Dar ao horror o seu nome

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por: Saul Leblon

Desidratar a dimensão política das escolhas inscritas  na transição econômica  vivida  aqui e no mundo é o truque conservador para impor a sua agenda ao debate eleitoral de 2014.

Há um esforço descomunal para capturar o mando do jogo e trazer a disputa do futuro para o campo dos interesses graúdos - ‘racionais’, ‘desideologizados’, diriam eles.

Nessa arena de suposta coerência ‘em si’ da macroeconomia, decide-se o Brasil longe das arquibancadas e dos anseios  majoritários da população.

Consultores do dinheiro grosso exibem seu talento em chutar com os dois pés  ajustes ‘para o país crescer mais rápido’.


O ‘baixo crescimento’ do governo Dilma, como se sabe, é o novo juízo final que irrompeu nos sermões depois que todos os demais foram adiados por motivos de força maior.

A saber: a inflação não explodiu – fechou 2013 em 5,9%, dentro dos limites previstos originalmente; o Brasil está colhendo uma safra recorde de 188 milhões de toneladas, o que afasta a hipótese de um tomataço em 2014; o abismo fiscal foi calafetado por um superávit de R$ 75 bi; o rebaixamento ‘iminente’ da nota de risco  tem sido descartado por agências incansavelmente acionadas pelo jornalismo isento.

O  drible conservador diante dos revezes começa com uma canelada que tira do jogo a realidade de um planeta conflagrado por cinco anos de colapso do sistema financeiro internacional.

Consumada a abdução da desordem neoliberal, o resto adquire coerência irretocavel.

 ‘Apesar da monstruosa gastança fiscal do PT, o país não está mais preparado agora para crescer de forma rápida e sustentável’, sentenciam sábios da memória seletiva, que abstraem os incômodos da história diariamente em suas colunas impecáveis.

‘Essa é uma implicação do resgate do velho desenvolvimentismo’, espicaça um guru do time, Marcos Lisboa, ex-cérebro econômico da Fazenda na gestão Palocci –o que diz muito dele e da gestão.

O que Lisboa acusa de velho desenvolvimentismo é a tentativa de coordenar os mercados pelos interesses da sociedade.

Não se pode dizer que  nos limites da democracia realmente existente no país isso se faça de forma efetivamente participativa.

Mas  não é o déficit de democracia econômica que orienta as preocupações da inteligência neoliberal.

São justamente os avanços nesse quesito que mais afetam a sensibilidade de uma epiderme alérgica a políticas sociais, ganhos reais do salário mínimo, prioridade ao emprego, crédito popular etc.

A ideia central da crítica conservadora é a de que basta reduzir o ‘custo Brasil’ --leia-se, extirpar direitos e minimizar o Estado--  para o investimento fluir, a economia crescer rápido, correr leite nos rios e verter  mel de suas nascentes.

O conjunto resiste pouco ao sol dos trópicos e mesmo ao de latitudes mais gélidas.

Ou não será justamente o oposto  o que se assiste no hemisfério norte, nos dias que correm?

Na Europa, a contabilidade das perdas e danos  não deixa dúvida sobre quem ganhou e quem perdeu na maior crise do capitalismo depois de 1929.

A zona do euro estoca 26,5 milhões de desempregados e acumula déficits públicos paralisantes, que a recessão saneadora não deixa cair (leia nesta pág. a entrevista com o presidente do parlamento europeu –‘Martin Schulz: capitalismo selvagem destruiu estados e municípios’)

A paralisia alimenta o curso de uma deflação combinada com custos financeiros que não flexionam na mesma proporção.

Esmagamento de empresas e famílias é o que acontece sob as pinças desse turquês.

O principal assunto na Grécia hoje são os bancos de alimentos -- último esteio das sobras humanas expelidas do convívio social pela austeridade saneadora, informa o economista Costas Lapavitsas, da Universidade de Londres (leia a análise do correspondente de Carta Maior, Marcelo Justo; nesta página).

Em todo o continente a desigualdade nunca foi tão aguda.

Na Espanha, os 20% mais ricos  ganham agora sete vezes mais que os 20% mais pobres; ganhavam 5,5 vezes mais em 2007.

A Itália tem o maior índice de desemprego  em 37 anos --e o maior percentual de famílias na zona da pobreza.

Qual é o nome da coisa que lista essa contabilidade se não horror econômico?

