Hannah Arendt, o sionismo e a banalização do mal
“Em 11 de maio de 1960, às seis e meia da tarde, quando Eichmann desembarcou, como sempre, de um ônibus que o trouxe para casa de seu lugar de trabalho, ele foi agarrado por três homens e, em menos de um minuto, jogado dentro de um carro que estava à espera, e que o levou para uma casa alugada num subúrbio remoto de Buenos Aires.
Por Claudio Daniel
Não foram usadas drogas, nem cordas, nem algemas, e Eichmann reconheceu imediatamente que se tratava de um trabalho profissional, uma vez que não foi usada nenhuma violência desnecessária; ele não foi ferido. Ao lhe perguntarem quem era, ele respondeu instantaneamente: Ich bin Adolf Eichmann” (Arendt, 2013: 262).
Hanna Arendt
Nesta breve passagem, a filósofa alemã Hanna Arendt descreve o rapto do outrora poderoso obersturmbannfuhrer (tenente-coronel) da SS Adolf Eichmann por um comando de agentes do Mossad (o serviço secreto israelense), que o levaram a Tel Aviv para ser julgado por crimes contra a humanidade. A ação israelense gerou controvérsia, uma vez que foi realizada sem comunicação prévia às autoridades argentinas e sem autorização formal do país, que não tinha tratado de extradição com Israel e que já abrigara diversos criminosos nazistas em passado recente, entre eles o tristemente célebre dr. Josef Mengele, responsável por macabras experiências médicas no campo de extermínio de Auschwitz.
O sequestro efetuado pelo comando israelense, nesse contexto político e diplomático, é justificável moralmente segundo a autora, que cita os diversos pedidos de extradição feitos pela Alemanha Ocidental para a captura de criminosos de guerra como Karl Klingenfuss e o próprio Mengele, recusados pelo governo argentino. A violação da legalidade para a prisão e julgamento de Eichmann, porém, não seria o episódio mais polêmico desse processo, que causou comoção e dividiu opiniões na sociedade civil israelense e entre intelectuais no mundo ocidental. Hannah Arendt, que escreveu uma série de artigos sobre o julgamento para a revista norte-americana The New Yorker, em 1961, foi especialmente criticada pelos sionistas pelo enfoque crítico de suas matérias, reunidas posteriormente no livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, publicado pela primeira vez em 1963 e relançado há pouco no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2013).
Sua interpretação do sentido político do julgamento, do caráter do réu e do próprio processo legal são instigantes e ainda hoje mantêm triste atualidade, em face dos recentes atos de autoritarismo jurídico no país, no episódio conhecido como “mensalão”, em que réus foram condenados sem provas, numa campanha orquestrada pela mídia.
Hannah Arendt não questiona, em nenhum momento, a dimensão real da culpa de Eichmann, responsável direto pelo transporte de prisioneiros judeus para os campos de extermínio de Treblinka, Auschwitz, Belzec, Sobibor, entre outros, onde foram assassinados milhões de judeus, ciganos, eslavos, comunistas, homossexuais, cujo número exato ainda hoje é tema controverso (a própria autora, judia alemã, escreve a respeito do número de judeus assassinados: “o total de vítimas da Solução Final é uma suposição – entre 4 e meio e 6 milhões – jamais comprovada”, alegação que, em si mesma, se pronunciada hoje, receberia a infamante acusação de antissemitismo).
