O PACOTE DE BALI


Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

Acordo da OMC é bom para o comercio mundial e para o Brasil


 Marcelo Zero  (*)

No Brasil, o termo “pacote”, quando referido a decisões políticas e administrativas, tem uma conotação fortemente negativa. Um gosto amargo que nos faz lembrar de comidas indigestas e impopulares.Mas não há como negar que, no que se refere ao “Bali Package” (Pacote de Bali), o conjunto de decisões da OMC que emergiu da última reunião ministerial na Indonésia , o resultado foi positivo . Positivo para a OMC, positivo para o comércio mundial e positivo para os interesses brasileiros. Ficou o doce gosto do “quero mais”.



Não foi, evidentemente, um avanço substancial. A Rodada Doha ainda está muito longe de ser concluída com sucesso. Há temas e pendências que demandarão um grande esforço negociador, no futuro próximo.

Na realidade, no Pacote de Bali há apenas um acordo concluído com sucesso, o denominado “Acordo sobre Facilitação do Comércio”. Tal acordo não incide sobre tarifas ou quotas de produtos. Ele se limita a ditar diretrizes sobre as burocracias que envolvem as atividades de importação e exortação, particularmente às relativas aos despachos aduaneiros.

Pode parecer pouco, mas não é. Essas burocracias podem ser, em alguns casos, tão morosas e caras, que acabam se constituindo em barreiras quase intransponíveis ao comércio. Conforme avaliações da própria OMC, os custos dessa burocracia aduaneira podem chegar a cerca de US$ 1 trilhão ao ano. Isso representa ao redor de 5,3% do valor do comércio mundial, que alcançou US$ 18,4 trilhões, em 2012.

Para o Brasil, esse Acordo sobre Facilitação do Comércio é bastante positivo, pois o nosso país é vítima da burocracia aduaneira como instrumento protecionista. Na relação bilateral com a Argentina, por exemplo, a burocracia aduaneira provoca graves prejuízos aos exportadores brasileiros. Com efeito, os trâmites kafkianos que os nossos exportadores muitas vezes têm de enfrentar para entrar no mercado do nosso principal parceiro do Mercosul desestimulam e até mesmo inviabilizam, em alguns casos, as trocas comercias. Com efeito, desde que a Argentina adotou esses excessivos procedimentos burocráticos, as nossas exportações para lá caíram de US$ 22,7 bilhões, em 2011, para US$ 18 bilhões, em 2012. Para alguns exportadores brasileiros só faltava cantar um tango argentino, diria Bandeira. Agora, o acordo da OMC abre a perspectiva de um samba.

Além desse Acordo sobre Facilitação do Comércio, o Pacote de Bali, também contém uma declaração ministerial e 14 decisões ministeriais. Tais decisões estão concentradas em três áreas temáticas: programa de trabalho da Rodada Doha, agricultura, inclusive algodão, e tratamento para os países de menor nível de desenvolvimento (LCDs, no acrônimo inglês).

Na primeira área temática, deve-se destacar uma decisão que não foi comentada pelos meios de comunicação. Referimo-nos à decisão de manter e aprofundar, no programa de trabalho da Rodada Doha, o tema da transferência de tecnologia e sua relação com o comércio. Esse é um tema caro aos países em desenvolvimento, que foi muito debatido ao longo das décadas de 1960 e 1970, mas que foi progressivamente abandonado nas últimas décadas. A Declaração Ministerial de Doha introduziu o tema nas negociações da OMC, em parte para contrabalançar o atendimento aos interesses das grandes companhias detentoras de tecnologia feito no âmbito do TRIPS. A declaração contida no Pacote de Bali reitera o compromisso com o tratamento do tema na OMC. Vamos ver no que vai dar, ou transferir.

Na área temática relativa à agricultura, o grande Nó Górdio das negociações, cabe destacar, em primeiro lugar, a decisão que tange as quotas tarifárias. Muitos países importadores de alimentos permitem a importação de produtos agrícolas com tarifas reduzidas até o cumprimento de uma determinada quota. Uma vez atingida a quota, as tarifas se elevam. Contudo, muitas dessas quotas não são nunca atingidas e o país importador impõe a tarifa plena mesmo assim, de forma marota. Pois bem, a decisão adotada determina que, se uma quota não é atingida em pelo menos 65% ao longo de 3 anos, o país importador, caso seja demandado pelos exportadores, terá de atingi-la de forma automática. Trata-se, obviamente, de uma boa notícia para o Brasil, um país extremamente competitivo na área agrícola.

Em segundo lugar, cabe comentar a decisão relacionada aos estoques públicos de alimentos para a segurança alimentar. Trata-se de decisão que protege os programas de formação de estoques de alimentos para fins de segurança alimentar nos países em desenvolvimento de eventuais questionamentos na OMC. Evidentemente, tais programas subsidiam a produção de alimentos nesses países, particularmente a produção feita pela chamada agricultura familiar. Pela decisão, tais programas não poderão ser questionados pelo prazo de 4 anos. Neste prazo, serão considerados subsídios “não-acionáveis”, como os que constam da chamada “caixa verde” dos subsídios agrícolas.

