A barbárie e o seu ventre
Quando se evoca as agências de risco para intimar o Estado a cortar programas sociais e garantir o dos rentistas, que futuro estamos projetando para o Brasil?
por: Saul Leblon
Coube ao editor de Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, esticar o olhar para além do muro da conveniência que acomoda a questão prisional brasileira num círculo de ferro feito de superlotação, precariedade, guerra de facções e barbárie.
As cinco palavras selam a vida de 500 mil pessoas que subsistem do lado de dentro, mas não esclarecem o conjunto que interliga o seu destino ao dos demais 189,5 milhões que completam a sociedade do lado de fora.
São destinos entrelaçados, adverte Weissheimer na análise ‘O Presídio Central e a nossa vida do lado de fora’
Sua reflexão joga água fria no foco conservador que prefere circunscrever o debate ao bordão da flacidez administrativa. Sobretudo quando essa dimensão real do problema – insuficiente para entendê-lo, porém, e sobretudo para equacioná-lo— interliga a barbárie a administrações associadas ao governo petista.
A série de 14 decapitações ocorridas na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, de onde facções comandam atentados que resultaram na morte de uma criança, no último fim de semana, enquadra-se nesse gênero.
Atribuir à exclusiva incompetência tucana o poder do PCC em São Paulo pertence ao mesmo reducionismo, no caso de extração petista.
Não se avalize o diagnóstico protelatório segundo o qual, por ser um espelho da sociedade, as prisões somente serão dignas para redimir quem delinquiu, quando dignas forem todas as relações ordenadoras da sociedade.
É tudo verdade.
Mas o que distingui uma biblioteca de um projeto político é justamente a construção das linhas de passagem que fazem do presente o fiador premonitório de um futuro melhor que a mera reprodução do passado.
É nesse ponto que cabe arguir a honestidade da aflição conservadora com a sorte dos encarcerados brasileiros.
O que ela prescreve para a sociedade que está do lado de fora guarda coerência com o sentimento de urgência em relação aos que estão confinados?
Mais de 95% do contingente carcerário brasileiro vem das camadas pobres e excluídas da população; não há levantamentos oficiais –e isso já diz muito sobre o sistema-- mas se calcula que 90% dos detentos voltem a delinquir, ao recuperarem a liberdade.
Mais de 40% da população carcerária está estocada em prisões provisórias, onde a lotação passa de cinco presos por vaga.
Convenhamos, quando se intima o Estado brasileiro a cortar a gastança (leia-se, programas sociais) para assegurar o juro dos rentistas; ou se sabota o reajuste do IPTU, sonegando-se R$ 800 milhões à educação, saúde e mobilidade urbana, como fez a coalisão tucano-plutocrática em SP, que futuro carcerário estamos projetando para o Brasil do século XXI?
Um futuro de prisões em massa dos excluídos, talvez?
Há precedentes.
Negros representam 12,5% da população total norte-americana; mas somam 40% da maior população carcerária da face da terra (2,5 milhões de presos).
Estamos falando de um milhão de negros trancafiados -- contingente superior ao da população escrava dos EUA no século XIX.
O desemprego é um vínculo esférico a unir a condição de negro a de detento nos EUA.
A proporção de negros desempregado (12,6%) é quase o dobro da de brancos (6,6%) ; há 50 anos a diferença era de quatro pontos.
A pobreza é outro elo: cerca de 10 milhões dos 41 milhões de negros norte-americanos vivem na pobreza.
Quando a mídia conservadora e os menestréis do tripé convocam agencias de risco a endossarem o veredito de um Brasil aos cacos, que pontes estamos erguendo para impedir a cristalização de igual destino?
Recapitulemos.
Quando a tempestade neoliberal despencou, em 2007/2008, o Brasil resistiu ao naufrágio com boias que exigiram gastos fiscais da ordem de R$ 400 bilhões.
O país criou mais de 12 milhões de empregos desde 2007. A título de comparação: Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal, coagidos a adotar o arrocho ortodoxo, viram desaparecer 15% de suas vagas desde 2012.
Encurralar a sucessão de 2014 em um ambiente contaminado pela represália iminente das agências de risco e dos investidores à ‘derrocada fiscal’ é o palanque daqueles que prometem fazer mais e melhor dobrando a aposta nos mandamentos do Consenso de Washington.
‘Não é que não deu certo; não foi bem aplicado’, já se afirma nas entrelinhas da emissão dominante.
Os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008, agora retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos insustentáveis.
Colunistas isentos e economistas tucanos --de sabedoria comprovada pelos resultados obtidos em outras crises, endossam o clamor pela eutanásia.
Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada irresponsavelmente de um gole só.
A indignação seletiva diante da barbárie nas prisões soa assim como uma nota fora do lugar no grande baile da restauração.
Ardilosa, talvez seja um predicado mais justo para a harmonia da orquestra que não desafina nunca.
O país precisa de investimento público e privado para adequar sua indústria e infraestrutura ao mercado de massa nascido nos últimos anos.
Nada que se harmonize do dia para a noite.
O crucial é erguer as linhas de passagem, pactuar custos, definir prioridades, assumir ônus e acordar prazos.
A se restituir a receita rentista, como exige o jogral incansável, sobra uma pinguela estreita e oscilante para o futuro.
Um ano de juro da dívida pública equivale a 71 anos de merenda escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.
É só uma ilustração.
Mas também é a síntese das proporções em jogo na arquitetura que será preciso escolher.
Na deles não cabe o Brasil.
Nem o que está fora das grandes -- quanto mais o que sangra dentro delas.
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