Para além do Lobo de Wall Street
Novo filme da dupla DiCaprio e Scorsese trata sobre a deterioração e constituição do homem médio pela dinheirama e liberdade da especulação.
Caio Sarack
“O Lobo de Wall Street” (2013), novo filme da dupla DiCaprio e Scorsese, trata sobre a deterioração e constituição do homem médio pela dinheirama e liberdade da especulação. Um filme blockbuster, ma non troppo! Scorsese tem paixão e erudição cinematográfica que acabam por dar bastante qualidade ao filme: perspectiva, cortes, fotografia, impedindo a fórmula do filme hollywoodiano. O diretor não faz uso ingênuo de câmeras, existe necessidade expressiva: fala pela filmagem além de falar pela personagem.
O filme começa e se desenrolam suas três horas. É interessante ver que o progressismo americano quando chega perto de esgarçar seus limites, enfraquece e se vê completamente desfamiliarizado com as tensões mais fundamentais do capitalismo. O filme de Scorsese é um retrato de época e das contradições que a liberdade do mercado pode gerar.
A tensão que o filme evoca é importantíssima. Não existe um homem imune a seu processo social, eles a todo momento condicionam um ao outro: DiCaprio é Jordan Belfort, especulador da bolsa de Wall Street que vê e participa da maleabilidade ética na competição dos mercados. O contido morador do Bronx vai a Wall Street e se depara com a figura do investidor criativo, a imagem higiência das propagandas do self-made-man dá lugar a imagem sexual e extremamente luxuriosa. Os excessos desvirtuam o homem que trabalha o bom trabalho, mas agora o constituem.
A astúcia de Mr. Belfort pode muito bem agradar o público, acreditar no mérito liberal é convidaditivo e mais, sedutor.
No momento seguinte à deterioração da personagem, a liberação de todas as vontades (que sejam ou não mediadas pelo dinheiro, mas sempre referidas a ele) podem causar um seguido desconforto. “Eu nunca deixaria o dinheiro tomar conta de mim”, diriam uns. “Eu não preciso de tanto dinheiro assim”, diriam outros. Os mais incontidos invejam Mr. Belfort. Entretanto, o filme não recai na mera deterioração, mas na confusão da personagem. A interpretação de DiCaprio dá o tom da sua nova constituição: o homem pacato muda e permanece. Deseja o que sempre desejou, mas agora o atinge. O homem ambicioso, querendo melhores condições pra sua família, agora conserva e muda: a ambição de antes agora tem grandes espaços para se ver livre.
Ainda é preciso ver a amizade verdadeira em meio a completa individualidade da competição capitalista; ama-se mesmo na total automatização das relações sociais, tem-se compaixão (investe-se?) e confiança (quanto maior o risco, maior a rentabilidade, diz Wall Street). O homem luta com todos, mas também consigo mesmo em “O Lobo de Wall Street”.
É interessante ver como se desenha a “distopia” do filme. Ele parece - e isto só num primeiro momento - expor pela ficção o que, paralelamente e com menos força, faz Michael Moore em seus documentários: o homem-médio-que-trabalha é moralmente melhor. Scorsese, no entanto, prossegue na crítica, e a ironia que ele tensiona em Mr. Belfort mostra o homem constituído em bases e valores facilmente mobilizados pelo Capital: a ética no trabalho, a família tradicional, a compaixão e confiança, todas elas aparecem num momento como fantasias que podem ser suspensas num estalar de dedos, mas ainda permanecerem como organizadores formais da vida social. A contradição constitui o homem e Scorsese deixa isto à mostra quando leva, no filme, estas contradições a um certo limite: o do excesso.
Mesmo quando a punição existe, que tenhamos alguma resposta de justiça ao excesso de Mr. Belfort, o lobo de Wall Street sabe que todas as relações já foram dominadas pelo ímpeto de acumular. O Lobo de Wall Street vê que antes do consumo é preciso fazer com que ele se comporte como vontade e tesão individual. É necessário que se reproduza o mesmo de várias maneiras.
Mr. Belfort goza a boa vida, mas é preciso se controlar, o homem não pode coincidir com seu prazer, é preciso que a liberdade não exceda o sistema em que foi constituída, mas que o sistema se expanda a partir de seu excesso. Essa é a sentença do Capital. A possibilidade do excesso, do exagero e da inconsequência só existe porque ainda subjaz a relação inequívoca da mercadoria.
Scorsese nos entrega um belo filme e DiCaprio uma belíssima atuação. O filme acaba resvalando na dualidade entre os “lobos e ovelhas”, no entanto, seu movimento ao mesmo tempo complica esse par. É um filme que por vezes escapa de si e, portanto, necessário para entendermos como o centro do capitalismo pensa a distopia, o anúncio de crise fundamental. Em resumo, O Lobo de Wall Street intensifica os traços, vícios e virtudes confundidos da personagem afim de fazer clarear os problemas que estão adormecidos na realidade (não só) americana.
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