O que a filósofa alemã -- discípula de Martin Heidegger e Karl Jaspers – irá colocar em questão é o sentido político do julgamento, que procurou responsabilizar Eichmann para além de sua autoridade e atuação (inclusive acusando-o, sem qualquer evidência, de vínculo com governos árabes). Usando uma figura de retórica, a metonímia, em que a parte indica o todo, podemos dizer que, na visão de Arendt, quem estava no banco dos réus não era apenas um burocrata de baixa patente e condição intelectual medíocre, que seguia ordens da cúpula de seu departamento na Gestapo, sem nunca ter manifestado qualquer problema de consciência, dúvida ideológica ou reação emocional; Eichmann representava, no tribunal em Tel Aviv, o regime nazista, a Solução Final, e mais ainda, os dois mil anos de história do antissemitismo ocidental (cujos antecedentes na era cristã remontam às cartas de Paulo e ao Concílio de Nicéia, que condenou os judeus por “deicídio”, assassinato de Cristo). Num julgamento de tamanha importância simbólica, é claro que o veredicto estava definido desde o princípio; o ritual na corte era apenas isso, um ritual, uma performance dramática voltada à opinião pública internacional, ou, como prefere a autora, “um julgamento-espetáculo” (Arendt, 2013: 19) dirigido por David Ben-Gurion, o primeiro-ministro israelense, para convencer sua plateia de que hoje, graças à existência do Estado de Israel, tais crimes poderiam ser julgados em um tribunal judeu, em um país com força bélica suficiente para defender-se de qualquer nova ameaça a sua sobrevivência. Neste sentido, podemos fazer um paralelo entre a interpretação de Hannah Arendt e as teses defendidas por outro intelectual judeu, Norman Finkelstein, que no livro A indústria do holocausto (Rio de Janeiro: Record, 2001) afirma:
O dogma do Holocausto sobre o ódio eterno dos não-judeus serviu tanto para justificar a necessidade de um Estado judeu quanto para se beneficiar com a hostilidade dirigida a Israel. O Estado judeu é a única salvaguarda contra a próxima (inevitável) explosão de antissemitismo homicida; por conseguinte, o antissemitismo homicida está por trás de todos os ataques ou mesmo manobras defensivas contra o Estado judaico (...) Esse dogma também conferiu total autoridade a Israel: como os não-judeus estão sempre querendo matar os judeus, eles têm o direito de se proteger ao menor ataque. Qualquer expediente usado por Israel, mesmo agressão e tortura, constitui legítima defesa (Finkelstein, 2001: 61-62).
Hannah Arendt é uma intelectual de formação humanista a quem repugna o irracionalismo e a vulgaridade da ideologia nacional-socialista, mas, ao mesmo tempo em que investiga as proporções reais do genocídio – e seu livro tem capítulos específicos onde ela apresenta informações precisas sobre a aplicação da Solução Final na Itália, Grécia, Romênia, Hungria, Polônia e outros países europeus --, ela denuncia também a forma autoritária como o Estado de Israel aplica a justiça a um criminoso notório, sem lhe garantir amplo direito de defesa. O que poderia ser um exemplo de julgamento rigoroso, ético, imparcial (até onde é possível ser imparcial no processo contra um monstro), tornou-se um evento midiático com explícito viés político. A esse respeito, escreve a autora:
O que logo se comprovou é que Israel era o único país do mundo em que testemunhas da defesa não podiam ser ouvidas, e onde certas testemunhas de acusação, aquelas que já haviam dado declarações em julgamentos anteriores, não podiam ser interrogadas pela defesa. E isso era mais sério ainda porque o acusado e seu advogado não estavam, de fato, “em posição de obter seus próprios documentos de defesa”.(O dr. Servatius havia apresentado 110 documentos contra quinhentos apresentados pela acusação, mas dos primeiros apenas cerca de uma dúzia eram originais da defesa, e consistiam em parte excertos dos livros de Poliakov e Reitlinger, todo o resto, com exceção das dezessete tabelas traçadas por Eichmann, havia sido escolhido do abundante material reunido pela acusação e pela polícia de Israel. Evidentemente, a defesa recebeu as migalhas da mesa do rico.) (...) A principal limitação da defesa em Nuremberg, assim como em Jerusalém, era que lhe faltava o pessoal de assistentes de pesquisa necessários para examinar a massa de documentos e encontrar qualquer coisa que pudesse ser útil para o caso. Ainda hoje, dezoito anos depois da guerra, nosso conhecimento do imenso material de arquivo do regime nazista limita-se em grande parte à seleção feita com propósito de acusação (Arendt, 2013: 241-242).
Em outra passagem, a autora escreve:
Os procedimentos legais israelenses contrariavam o procedimento continental – ao qual Eichmann tinha direito devido a sua origem – na medida em que exigiam que o acusado apresentasse provas para a sua defesa, e isso o acusado não fora capaz de fazer porque nem as testemunhas nem os documentos da defesa estavam disponíveis em Israel. Em resumo, o tribunal tinha sido injusto, o julgamento tinha sido injusto.
