Hegemonia: a ponte entre o velho e o novo

Agência Brasil

11 anos de governo sob pressão das torquesas conservadoras fizeram o PT desenvolver um escudo de economicismo ao mesmo tempo defensivo e imprudente. E

por: Saul Leblon 

Não é preciso a adesão incondicional a uma sigla progressista para enxergar nos seus dilemas um mirante dos desafios que cercam as transformações da sociedade em nosso tempo.

O Congresso dos 33 anos do  PT, que termina neste sábado,  reavivou velhos dilemas da esquerda, condimentados pela encruzilhada de uma transição de ciclo na economia mundial.

Portadores de esféricas certezas – entre as quais, o óbito histórico do PT-- dispensam-se da reflexão.



Carta Maior acredita que ela ainda  pode ajudar os fatos com a força dos argumentos.

Uma pergunta de interesse histórico martela  as entrelinhas do texto-base do encontro do PT, publicado na íntegra por Carta Maior (leia neste blog: ‘Ser realista, sem perder a utopia’).

Como ser governo de uma sociedade capitalista e ao mesmo tempo não se perder do compromisso de transformá-la?

Mais que isso: como fazê-lo em meio a uma crise que exprime a racionalidade impossível de se combater sem a intervenção política que coloque a economia a serviço da sociedade?

A desordem neoliberal veio reiterar que a saúde das finanças e a deriva da sociedade  não são realidades contraditórias do nosso tempo.

A Europa é a fratura exposta de um sistema que adoece o povo para curar bancos.
É a regra, dizem os consultores aos colunistas que martelam sandices como sentenças inapeláveis.

Importa reter a tendência mais geral de um capitalismo que deixado à própria sorte mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva (exceto em bolhas fugazes) e elevado desemprego.

Deixá-lo à vontade para funcionar assim é o que apregoa a emissão conservadora no Brasil, a evidenciar interesses e uma ignorância letal à sociedade.

Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como o governo tenta fazer desde 2008, é um antídoto ao arrocho que alguns querem trazer ao Brasil.

O keynesiano discreto do PT, porém, grita seus limites em tempos de capital monopolista e expectativas comandadas pela emissão conservadora.

Keynesianismo  sem um protagonista social que o conduza –e este sujeito  não é o capitalista local— assemelha-se a um pato manco.

Todo capital é capital estrangeiro na era da supremacia das finanças desreguladas.

No aperto, voam juntos como golondrinas.

O  dilema que atormenta o PT, portanto, é uma versão turbinada daquele que assola a esquerda mundial desde que ela passou a disputar  os votos da sociedade para gerir o Estado, ainda sem ter o poder de  modifica-lo.

“(o PT) é ainda prisioneiro de um sistema eleitoral que favorece a corrupção e de uma atividade parlamentar que dificulta a mudança, a despeito da vontade das forças progressistas(...)

As medidas de reforma do Estado não foram capazes de remover os obstáculos burocráticos que criam empecilhos para o avanço mais rápido dos grandes projetos de infraestrutura, vitais para dar nova qualidade a nosso desenvolvimento” (texto-base do V Congresso do PT)

O PT nasceu para ser esse novo recorte na trajetória da democracia e do desenvolvimento brasileiro.

O que se deliberou na reunião do Colégio Sion, em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980, foi isso.

Uma espécie de basta organizado à usina de retroalimentação de uma das sociedades mais injustas do planeta,  reiterada pelo elitismo vicioso de sua representação política.

Anos depois o partido decidiria --e não errou nisso --  disputar o velho poder contra o qual emergiu, como parte do esforço para mudar o eixo do desenvolvimento e a dinâmica da sociedade.

'A Nação é o povo e o Estado a sua expressão' , dizia o título do manifesto de criação do partido, assim detalhado: “Os trabalhadores (...) entendem que a Nação é o povo e, por isso, sabem que o País só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem as condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões dos seus rumos. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no plano social (...)  para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados e nem exploradores’ (Manifesto de fundação do PT, no Colégio Sion, em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980).

O que se discute, 33 anos depois, é se  o instrumento da mudança não foi ele próprio mastigado nos dentes da realpolitik , a ponto de se transformar de  alavanca mudancista em presa da ordem.

“(o sistema político) impede transformações mais profundas e impõe um Presidencialismo de coalizão, que corrói o conteúdo programático da ação governamental” (texto-base do V Congresso).

O saldo da comprovada capacidade progressista de governar a economia e a sociedade, de forma mais democrática e estável, com resultados  indiscutivelmente superiores ao histórico conservador, sugere que ainda não.

Mas isso não dissipa, antes corrobora a percepção de que um ciclo se fechou.

Mais sério que isso.

Aquilo que pede para nascer não emergirá  de uma brotação espontânea do que já foi  acumulado.

