Dez graus abaixo de zero, na fila para comprar Hollister


 [Ele te espera]

por Luiz Carlos Azenha, em Nova York

Morar duas décadas em qualquer lugar  desgasta o fascínio do turista curioso. A primeira neve derrete, vira água e congela e vira água de novo, dependendo da temperatura, e aquilo que era tão bonito agora é apenas lama acumulada nas esquinas.

Nova York é uma cidade em eterna mutação, mas para quem não está de passagem isso pode ser compensado por algumas instituições que dão alma e algum sentido de permanência à metrópole, como os museus, as equipes esportivas e os jornais.

Entre 1985, quando desembarquei pela primeira vez para ficar em meio a uma tremenda nevasca, e 2014, a cidade passou por um tremendo processo de gentrificação.

Havia, lá atrás, áreas de Nova York a serem evitadas. Partes do Harlem pareciam recém-bombardeadas. A Alphabet City ficava deserta depois das 10 da noite. Era preciso cuidado no metrô, em alguns horários — ou pelo menos este era o alerta dado aos recém-chegados. Havia prostituição no Times Square e tráfico de drogas em muitas esquinas (o celular e a pronta entrega contribuiram para acabar com isso muito mais que os planos mirabolantes da polícia, já que os criminosos migram; a polícia nunca acaba com o crime, ela espanta o crime).

Hoje, em boa medida, isso mudou. Com o sacrifício da diversidade. Os bairros que tinham alguma identidade própria ficaram muito parecidos uns com os outros. Foi-se o Little Italy. A rua dos brasileiros virou rua dos coreanos. O Village perdeu o sabor, a famosa Christopher Street, símbolo das batalhas pelos direitos dos gays, hoje é igualzinha a muitas outras.

Por muitos anos morei na Roosevelt Island, uma ilhota no meio do East River, entre Queens e Manhattan. Aquela, do bondinho vermelho. Havia muitos apartamentos sob “rent control”, ou seja, com aumentos de aluguel sob controle da lei criada para evitar especulação imobiliária. Alguns edifícios, construídos com financiamento público na ilha, tinham como objetivo promover a diversidade, com unidades destinadas especificamente a famílias de baixa renda.

Cheguei a participar de uma campanha que pretendia barrar a construção de novos edifícios na ilha. Porém, eram os anos do “greed is good”. Dos yuppies. Dos salários estratosféricos em Wall Street para jovens recém-saídos da faculdade.

Eles ganharam mais uma, acompanhando a incrível e contínua guinada dos Estados Unidos à direita. Subiram os prédios na Roosevelt Island, com uma concessão: a maioria das unidades era agora “rent free”, ou seja, aluguel de acordo com as flutuações do mercado, mas algumas poucas ficaram reservadas para moradores de baixa renda.

O mesmo processo se deu em muitos outros bairros. Na prática, significou a expulsão dos pobres. O aumento da rotatividade nos imóveis. A morte das vizinhanças tradicionais. A gentrificação.

A padronização de gostos e costumes se refletiu no comércio: hoje em dia você caminha na Alphabet City sem saber se está no Upper East Side. Como diz uma amiga, desde que um ex-prefeito transformou a babel do Times Square num espaço da Disney, Manhattan foi gradativamente se transformando num imenso shopping center.

Hoje, mesmo as casas mais tradicionais da cidade se transformaram em “tourist traps”. Por causa da crise econômica, instituições veneráveis calibram sua programação para atrair turistas, o que implica em buscar um mínimo denominador comum. Com isso, as ideias ousadas e radicais foram completamente descartadas; aposta-se na pasteurização ou na provocação barata.

É engraçado ver famílias claramente desfuncionais desfrutando dos ambientes “family friendly” vendidos pelo marketing de uma cidade que se já se orgulhou de ser o reino da trapaça.

Na loja de uma das marcas do momento, a Hollister, as filas de consumidores agora se formam na porta. Em tese, é para evitar a superlotação. Na verdade, é o marketing da exclusividade

Para ter Hollister — ironicamente, marca dos bem nascidos do sul da Califórnia — é preciso enfrentar “sacrifícios”. E, assim, num dia de dezembro algumas dezenas de pessoas esperavam bovinamente na fila, sob a sensação térmica de menos dez graus centígrados.

Lá dentro, confundem-se com as mercadorias os modelos que fazem parte da vitrine viva: sem camisa, solícitos, tiram fotos com a clientela.

Como diria algum guru do “novo marketing”, é preciso estimular a consumidora a ter “a body experience” com a marca. Ou seja, que ela não apenas se lembre na hora de comprar camisetas, mas que salive sempre que ouvir falar em “Hollister”.

Como mães e namoradas influenciam as compras de adolescentes e jovens, pronto: está dominado o mercado!

Na visita anterior que eu havia feito a Nova York, em 2011, já tinha me assustado com as manchetes cavernosas do tabloide do magnata Rupert Murdoch, o New York Post, contra o Occupy Wall Street.

Por algumas semanas, o Occupy montou acampamento num pequeno parque ao sul da ilha de Manhattan, na região de Wall Street. Era um protesto contra o mundo que existe em função de acumular renda para o 1% do topo.

O Post chegou a sugerir que os novaioquinos corriam o risco de sofrer estupro na mão das hordas de manifestantes do Occupy.

Três anos depois, a coisa piorou.

Nova York hoje convida a outro tipo de “radicalismo”: esperar uma hora sob 10 graus abaixo de zero para comprar Hollister, como se fosse a senha para ter acesso ao mundo do 1%!

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