Uma vez a
área esteja em condições de ser considerada “área onde não há civis inocentes”,
a questão seguinte a ser enfrentada pelo governo é a questão da
proporcionalidade. Não se pode mandar a Força Aérea bombardear tudo, com napalm
ou bombas de fragmentação, até reduzir a ruínas, todo o centro de Kiev, nem se
pode ordenar um ataque de artilharia. Assim sendo, o que se pode fazer para
tentar conter os vândalos?
Em primeiro
lugar e principalmente, há meios não violentos que podem ser usados e complicarão
consideravelmente a situação dos vândalos. Como?
Primeiro, o
centro da cidade pode ser completamente cercado e isolado do resto da cidade.
Pode-se criar um cordão de forças policiais, bloqueios de rua, barreiras de
rolos de arame farpado, veículos blindados, pontos de passagem, etc. que
isolarão completamente a área de combate, do resto do planeta.
Unidades de
ciberguerra têm de ser usadas para cortar todas as comunicações, inclusive
celulares, Internet e conexões por satélite. Todos os sinais das mídias de
massa têm de ser localmente derrubados. Devem-se mobilizar todos os esforços
para estabelecer uma barreira impenetrável entre a zona de combates e o resto
do mundo.
Por último,
mas não menos importante, absolutamente nada, nada, entra na área cercada: nada
de comida, nada de remédios, nada de água, nada de suprimentos de nenhum tipo.
Nada. Seja qual for o número real de
pessoas que estão reunidas atualmente na Praça Maidan, a situação de falta
d’água e acúmulo de detritos só se tornará absolutamente inadministrável depois
de passadas 24 horas.
Na
preparação para a saída de vândalos e gangues urbanas da área conflagrada,
devem-se montar quatro pontos de triagem, fortemente protegidos, a serem
implantados em torno da área: norte, leste, sul e oeste. Os vândalos que se
rendam e decidam abandonar a área só poderão sair por um desses pontos.
Observe-se
que, agora, já não se fala de “dispersar civis”: trata-se de “render vândalos”.
Todos os
que deixem a praça por um daqueles pontos devem ser imediatamente presos,
desarmados, revistados, registrados e conduzidos a locais de detenção
temporária, até que a Polícia possa examinar cada caso e, sendo o caso, possam
ser levados a julgamento.
Praça Maidan ocupada. Foto realizada do alto de um edifício (nov/2013) |
No plano
político, o presidente deve parar completamente qualquer tipo de discussão,
consultas ou outros “contatos por telefone” com diplomatas estrangeiros que
estão garantindo apoio às gangues urbanas. “Desculpe, mas estou ocupado
restabelecendo a lei e a ordem. Deixe seu número, que telefonarei quando puder”
– isso, e nada além disso, será a única resposta que “negociadores”
estrangeiros ouvirão de um chefe de Estado, nessas circunstâncias.
Internamente,
o chamado “líder da oposição” que deseje render-se deve receber tratamento
idêntico ao de qualquer outro vândalo ou membro de gangues urbanas. Nada mais,
nada menos.
Negociar
oficialmente com gangues urbanas é atitude absolutamente irresponsável e só faz
induzir a escalada da violência.
Observem
que nenhuma das medidas acima listadas implica uso de violência, contra pessoa
alguma. Mas alguma violência terá, inevitavelmente, de ser mobilizada.
As polícias
antitumulto não são a força correta a usar contra gangues urbanas e
terroristas. Nesse caso, têm de ser usadas exclusivamente forças especialmente
treinadas.
Contra
gangues urbanas é preciso usar forças especiais anti-insurgência; contra
terroristas é preciso usar forças antiterroristas. Parece óbvio? Bem, talvez
pareça a você e a mim, mas não é o que se está vendo acontecer na Ucrânia. Até
aqui, Yanukovich só enviou policiais antitumulto para enfrentar todo o espectro
das ameaças.
É. Por
natureza não sou muito simpático a policiais antitumulto. Sempre me parecem “cães-de-guarda”
humanos, que mordem qualquer um que sejam mandados morder.
Francamente, não
consigo pensar em pior escolha profissional.
Mas tenho
de admitir duas coisas: todos os países têm de ter esse tipo de força; e os Berkut
ucranianos estão sendo submetidos a situações absolutamente inadmissíveis:
receberam ordens para não se mover, sob um dilúvio de pedradas e coquetéis
Molotov; estão sendo atropelados por caminhões e tratores; receberam ordens
para atacar agitadores pesadamente armados e bem organizados, sem sequer uma
pistola para defender a própria vida. Estão sendo batidos, dia após dia, e todos
os dias o próprio Comandante-em-Chefe deles, o presidente Yanukovich, culpou os
próprios policiais pela violência. É comportamento desprezível. Muito me
surpreende que aqueles policiais ainda não se tenham levantado contra o próprio
Yanukovich.
Não tenho
qualquer comprovação, mas suspeito fortemente que as forças especiais e as
forças de segurança da Ucrânia estejam hoje como estavam as correspondentes
forças russas no início, até meados, dos anos 1990s: absolutamente em
frangalhos. E talvez – talvez! – aí esteja o motivo pelo qual Yanukovich não
pode usá-las: porque estão imprestáveis. É possível, mas num país do tamanho da
Ucrânia, custo a acreditar que não se encontre sequer uma pequena força,
suficiente para enfrentar a crise nas ruas do centro de Kiev. Será que os SBU realmente não têm esse
tipo força? Se for assim, então o governo deve ser condenado por crime de
negligência.
