Shopping center não é praça



Miúda dissertação sobre um patético fenômeno chamado “rolezinho”, enésima prova da visão primitiva dos envolvidos

por Mino Carta — publicado 17/01/2014

A praça que mais me impressionou, entre todas as que conheço, do ponto de vista da participação, da intensidade do fervor de quem a frequenta e ama a vida, foi a principal de Bolonha, espraiada entre o palácio do rei Enzo e a catedral, com sua severa fachada enobrecida pelos altos-relevos de Iacopo della Quercia, gênio dos começos de 1400.

Aqui me permito uma digressão. A respeito do uso impróprio que se faz nas nossas plagas da palavra nobre. Horário nobre, espaço nobre etc. etc. Ora, ora: nobre por quê? Porque encarece a publicidade da televisão no caso do horário? Este esbanjamento é próprio de uma sociedade que não tem nobreza alguma e desconhece o exato significado das palavras. Fecho o parênteses e vou ao que me move, para afirmar, alto e bom som como o editorial de um jornalão: shopping center não é espaço nobre.



O shopping center resulta de uma grande hipocrisia, de um monumental engodo, de um ardil sinistro destinado a enganar o distinto público. Finge ser uma praça com as intenções mais malignas. Falava de Bolonha, a qual, diga-se, como conjunto arquitetônico, só é inferior a Florença e Veneza. Pois, ao cair da tarde, aquela praça deslumbrante enche-se de cidadãos aos milhares, lotam os bares para enfrentar umas e outras, mas a maioria fica de pé para tomar conta do asfalto, e forma grupos excitados em meio ao vozerio. O que se discute em Bolonha são, sobretudo, os problemas da cidade e a política nacional.

A praça é o logradouro público por excelência, o palco de um povo que naturalmente o elegeu e o preserva. É uma extraordinária oportunidade de congraçamento, de intercâmbio cultural, de interação democrática. O shopping, pelo contrário, não passa de paraíso dos mercadores e de garantia dos oligarcas. Aqui o povo, plebe rude e ignara de ricos e pobres em virtude de uma perversa democracia atada apenas e tão somente à ignorância geral, lá vai em busca da praça e encontra o apelo consumista, tanto mais sedutor na ausência de estímulos e alternativas. O shopping é rincão deprimente, de aterradora melancolia, onde fermentam, em áspera contraposição, ilusões e frustrações a demarcar as diferenças sociais acima da pobreza intelectual e do conformismo comuns.

E se a praça é do povo, o shopping tem dono, e cada dono conta com seus jagunços, e os exatos papéis e competências dos jagunços são bastante confusos, incertos, impalpáveis, donde sujeitos ao arbítrio quando público e privado se misturam. Chego ao ponto, os chamados rolezinhos. Jovens da periferia perfumam-se, transformam a cabeleira em casca de ouriço, vestem a bermuda das noites de sábado e refluem em bando para o shopping. Cantam, dançam, “zoam”. E “causam”, quer dizer, provocam suavemente, sem liderança, reivindicação explícita, faixas ou cartazes. Não se registraram até agora consumo ostensivo de drogas, roubos ou depredação. Mesmo assim, os donos chamam os jagunços.

No JK Iguatemi, templo do consumismo “nobre” em São Paulo, foi instituída, com aval judiciário, multa de 10 mil reais para cada participante de rolezinho, identificado na área interna ou externa do formidável estabelecimento. Um oficial de Justiça, a PM e os seguranças do shopping foram incumbidos da triagem, diligentemente executada ao sabor de critérios raciais e avaliação dos traços fisionômicos. Lombroso apreciaria.No momento, não se fala de outra coisa, sem contar os analistas a enxergarem sintomas de luta de classe. Até o governo demonstra preocupação. A presidenta Dilma convocou uma reunião ministerial para debater as possíveis consequências do fenômeno. Pode haver, quem sabe. Mas é certo que, por enquanto, o enredo é patético.

De um lado, assistimos ao sonho de consumismo da juventude suburbana, que pretende ser admitida à tertúlia, a imitar heróis novelescos e a sociedade de Caras, em busca da afirmação pelo acesso às grifes. Do outro, o pavor de sempre, o calafrio a percorrer a dorsal dos privilegiados, na expectativa da rebelião das massas. Sosseguem, leões. Por ora, não é o caso. Por ora, creio eu, e ainda por muito tempo.

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