"Para quem foi torturado, visitar o passado não é festa"
Ditadura
Em diligencia à antiga sede da Polícia do Exército na Vila Militar, ex-militantes e representantes de comissões da verdade revisitam centro de tortura no Rio
por Marsílea Gombata
Do Rio de Janeiro
Mais de 40 anos depois de terem sido presos e torturados, ex-militantes da luta armada contrários à ditadura voltaram na quinta-feira 23 para a antiga sede da Polícia do Exército na Vila Militar, no Rio de Janeiro. Ao lado de representantes da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e das comissões do Rio e de Pernambuco, eles foram acompanhados pelo comandante José da Costa Abreu, general de Divisão do Exército, e por peritos responsáveis por identificar as modificações feitas no edifício.
O local, cujo clima mescla o bucolismo típico do subúrbio carioca com o ar de repressão característico da disciplina militar, concentra um total de 51 quartéis. Apesar do nome, a Vila Militar é considerada um bairro autônomo dentro da região de Deodoro, na zona oeste da cidade.
Depois de acompanhar a visita com os peritos, o advogado e consultor Francisco Celso Calmon, articulador nacional da Rede Brasil Memória, Verdade e Justiça, falou sobre o desconforto de estar no local onde temia morrer a qualquer momento. “Para nós, que passamos por aqui, fomos torturados e tivemos companheiros assassinados em decorrência de tortura, visitar o passado não é uma festa. A gente está fazendo isso pelo nosso compromisso com a história. O que a gente quer é que o pau de arara seja abolido definitivamente”, disse ao lembrar que por ali passaram cerca de 50 militantes, entre eles sua namorada à época com 16 anos.
Calmon foi pego em 1969 na Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana, mesma época em que estiveram presos os militantes Antonio Roberto Espinosa, presente à visitação, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, Severino Viana Colou e Chael Charles Schreier, sendo os dois últimos mortos na antiga sede da PE na Vila Militar. “Ouvi os gritos do Chael até ele não gritar mais”, lembra Calmon.
O corpo do estudante de medicina Chael Charles foi levado para o Hospital Central do Exército, onde o general Galeno Penha Franco recusou-se a declará-lo morto no hospital, como pretendiam os agentes torturadores, e mandou que fosse feita a autópsia. Apesar de um laudo elaborado por três médicos ter constatado as lesões sofridas por Chael, o Exército anunciou na época que ele havia morrido de ataque cardíaco em consequência de ferimentos sofridos em um tiroteio. Maria Auxiliadora Lara Barcellos, que acabou se suicidando em Berlim no ano de 1976, e Espinosa foram os últimos a ver Chael com vida. Em depoimento, afirmaram que o militante da VAR-Palmares tinha o pênis dilacerado e o corpo ensopado de sangue.
Severino Colou, por sua vez, era sargento da Polícia Militar da Guanabara e passou a integrar o Colina (Comando de Libertação Nacional). Preso, foi levado para a PE da Vila Militar, e encontrado morto na manhã de 24 de maio de 1969. Apesar de relatos oficiais falarem que ele havia se "enforcado com a própria calça, amarrada em uma das barras da cela", depoimentos de ex-presos políticos nas auditorias militares apontam que sua morte ocorreu sob tortura.
Ex-advogada de presos políticos, Eny Moreira, contou ter sido recebida na antiga sede da PE com uma cordialidade inusual. “Hoje nos receberam de forma estranhamente respeitosa e civilizada. Vínhamos aqui, e o primeiro obstáculo eram oficiais que se achavam donos do país. Havia uma dificuldade enorme para se chegar ao cliente, mesmo quando vínhamos com alvará de soltura assinado pelo presidente do Superior Tribunal Militar”, contou.
Moreira falou ainda de casos no qual testemunhou a tortura de militantes contrários ao regime, como no caso de Maria do Nascimento Furtado. “No dia 10 de novembro de 1972 no Jornal Nacional foi anunciado que teria morrido num tiroteio essa ‘terrorista’, e a família pediu para eu receber o corpo. Quando eu recebi, ela estava literalmente dilacerada. Tinha um olho pendurado, um afundamento no maxilar, não tinha bico do seio, tinha um rasgo que ia do umbigo até a vagina, uma fratura exposta no braço. E a última coisa que fizeram com ela foi apertar um torniquete de aço para pressionar o cérebro. Por isso o olho saltou.”
Irmã do militante pernambucano até hoje desaparecido Fernando Santa Cruz, Roselina acompanhou a visita ao antigo centro de tortura no qual também ficou presa antes de ser levada para a penitenciaria de Bangu. “Foi difícil voltar aqui. Estou muito mexida”, contou. “Aqui, sempre fui torturada nua e por homens. Desde cortes nos seios a choques na vagina.”
Estava presente na visita também o cineasta Silvio Da-Rin, vítima da repressão da ditadura e diretor de Hércules 56, baseado no livro que conta a história do grupo de militantes presos que foram retirados do País em troca da libertação do então embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, sequestrado pelo MR-8 em 1969.
Audiência. A visita à antiga sede da PE na Vila Militar antecede a audiência pública de sexta-feira 24 sobre os abusos cometidos por agentes torturadores do Estado contra militantes contrários ao regime militar. “Essa diligência é fundamental para a sessão de amanhã, pois vamos fechar um quebra-cabeça, encaixando as peças”, disse Rosa Cardoso, integrante da CNV.
Para a audiência desta sexta-feira 24 foram convocadas a depor seis vítimas (Da-Rin, Calmon, Espinosa, Luiz Antonio Medeiros, José Delce Ribeiro Façanha e Amílcar Baiardi) e alguns agentes da repressão envolvidos com as mortes e torturas ocorridas na Vila Militar (Ary Pereira de Carvalho, Celso Lauria, Euler Moreira de Moraes, Hargreaves Figueiredo Rocha, Luiz Paulo Silva de Carvalho). Uma vez notificados, os convocados são obrigados a comparecer. Caso contrário, poderão responder pelo crime de desobediência.
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