Tropa ODON (Rússia) especializada e desbaratar gangues urbanas tipo "Black Bloc" |
Na Rússia,
pode-se dizer que situação como a que se vê em Kiev seria praticamente
impossível por muitas razões; mas, imaginando-se que acontecesse lá algo
semelhante, o governo poderia usar a força OMON para o caso dos
vândalos “comuns”; a força ODON para o caso das
gangues urbanas; e os Spetsnaz
FSB para o caso dos terroristas. Em nenhum caso e sob
nenhuma circunstância os militares devem ser diretamente envolvidos nessas
operações (mas, sim, podem ser usados nas áreas de ciberguerra e bloqueio das
comunicações).
Outra vez:
ou Yanukovich têm forças equivalentes àquelas russas e, nesse caso, está sendo
criminosamente negligente por não as usar; ou não as tem e, nesse caso, é
criminosamente negligente por não as ter organizado e treinado. Seja como for,
há aí responsabilidade direta do governo.
Supondo-se
que Yanukovich tenha à sua disposição forças similares, o que poderia fazer?
Equipes de atiradores especiais contra-atiradores (convocados das unidades
especiais antiterroristas) podem ser distribuídas na área para neutralizar o
fogo de atiradores que estejam atacando as forças de segurança.
Batalhões
contrainsurgência do tipo ODON russo podem ser usados para dar combate
aos “grupos combatentes” (por falta de melhor designação) nacionalistas e de
extrema direita. Essas forças têm de poder contar com meios e com o direito de
usar força letal, mas há muitas coisas que podem fazer para intimidar vândalos
e gangues urbanas (fogo de 30 ou 50mm contra a parede de um prédio fará
milagres no sentido de convencer gangues urbanas neonazistas de que é hora de
voltarem para o oeste da Ucrânia). Podem-se usar APCs
e AIVs para
desmontar rapidamente qualquer barricada e neutralizar qualquer “veículo de
assalto improvisado” (caminhões, tratores, ônibus, escavadeiras) usado contra
os policiais. Basicamente, uma praça como a Maidan pode ser esvaziada em bem
poucas horas e com número relativamente baixo de feridos ou mortos. Claro, pode
haver vítimas, mas não será um banho de sangue.
Tendo
demonstrado que existem todos esses instrumentos de poder de Estado, quero
voltar a um ponto que já referi acima: conter a violência e restaurar a lei e a
ordem não é opção, é obrigação para qualquer chefe de estado responsável. E se
Yanukovich não tem coragem para fazer o que a lei o obriga a fazer, deve
renunciar.
Mas o quê
Yanukovich faz? Negocia ad nauseam com diplomatas ocidentais e os chamados
“líderes da oposição”; fez concessões absolutamente irresponsáveis; tentou
mandar os infelizes policiais antitumultos para restaurar a ordem, apesar de
eles não poderem, por definição, fazer tal coisa; e, na sequência, culpou os
policiais pela violência resultante. Em cada um desses passos, só fez mostrar e
mostrar sempre a mesma coisa: fraqueza, fraqueza, fraqueza. E o resultado?
Não só a
violência aumentou dramaticamente, a zona conflagrada já espalhou-se para além
da praça Maidan e da rua Gruchevski. Nessa imagem fotografada de um mapa de TV
russa, vê-se a área dos combates:
"Screen shot"do centro de Kiev. A áream hachurada em vermelho é o local dos combates |
Agora que a
violência espalhou-se para parte muito maior do centro de Kiev, será preciso
força muito maior para controlá-la?
Só posso
esperar que as gangues urbanas não tenham pessoal suficiente para se infiltrar
e fixar-se em áreas maiores que antes, porque, se isso acontecer, aumentará
muito o custo humano de conter a violência.
Em
conclusão, quero dizer o seguinte: não posso aceitar o argumento de que
Yanukovich não pode lidar com a violência por questões políticas. Nenhuma
sabedoria política é desculpa para que um chefe de governo não cumpra o
juramento de proteger as pessoas comuns, defender a Constituição e manter a lei
e a ordem. Rejeito categoricamente a noção de que mandar policiais desarmados,
ou armados só com armas não letais, seria o modo correto de enfrentar o tipo de
situação que está criada em Kiev. Entendo que as “negociações” e “consultas”
sem fim, sempre com inimigos jurados do povo ucraniano, como diplomatas da
União Europeia e os chamados “líderes da oposição”, são, não apenas inúteis,
mas, pior que isso, altamente contraproducentes; e só induzem à escalada da
violência.
Viktor Yanukovich, atual Presidente da Ucrânia |
Assim
sendo, não só Yanukovich fez tudo errado no passado, como continua a fazer tudo
absolutamente errado. Vejo-o como culpado número 1 pela situação atual e temo
pelo muito que ele ainda pode fazer para danar totalmente com tudo, antes que
seja varrido para fora do poder.
Tudo isso é
muito trágico e triste, e a única coisa boa que vejo como fruto desse caos,
dessa miséria e dessa violência é a possibilidade de que o leste e o sul da
Ucrânia finalmente percebam que não têm futuro num mesmo país com os Zapatentsy
doidos, as milícias neonazistas e outros nacionalistas; e que têm de retomar
para eles a própria soberania, unidos à Rússia, que seja, ou, pelo menos, que
rompam completamente os laços que ainda os ligam ao oeste da Ucrânia.
Quanto a
Yanukovich, já tem lugar garantido nos livros de história ao lado de gente como
Kerensky e Ieltsin; e nada de bom acontecerá na Ucrânia, enquanto esse patético
fantoche oligárquico permanecer no poder.
The
Saker
PS: A única boa notícia dessa manhã é a
seguinte: Dmitry Peskov, porta-voz de Vladimir Putin, confirmou que a Rússia de
modo algum se envolverá no atual conflito na Ucrânia. Graças a Deus!
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