Os trabalhos diante da Corte de Apelação duraram apenas uma semana, depois da qual a corte retirou-se por dois meses. Em 29 de maio de 1962, foi lido o segundo julgamento – um pouco menos volumoso do que o primeiro, mas ainda com 51 páginas em espaço simples. (...) O julgamento da Corte de Apelação foi, na verdade, uma revisão do julgamento da corte menor, embora não o dissesse. Em marcante contraste com o julgamento original, considerava-se agora que “o acusado não recebera nenhuma ‘ordem superior’. Ele era seu próprio superior, e dava todas as ordens em questões que afetavam os problemas judeus (idem, 270-271).
A conclusão da corte era falsa: como a própria Hannah Arendt expusera ao longo do livro, Eichmann estava subordinado, na Gestapo, a Muller, Kaltenbruner e Himmler; ele não poderia tomar nenhuma decisão que contrariasse o alto comando. Nesse ponto, a análise psicológica que Arendt faz de Eichmann se revela não como simples especulação ou impressionismo, mas como elemento necessário à compreensão dos fatos. Eichmann era, na visão da autora, essencialmente, um homem medíocre, um burocrata; não tinha o carisma ou a veleidade de um líder, nem a inteligência (ainda que maligna) de um Goebbels, nem mesmo a coragem ou ousadia de um Rommell; o que Eichmann sabia fazer era receber as instruções do alto comando e aplicá-las meticulosamente, sem levar em consideração nenhum aspecto moral ou humano: foi um monstro, sim, mas um monstro cumpridor de ordens, não a inteligência que planejou e comandou o extermínio (daí a autora falar na “banalidade do mal”). O tribunal israelense, ao elevar o grau de culpa de Eichmann para condená-lo, perdeu a oportunidade de dizer ao mundo: nós somos capazes de julgar e condenar um criminoso como Eichmann num processo legal ético e justo. Outro aspecto do livro de Hannah Arendt que tem sido menos comentado nos estudos sobre a autora alemã é a coautoria do Holocausto pelo Movimento Sionista. A afirmação pode soar cruel, até insultuosa, mas vamos apresentar os fatos. Conforme relata Hannah Arendt,
Durante seus primeiros anos, a ascensão de Hitler ao poder pareceu aos sionistas uma “decisiva derrota do assimilacionismo”. Por isso os sionistas puderam, ao menos durante algum tempo, se permitir certa medida de cooperação não criminosa com as autoridades nazistas; os sionistas também acreditavam que a “desassimilação”, combinada à emigração de jovens judeus e, esperavam eles, de capitalistas judeus para a Palestina, poderia ser uma “solução mutuamente justa”; na época, muitos funcionários alemães tinham essa opinião, e esse tipo de conversa parece ter sido bastante comum até o fim. Um judeu alemão sobrevivente de Theresienstadt relata em uma carta que todas as principais posições do Reichsvereinigung (1) apontadas pelos nazistas eram ocupadas por sionistas (enquanto o Reichsvereinigung autenticamente judeu era composto tanto de sionistas como de não-sionistas), porque os sionistas, segundo os nazistas, “eram os judeus ‘decentes’, porque eles também pensavam em termos ‘nacionais’.
(...)
Nesses primeiros anos, havia um acordo mútuo altamente satisfatório entre as autoridades nazistas e a Agência Judaica para a Palestina – um Ha’avarah, ou Acordo de Transferência, que permitia que um emigrante para a Palestina pudesse transferir seu dinheiro para lá em bens alemães e trocá-lo por libras ao chegar. Isso se tornou a única forma legal de um judeu levar consigo seu dinheiro (a única alternativa era a abertura de uma conta bloqueada, que só podia ser liquidada no exterior com uma perda de 50% a 95%). O resultado foi que nos anos 30, enquanto o judaísmo norte-americano fazia um grande esforço para boicotar mercadorias alemãs, a Palestina vivia inundada de todo tipo de bens made in Germany.