A Índia era a principal interessada nessa medida. Nesse país, cerca de 70% da população (800 milhões de pessoas) ainda vivem em áreas rurais e dependem estreitamente da atividade agrícola. A Lei de Segurança Alimentar da Índia é extremamente importante para essa parcela muito expressiva da população. Para os países exportadores de alimentos, especialmente os países exportadores de arroz, essa não é uma boa notícia, mas esse foi o preço pagar para que Bali não redundasse em fracasso.

Assim sendo, e analisado o Pacote de Bali em seu cômputo geral, o Brasil poderá obter ganhos comerciais expressivos com as medidas e decisões adotadas. Contudo, o ganho principal do Pacote de Bali não é comercial e econômico, mas sim político.

É a primeira vez que a OMC consegue fechar um acordo comercial. Os famosos acordos assinados na Rodada Uruguai foram negociados, na realidade, no âmbito do GATT, foro negociador que antecedeu a OMC, que foi criada na mesma rodada. Ao longo dos 19 anos da sua existência, a OMC nunca havia conseguido fechar qualquer nova negociação. Com isso, a organização estava se constituindo somente numa mera instância de arbitragem comercial, que resolvia, ou tentava resolver, disputas comerciais entre os Estados Membros.

A retomada da OMC como grande foro negociador do comércio mundial é muito importante para o Brasil e os demais países em desenvolvimento. A OMC é um grande foro multilateral que toma decisões por consenso. Em suas votações, os países em desenvolvimento têm o mesmo peso que os países desenvolvidos. Ademais, esse foro permite a articulação dos interesses dos países emergentes, que são mais numerosos que os países desenvolvidos. O Brasil, por exemplo, conseguiu articular os interesses de muitos países em desenvolvimento com a formação do chamado G-20, na Conferência Ministerial de Cancún. Isso mudou a correlação de forças nas negociações comerciais multilaterais, até então dominadas quase que inteiramente pelos interesses dos países mais desenvolvidos.

Em razão da paralisia da OMC como foro de negociação comercial, vem se verificando, nos últimos anos, uma tendência de negociar acordos de livre comércio de forma bilateral ou regional. Em geral, essa forma de negociação não é boa para os países em desenvolvimento, pois é usualmente assimétrica. Os países mais avançados acabam incluindo nesses acordos regras mais favoráveis aos seus interesses do que as que poderiam ser obtidas no grande foro multilateral. Na pressa de conseguir vantagens de curto prazo, alguns países em desenvolvimento acabam com elas concordando, comprometendo seu futuro, no longo prazo. Na América do Sul, Chile, Colômbia e outros já sucumbiram ao canto de sereia desse laissez faire , que aprofunda as assimetrias entre os países.

Mesmo no Brasil, vemos manifestações dessa disposição afobada e temerária por parte até de setores da indústria, que seriam destruídos, caso celebremos acordos de livre comércio com a União Europeia e os EUA, sem os muitos cuidados necessários. O MERCOSUL nunca foi tão atacado por quem ainda sonha com a miragem neoliberal da Alca. Nas atuais negociações entre esse bloco sul-americano e a União Europeia, preocupam também as ilusões de quem acha que o Brasil não pode ficar de fora das “grandes cadeias produtivas mundiais” e tem de “fazer logo” um acordo com os países mais desenvolvidos. Se esse acordo for feito dessa forma, aí sim o Brasil ficará definitivamente de fora das grandes cadeias produtivas mundiais. Não apenas fora das cadeias produtivas mundiais, mas também das regionais, que seriam destruídas.

Não se enganem, a Alca, com novas roupagens e novos atores, americanos, europeus e asiáticos, voltará a entrar em nosso menu político. No Brasil, há sempre gente disposta a pagar por uma boa indigestão.

Entretanto, a volta da OMC como foro multilateral privilegiado para a celebração de novos acordos comerciais pode ajudar a conter essa perigosa tendência cozinhada nos altos fornos do liberalismo econômico. Conduzida pelo competente embaixador Roberto Azevêdo, ela lançou alguma luz e um pouco de tempero, no atual cenário fragmentado e insosso das negociações comerciais com esse Pacote de Bali.

O doce Pacote de Bali talvez prenuncie o prato principal da conclusão da Rodada de Doha. Não se sabe ainda qual será a receita desse prato e que gosto ele teria. De qualquer forma, ele seria bem mais apetecível que o irreversível gosto amargo de acordos bilaterais que nos levem a queimar o nosso futuro.



(*) Marcelo Zero é formado em Ciências Sociais pela Unb e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores

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