O Brasil criou 14 milhões de empregos desde que começou a borrasca (2007/2013) incatalogável no léxico dos mercados autorreguláveis.

A opção demonizada agora foi resistir à loucura das expectativas racionais expandindo o mercado interno com políticas públicas contracíclicas.

A multiplicação do crédito estatal foi a principal delas.

Bancos públicos garantem  hoje mais de 50% do financiamento da economia brasileira (consumo e empresas).

Participavam com  35% há cinco anos.

A banca privada –cujos sábios agora cobram menos Estado, escafedeu-se quando a fantasia virou terror; o governo compareceu para impedir a trombose feita de dinheiro empoçado nos cofres das instituições e subfinanciamento nas artérias da produção (como ocorre na zona do euro nesse momento).

No ano passado, quase 80% da expansão do crédito brasileiro foi garantida pelas operações do sistema financeiro estatal.

Calcula-se entre R$ 400 bi a R$ 450 bi o gasto público  em  subsídios, desonerações e investimentos para mitigar o impacto da recessão mundial no país.

O fôlego do mutirão atingiu seu limite; o país vive quase a pleno emprego; o endividamento das famílias já roça limites sensíveis, só para citar duas evidências singelas.

O ponto de saturação acontece justamente agora, na saída da crise global, superpondo um alentado repertório de escolhas e desafios ao cardápio eleitoral de 2014.

É nessa fresta que o jogral ortodoxo anuncia o baile da restauração.

Nada mais oportuno ao discernimento democrático de uma sociedade do que discutir e escrutinar seu passo seguinte de forma coletiva e plural. ‘Assumir  comando do seu próprio destino’, diria  Celso Furtado, que definia assim o sentido radical da palavra desenvolvimento.

A oportunidade será perdida, no entanto,  se o debate for confinado na assepsia histórica preconizada pelos arautos dos mercados perfeitos.

Não há solução sem custo para nenhuma das variáveis em jogo.

Dar competitividade à manufatura brasileira, que perdeu espaço interno e internacional, requer desvalorizações cambiais inflacionárias.

A precedência do investimento  na infraestrutura colapsada implica menor ênfase no consumo.

Dar velocidade a essa reordenação exige uma arquitetura capaz de conciliar capitais públicos e privados sem esfolar a sociedade, nem aleijar a soberania.

Salvaguardar as contas externas dos desequilíbrios crescentes  –que podem ser acirrados pela revoada de capitais às economias ricas—requer controles, a exemplo do que se impôs agora com o encarecimento do turismo e das compras no exterior.

O que está em jogo é  uma nova pactuação da sociedade com ela mesma.

Algo que não se faz sem amplo e transparente debate em torno de ganhos, perdas e prazos.

Às portas da terceira disputa presidencial, o governo petista, todavia, ainda hesita em adotar políticas isonômicas de comunicação que assegurem a afirmação de um contraponto progressista  ao foco predominantemente ortodoxo da emissão conservadora.

A ilusão da magia publicitária ameaça a campanha que se esboça como das mais renhidas disputas da história da redemocratização, equiparando-se em virulência a de 2002.

A politização do debate econômico avulta como a grande arma capaz de despir a fantasia da superioridade dos mercados sobre o planejamento da sociedade.

Queremos desenvolvimento para a igualdade ou a igualdade cabível  ao país  é aquela que a ortodoxia considera compatível com os direitos de uma plutocracia que se recusa a pagar R$ 0,50  por dia de IPTU em São Paulo?

Nas últimas três décadas a supremacia das finanças desreguladas conseguiu dar envergadura inédita à palavra desigualdade em todo o mundo.

Os esforços sociais e  contracíclicos  realizados desde 2002 no Brasil moveram um índice Gini que se comportara durante décadas  como o eletrocardiograma de um morto.

A desigualdade recuou 11,5% .

Mas os 10% mais ricos ainda ficam com desconcertantes 44% da renda total, enquanto 50% mais pobres dividem algo como 18% dela.

O golpe branco dos mercados nos direitos sociais de uma Europa que já foi referência da civilização; o esfarelamento de Obama nos EUA e a ascensão da direita em várias nações democráticas demonstram que essa turma não está para brincadeira.

Não se trata de teoria conspiratória. É a luta pelo poder na antessala do novo ciclo que se insinua.

A eleição de outubro próximo pertence a essa cepa histórica. Não dá para terceirizá-la a agencias de publicidade, nem atribuir a jingles  tarefas que cabem à construção de uma nova correlação de forças.

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