Os sessenta milhões de brasileiro que passaram a respirar ares de consumo e cidadania após 11 anos progressistas formam uma espécie de pré-sal  de possibilidades emancipadoras.

A exemplo da riqueza fóssil acumulada na plataforma brasileira, porém, esse protagonista potencial requer uma estratégia de lapidação que cobra a sua ‘Petrobrás’ política para se efetivar.

“Não é fácil para um Governo, sobretudo de esquerda: (1) estabelecer equilíbrio entre ação e reflexão e entre o urgente e o importante; (2) resolver as dificuldades institucionais e burocráticas que se antepõe à ação governamental e (3) entender e dar conta das novas reivindicações que surgem na sociedade. Mas não é fácil para o Partido, tampouco, realizar a complexa tarefa de apoiar seu Governo e, ao mesmo tempo, empurrá-lo para além dos limites que lhes impõem a conjuntura ou instituições, muitas vezes arcaicas”.
Não é fácil.

Mas o Congresso dos 33 anos do PT externa uma inquietação, implícita no documento-base, que desautoriza a saciedade conservadora de alas do partido.
Hipertrofiadas pela mídia, elas tentam fixar o que é  limitante como suficiente e apresenta-lo como satisfatório à maioria.

Não é razoável supor que os mesmos  interesses e estruturas que produziram a sociedade mais desigual do planeta possam conduzir o Brasil para um horizonte de convergência da riqueza e de cidadania, apenas porque o governo é do PT.

A sedução da lógica incremental, de qualquer forma, não pode ser subestimada.

Vista a partir de retinas embaçadas de cansaço ou rendição ideologia, a transformação social mais profunda parece uma impossibilidade aprisionada em seus próprios termos: as coisas só mudam, se as coisas mudarem. E se as coisas não mudarem, as coisas não mudam…

O sistema de produção baseado na mercadoria cria e apodrece as pontes das quais depende a travessia do velho para o novo.

Não há automatismo que afronte  essa incessante geração e coagulação do futuro no passado .

Ao contrário do que ocorre no mundo dos mamíferos, na história não há parto natural e muito menos sem dor.

Uma parte do metabolismo social resiste ao novo --belicosamente se necessário.

Cada vez menos depois de 2002, o PT se debruçou sobre a tarefa de criar pontes  de organização democrática e discernimento histórico,  compatíveis com o gigantescas parto das transformações requeridas pelo país.

Onze anos de governo sob o cerco  diuturno das torquesas  conservadoras fizeram-no desenvolver um escudo de  economicismo, ao mesmo tempo defensivo e imprudente.

Ele se atribui a missão de gerar resultados tão suficientemente bons na macroeconomia que renovariam a delegação da sociedade, e a indulgência dos mercados,  para administrar a travessia do país  que somos ao Brasil que poderíamos ser.

Ponto pacífico: gerar resultados é um  imperativo da governabilidade.

O  economicismo  incremental como única alternativa à ruptura violenta, porém, é uma falsa disjuntiva.

Suas consequências, no entanto, são verdadeiras.

Elas alargaram as distâncias entre o governo e o partido e entre este e as ruas – em que pese o mencionado e indiscutível saldo de avanços. Os protestos de junho escancararam esse hiato. Uma parte do corpo petista acordou.

Respostas que rompiam a circularidade incremental foram a anunciadas pelo governo, a exemplo da Constituinte da reforma política e do programa  ‘Mais Médicos’.

Um outro pedaço do metabolismo, porém, continua a ressonar como um sonâmbulo que mantém hábitos inalterados de andar em círculos.

O linchamento imposto ao partido e a algumas de suas  lideranças históricas –sem qualquer resistência organizada;  bem como as sirenes de uma transição traumática na economia mundial afrontam  as certezas de quem considera a  consciência política uma extensão natural da elevação do consumo e este uma espiral inesgotável.

A cegueira explica o inexplicável:

“ (...) Partido e Governo não souberam desenvolver instrumentos de comunicação social que pudessem contra arrestar a permanente ofensiva conservadora dos grandes proprietários de jornais, rádios e televisões” (texto-base do V Congresso).

A omissão nessa frente (antiga e inacreditavelmente ativa)  evidencia um descaso com iniciativas incontornáveis, quando se trata de transitar do velho para o novo na vida de uma Nação.

Repita-se: avanços concretos perceptíveis no cotidiano do país formam os pilares dessa travessia.

Mas o que consolida a ponte entre o velho e o novo é o salto no discernimento histórico da sociedade.

Sua emergência requer informação plural e participação direta nas grandes decisões do país.

Do conjunto nasce uma nova hegemonia.

O documento-base do V Congresso sugere que para uma parte do partido a negligência com essa arquitetura atingiu  um ponto de saturação.


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