4 LIÇÕES SOBRE LEIS ANTI-TERROR

  Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

 

Destino das leis anti-terror é se transformar em instrumentos contra a democracia


 
Marcelo Zero (*) 
 
 
Os Mapuches são um povo indígena do centro-sul do Chile. Desde a 
 
colonização, lutaram muito para tentar manter as suas terras. Penaram 
 
bastante e em vão. Hoje, a maioria dos Mapuche vive marginalizada nas 
 
cidades. Trata-se de uma longa história de muitos capítulos escritos com 
 
horror e sangue. 
 
Mas o último capítulo dessa saga trágica foi escrito com a tinta obscura 
 
das leis antiterroristas. Já em plena democracia, o governo de Ricardo 
 
Lagos, com o intuito de acabar com uma rebelião Mapuche, que usava o 
 
incêndio dos equipamentos de grandes madeireiras como método de sua 
 
luta desesperada para recuperar terras, modificou e usou a lei antiterrorista 
 
de Pinochet para enquadrar os rebeldes. 
 
Assim, líderes e ativistas Mapuches foram presos e julgados em tribunais 
 
militares. Alguns ficaram em prisão preventiva por quase um ano, para 
 
depois serem libertados sem julgamento. A rebelião acabou em 2002, mas 
 
os Mapuches ficaram com o estigma de terroristas e a democracia chilena 
 
ficou com marca da intolerância herdada de Pinochet. 
 
Os membros da Câmara dos Lordes do Reino Unido são bem diferentes 
 
dos Mapuches. Nunca perderam suas terras e estão muito longe de serem 
 
marginalizados. Embora tenham perdido muito prestígio e poder, os 
 
Lordes tinham, até 2005, a prerrogativa de revisar judicialmente leis já 
 
promulgadas. 
 
Pois bem, foi o que se atreveram a fazer com a Lei de Segurança e 
 
Antiterrorismo que havia sido promulgada, no Reino Unido, logo após os 
 
atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque. Tal lei permitia, 
 
em sua Seção 23, a detenção por tempo indeterminado, sem processo 
 
legal, de suspeitos estrangeiros de terrorismo. Dito e feito. Começaram 
 
a se acumular em prisões britânicas, principalmente na de Belmarsh, 
 
detentos sem processo legal e sem julgamento. Os Lordes não gostaram. 
 
No julgamento que foi considerado o mais importante dos últimos 50 anos 
 
na Grã-Bretanha, os Lordes decidiram, em 2004, que a Seção 23 da lei em 
 
questão violava a Convenção Europeia de Direitos Humanos, assinada pelo 
 
Reino Unido. 
 
Lord Hoffman, com sua grande eloquência, disse em seu voto que: A 
 
verdadeira ameaça à vida da Nação, no sentido do povo poder viver de 
 
acordo com suas leis tradicionais e seus valores políticos, não vem do 
 
terrorismo, mas de leis como essa.
 
Contudo, a eloquência de Hoffman e o resultado do julgamento não foram 
 
suficientes para debelar essa ameaça. Hoje, os detidos podem ainda ficar 
 
incomunicáveis e sem o devido processo legal por 28 dias e as autoridades 
 
ainda têm grande poder discricionário de atuação. 
 
Com certeza, a decisão dos Lordes não foi suficiente para proteger Jean 
 
Charles, o brasileiro executado com 11 tiros na cabeça num metrô de 
 
Londres, em 2005. Jean Charles perdeu sua vida e a Câmara dos Lordes 
 
perdeu, também em 2005, pouco depois do grande julgamento, as suas 
 
prerrogativas judiciais.
 
Guantánamo, por sua vez, é bem diferente das Câmaras dos Lordes. As 
 
pessoas que por lá passam, e ficam, não tem nenhum prestígio, riquezas 
 
ou poder. Não têm sequer o direito de serem submetidas a julgamento. 
 
São habitantes permanentes de um campo de concentração localizado num 
 
conveniente limbo jurídico, numa conveniente base militar. Lá, como havia 
 
na britânica Belmarsh, não há seres humanos, há suspeitos de terrorismo. 
 
