Um arquivo vivo do comunismo

 Emir Sader

por Emir Sader

“O alfaiate de Ulm” – Lucio Magri, Boitempo Editorial

Lucio Magri foi um dos maiores dirigentes da esquerda europeia. Participar da esquerda italiana no pós-guerra já era se situar em um lugar privilegiado, porque o Partido Comunista Italiano era não apenas o maior, mas também o mais importante da Europa e de todos os que não estavam no governo.

 O partido de Gramsci e de Palmiro Togliatti, combinou força de massas e capacidade de elaboração teórica, mediante um pluralismo interno que nenhum outro partido comunista podia exibir. Sofreu, na guerra fria, o veto norteamericano a participar no governo, que se exerceu por médio do bloqueio político, mas também de ações de provocação militar, que ajudassem a dificultar seu acesso ao governo, com os socialistas.

 Lucio Magri, ainda jovem pôde trabalhar com Togliatti, fazer uma carreira nas principais estruturas do partido e depois, vinculado ao grupo Manifesto – com Rossana Rossanda, Luciana Castelina, Luigi Pintor, entre outros – ser expulso. O grupo Manifesto teve um papel importante nos anos 1970 e 1980 na Italia, como força politica, mas também pela publicação do jornal e da revista Il Manifesto, que se somou à onda esquerdista daqueles anos na Europa e no mundo.

 Mais tarde, o grupo voltou ao PCI, convidado por Enrico Berlinguer que, depois da linha de “compromisso histórico", que supunha aliança com a Democracia Cristã para governar, deu uma virada, no fim da sua carreira politica e contava com o grupo Il Manifesto dentro do partido.

 Porém Berlinguer morreu subitamente, em seguida, e Magri e seu grupo ficaram isolados dentro do PCI, presenciando, ao contrário, a virada para a direita que levou primeiro à mudança de nome do histórico partido e, depois, ao fim do partido.

  Lucio Magri foi o único que votou contra – porque o outro dirigente que atuava com ele, Pietro Ingrao, estava viajando – e conta no livro a sensação de sair, pela última vez, da histórica sede do PCI, na rua dele Botteghe Oscure, no centro de Roma, ser saudado pelos trabalhadores e voltar andando para seu apartamento.

 A sensação era de que acabava toda uma era. A URSS – de que o PCI tinha sido muito crítico – tinha terminado, substituída por governos pró-capitalistas e mafiosos, e não por alternativas democráticas do socialismo. O PCI mudava de nome, encerrando assim uma historia gloriosa – seu lema era: “Viemos de longe e iremos longe”-, enquanto triunfava Silvio  Berlusconi.

 Para completar, a companheira da vida Magri, Mara, estava muito doente. Às vésperas de morrer, ele prometeu que faria como havia feito Andre Gorz, morrer junto com sua companheira, mas Mara lhe pediu que primeiro escreve o livro que havia programado há muito tempo, que expressasse a biografia política do PCI que era, ao mesmo tempo, uma visão do movimento comunista internacional e uma biografia política do próprio Magri.

 Magri encontrou forças para produzir uma obra genial – O alfaiate de Ulm -, a mais representativa historia do PCI que, pelo papel fundamental que teve no movimento comunista internacional é, em parte, historia desse movimento e das relações da URSS com os partidos que integravam o campo socialista.

 Eu pude conviver com Magri um ano antes dele cumprir com o prometido a Mara, ter escrito o livro e se suicidar. Estive uma semana na cada dele, no centro histórico de Roma, conversando o tempo todo, saindo a caminhar pela cidade que ele adorava, sentindo como ele estava dando adeus a tudo.

 Acertei com ele a publicação do livro no Brasil – que tive, com orgulho, a possibilidade de, ainda em Clacso, apoiar a publicação pela Boitempo -, uma eventual viagem dele para conhecer aquele que – como diz Luciana Castellina, é o país mais feliz do mundo para se viver. Ele pôde ir a Inglaterra e a Espanha, debater o lançamento das versões do livro publicadas nesses países, soube que o livro ia sair no Brasil, mas não viveu o suficiente para conhecer esta edição. Um dia ele tomou o trem para a Suiça e se submeteu a um suicídio induzido, indo se juntar à sua amada Mara.

O livro é um honesto e abrangente acerto de contas de um comunista com o seu tempo. Nas suas palavras:

“Fazer um balanço do comunismo do século XX, sejam quais forem as convicções  de que partimos ou as conclusões a que chegamos, mas animados pela verdade, sem falsificação dos fatos, sem justificativas e sem abstração do contexto. Separar o joio do trigo, a contribuição dada a decisivos e permanentes avanços históricos a custos tremendos, as verdades teóricas intuídas pela iluminação do pensamento. Distinguir as diversas fases de uma evolução  e procurar em cada uma não apenas os erros cometidos e os sucessivos elementos degenerativos, mas também sus causas subjetivas e objetivas e as ocasiões que se ofereceram realmente para seguir caminhos diferentes e alcançar o objetivo perseguido. Em suma, reconstituir o fio de uma obra titânica e de um declínio dramático, sem exibir uma neutralidade impossível e sem desculpas, mas procurando aproximar-se da verdade."

 Uma obra indispensável sobre as primeiras formas históricas que foi assumindo o comunismo, indispensável para qualquer militante de esquerda que não se resigna às versões conservadoras que grassam sobre os reveses da esquerda no século XX.

Escrito por alguém que se definia assim:

“Sou, assim, um arquivo vivo, guardado no sótão.”


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