Mais importantes para Eichmann eram os emissários da Palestina que procuravam a Gestapo e a SS por iniciativa própria, sem aceitar ordens nem dos sionistas alemães nem da Agência Judaica para a Palestina. Eles vinham a fim de convocar ajuda para a emigração ilegal de judeus para a Palestina governada pela Grã-Bretanha, e tanto a Gestapo como as SS ajudavam-nos (Idem, 73-74).
A cooperação inicial entre nazistas e sionistas, que Hannah Arendt chama de “não-criminosa”, estava relacionada ao projeto do estabelecimento de um Estado Judeu na Palestina, “mutuamente benéfico” às partes envolvidas (nessa época, não havia ainda o projeto da Solução Final e os nazistas discutiam diferentes saídas para a “Questão Judaica”, como a emigração forçada, a deportação de milhões de judeus europeus para o Leste ou a criação de um estado judeu na Palestina, Uganda ou em Madagascar, esta última uma ilha de possessão francesa com 4.370.000 habitantes e uma área de 365 mil quilômetros quadrados. “O ‘Estado Judeu’ deveria ter um governador policial sob a jurisdição de Himmler”, escreve Arendt. (O plano não deu certo pela dificuldade óbvia de se transportar 11 milhões de judeus pela via marítima durante a guerra.) Em 21 de setembro de 1939, o chefe do serviço de inteligência (SD) da SS, Heydrich, convocou uma reunião de “chefes de departamento” do RSHA (2) e dos Einsatzgruppen (grupos de extermínio que já operavam na Polônia) na qual anuncia que todos os judeus nos territórios ocupados seriam concentrados em guetos, administrados por Conselhos de Anciãos Judeus escolhidos pelos nazistas. Começa uma nova etapa na solução da “Questão Judaica” e na colaboração entre sionistas e nazistas para a Solução Final. Conforme escreve Hannah Arendt
Eichmann e seus homens informavam aos Conselhos de Anciãos Judeus quantos judeus eram necessários para encher cada trem, e eles elaboravam a lista de deportados. Os judeus se registravam, preenchiam inúmeros formulários, respondiam páginas e páginas de questionários referentes a suas propriedades, de forma que pudessem ser tomadas mais facilmente; depois se reuniam nos pontos de coleta e embarcavam nos trens. Os poucos que tentavam se esconder ou escapar eram recapturados por uma força policial judaica especial. No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a cooperar (Idem, 131).
Mais adiante, a autora diz:
Em Amsterdam, assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o dinheiro dos deportados, para abater as despesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, ao suprir forças policiais para ajudar a prender os judeus e conduzi-los aos trens, e até, num último gesto, ao entregar os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final. Eles distribuíam os emblemas da Estrela Amarela e, às vezes, como em Varsóvia, “a venda de braçadeiras tornou-se um negócio normal; havia as faixas comuns de pano e as faixas especiais de plástico que eram laváveis”. Nos manifestos que publicavam, inspirados pelos nazistas, mas não ditados pelos nazistas, ainda se pode perceber o quanto gostavam de seus novos poderes – “O Conselho Judeu Central foi brindado com o direito de dispor absolutamente de toda riqueza espiritual e material dos judeus e de toda força de trabalho judaica”, como dizia o primeiro anúncio do Conselho de Budapeste. Sabemos o que sentiam os funcionários judeus quando se transformaram em instrumentos de assassinatos: como capitães “cujos navios estavam a ponto de afundar e que conseguiam levá-lo em segurança até o porto atirando ao mar parte de sua preciosa carga” (...) A verdade era ainda mais terrível. O dr. Kastner, da Hungria, por exemplo, salvou exatamente 1684 pessoas entre cerca de 476 mil vítimas. A fim de não deixar a seleção a cargo do “destino cego”, eram necessários “princípios realmente sagrados como força guia para a fraca mão humana que registra no papel o nome de uma pessoa desconhecida e com isso decide sua vida ou sua morte”. E quem esses “princípios sagrados” selecionavam para a salvação? Aqueles “que haviam trabalhado toda a vida pela zibur (comunidade) – isto é, os funcionários – e os ‘judeus mais importantes’”, como diz Kastner em seu relato (idem, 134-135).