Como Belmarsh, Guantánamo é um produto direto das leis antiterroristas 
 
promulgadas após o 11 de setembro. Não que os crimes daqueles atentados 
 
não pudessem ser devidamente enquadrados em leis anteriores. Sequestro 
 
de aviões, assassinatos, destruição do patrimônio, etc., tudo isso já estava 
 
previsto como crime, com penas muito severas, nas leis internas dos EUA 
 
e mesmo em convenções específicas da ONU. Não. As leis antiterroristas 
 
norte-americanas não foram concebidas para tipificar crimes não previstos. 
 
Sequer foram concebidas para enrijecer penas. Elas foram concebidas, isto 
 
sim, para dar ao Estado poderes discricionários que ele não tinha, sob a 
 
desculpa de poder enfrentar a “guerra contra o terrorismo”. Foi isso que 
 
levou à criação dos tribunais militares para “terroristas”. Foi isso que gerou 
 
a possibilidade da incomunicabilidade dos presos, das prisões sem processo 
 
legal e sem julgamentos. Foi essa “necessidade” que permitiu e permite a 
 
tortura de suspeitos. Foram leis que criaram o campo de concentração de 
 
Guantánamo.
 
Foi isso também que permitiu legalmente, sob a ordem jurídica interna 
 
norte-americana, a violação das comunicações da Presidenta Dilma 
 
Rousseff. É isso que permite que a minha e a sua correspondência sejam 
 
legalmente bisbilhotadas, ao bel prazer de autoridades que não respondem 
 
a ninguém. É essa “necessidade” que permite que parlamentares brasileiros 
 
tenham as suas ligações escutadas pela NSA, inclusive aqueles que 
 
consideram necessária uma lei antiterrorista no Brasil. 
 
A voga internacional de leis antiterrorismo nasceu dessa “necessidade”. Da 
 
“necessidade” do Estado norte-americano e de outros Estados aliados de 
 
poderem atuar de forma livre, sem respeitar os tradicionais limites impostos 
 
pela democracia, no combate a tudo o que for considerado ameaça. Assim, 
 
as leis antiterroristas nasceram de uma “necessidade” política, não de uma 
 
real necessidade jurídica. 
 
Além dessa atuação estatal, assim digamos, desinibida, tais leis também 
 
permitem, em geral, algo muito importante: a estigmatização de 
 
qualquer grupo ou movimento social considerado ameaçador ou mesmo 
 
inconveniente. Os Mapuches que o digam. Os palestinos, também. É por 
 
tal razão que até hoje a ONU não conseguiu concluir uma convenção 
 
abrangente sobre terrorismo. Não há consenso mínimo sobre o que é 
 
terrorismo e, sobretudo, não há consenso sobre que grupos ou movimentos 
 
políticos seriam terroristas.
 
Portanto, temos de ter muito cuidado nessa discussão. Nenhum país está 
 
livre de atentados terroristas. Mas nenhuma democracia está livre de 
 
atentados aos direitos fundamentais que a constituem. Podemos ter um país 
 
seguro e uma Copa segura sem a necessidade de aderir à insana “guerra 
 
contra o terrorismo”, a qual, como a “guerra às drogas”, provoca mais 
 
vítimas do que salva vidas. E a primeira vítima é, em geral, a democracia e 
 
seus direitos.
 
É sempre bom lembrar que o conceito de terrorismo nasceu 
 
fundamentalmente de uma prática de Estado. Com efeito, foi durante o 
 
período negro da Revolução Francesa que surgiu o Terror, que arrebatou 
 
mentes iludidas pelas promessas de “virtude e justiça” e fez rolar milhares 
 
de cabeças. Robespierre, em sua defesa desse período, dizia que o Terror 
 
nada mais é que a lei, ou justiça, aplicada de forma rápida, severa e 
 
inflexível.
 
Tinha razão Robespierre. A depender da lei, a Lei é o próprio Terror.
 
(*) Marcelo Zero é formado em Ciênciais Sociais para UNB e membro da assessoria parlamentar do PT

Comentários