Os funcionários do Conselho de Anciãos Judeus gozavam de inúmeros privilégios. Na Hungria, por exemplo, “os sionistas tinham liberdade de ir e vir praticamente como quisessem, estavam isentos de usar a estrela amarela, recebiam permissão para visitar os campos de concentração na Hungria” e até mesmo, no caso do sinistro dr. Kastner, de “viajar pela Alemanha nazista sem nenhum documento de identificação revelando que era judeu” (idem, 219). Obviamente, a “generosidade” dos nazistas para com as lideranças sionistas foi sendo reduzida conforme a Solução Final ganhava os contornos de um genocídio em escala industrial, em que os colaboracionistas entravam por último na câmara de gás – quando não conseguiam fugir para o exterior. A cumplicidade do Movimento Sionista com o Holocausto, porém, não pode ser minimizada. Conforme escreve Hannah Arendt,
Onde quer que vivessem judeus, havia líderes judeus reconhecidos, e essa liderança, quase sem exceção, cooperou com os nazistas de uma forma ou de outra, por uma ou outra razão. A verdade integral era que, se o povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e seis milhões de pessoas. (Pelos cálculos de Freudiger, metade delas estaria salva se não tivesse seguido as instruções dos Conselhos Judeus.) (idem, 141-142).
Ao apresentar a responsabilidade das autoridades sionistas no maior genocídio da história do século XX, Hannah Arenmdt coloca o dedo na ferida: não basta culpar os nazistas; não basta eleger Eichmann como a metonímia de dois mil anos de antissemitismo; é preciso dizer a verdade – toda a verdade. A crítica da filósofa alemã ao sionismo, porém, não se limita ao passado, dirige-se também ao presente, à realidade concreta do Estado de Israel, que com macabra ironia – ou paródia – aplica leis similares às promulgadas em Nuremberg – as famigeradas “Leis de Nuremberg”. Escreve a autora alemã:
Daí a estranha vaidade: “não fazemos distinções étnicas”, que soou menos estranha em Israel, onde a lei rabínica governa o status quo pessoal de cidadãos judeus, proibindo judeus de casar com não-judeus; os casamentos realizados no exterior são reconhecidos, mas os filhos de casamentos mistos são legalmente bastardos (filhos de pais judeus nascidos fora do casamento são legítimos), e se a mãe de alguém por acaso é não-judia essa pessoa não pode nem se casar nem ser enterrada (Idem, 17).
A compreensão de Hannah Arendt acerca do sionismo como ideologia racista e nacionalista é inequívoca e os fatos e argumentos apresentados por ela no livro Eichmann em Jerusalém são tão demolidores que até nos dias atuais a autora é persona non grata nos círculos sionistas. Sua visão sobre os conflitos no Oriente Médio, infelizmente, não acompanhou a mesma lucidez, imparcialidade e espírito crítico: refutando a comparação entre o massacre dos habitantes árabes de Kfar Kassem e os crimes nazistas, a autora diz que “sem dúvida esse caso se refere a um ato isolado, não – como no caso de Eichmann – a uma atividade que se prolongou durante anos, na qual houve crime sobre crime” (idem, 317). Por desconhecimento, omissão ou cumplicidade, Hannah Arendt deixou de citar as centenas de aldeias palestinas destruídas em 1948 durante a Nakba (“catástrofe” em árabe), que levaram 750 mil pessoas ao exílio, proibidas, pela legislação israelense, de voltarem a suas casas e terras (atualmente, o número de refugiados palestinos e seus descendentes no exterior é de cinco milhões de pessoas). Ninguém é perfeito.
Notas
1) Associação dos Judeus do Reich na Alemanha, criada em 4 de julho de 1939 por uma portaria do Ministério do Interior do Reich, à qual todos os judeus alemães eram obrigados a filiar-se. A entidade colaborava com a Gestapo fazendo listas com nomes de judeus para fins de deportação.
2) O Reichssicherheitshauptamt (Escritório Central de Segurança do Reich), abreviado como RSHA, era o órgão que controlava as polícias alemãs, segurança alemãs no período de 1939, quando foi criada, até 1945.
Referências bibliográficas
Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Finkelstein, Norman. A indústria do Holocausto. Rio de Janeiro: Record, 2001.
(*) Claudio Daniel é poeta, curador de literatura no Centro Cultural São Paulo e editor da revista Zunái (www.zunai.com.br).
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