Frases de Clarice Lispector são tema de livro

Clarisse Lispector

O mês de dezembro é marco para os fãs de Clarice Lispector. A escritora e jornalista nasceu em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia e morreu um dia antes do seu aniversário, dia 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Para rememorar Clarice, o pesquisador Roberto Corrêa lança livro com frases e citações de uma das mais brilhantes escritoras do Brasil.

Neste mês, Clarice Lispector completaria 93 anos. Ucraniana de origem, veio ao Brasil com menos de um ano de idade — aqui, viveu em diversas capitais. Morreu aos 57 anos, vítima de um câncer de ovário. Depois de 36 anos, a morte da escritora não foi completamente cicatrizada. Clarice não termina nunca. Ressurge diariamente: no papel e na tela do computador, nos estudos da academia e na cabeceira do leitor comum. Suas palavras continuam avassaladoras. A autora ganhou um livro que reúne frases e citações retiradas de suas obras ficcionais; e de seu trabalho como cronista, selecionadas pelo pesquisador Roberto Corrêa dos Santos. As palavras de Clarice Lispector revela uma romancista misteriosa, introspectiva, intensa, entregue e sentimental.



Pincelar enunciados de Clarice foi a mais difícil das tarefas de Roberto Corrêa. Oito romances, uma novela, oito livros de contos e crônicas e cinco livros infantis — sem contar as coletâneas e as obras póstumas — foram analisados pelo pesquisador. Milhões de palavras ganharam sobrevida, mesmo isoladas das obras a que pertencem. Corrêa não se refere a elas como meras citações, mas “sentenças de poder filosófico, poético e plástico”. “O texto de Clarice se monta assim: de sentenças completas e de estados frasais absolutamente irradiantes. A junção das frases, o arranjo que gera os livros requer de Clarice uma diversa, sutil e esplendorosa sabedoria”, avalia.

Ao longo dos anos, Corrêa se deixou conduzir pela retórica de Clarice. Fazia recortes, para uso pessoal, de tudo que lia, marcando a cadência poética de cada frase. Assim, como um projeto espontâneo e intuitivo, nasceu As palavras. “Com lápis no punho, segui nas páginas, por impulso e por intuição, a ordem do sensível, sempre atento à ideia da concretude necessária de um dizer ‘completo’, sempre à captura do enunciado que se montasse, tal qual se montam os poemas, os aforismos, os fragmentos e os ditos filosóficos”, recorda Corrêa.

Entrevista com o pesquisador Roberto Corrêa dos Santos

Correio Braziliense: Clarice Lispector é conhecida pelo caráter intimista de sua literatura. Como pincelar textos de suas obras e manter o sentido e a conexão deles isoladamente e entre si?
Roberto Corrêa dos Santos: Talvez estejamos próximos da hora de rever o termo intimista para designar a obra de Clarice. A meu ver, o que em sua obra se encontra é a forte e insistente reflexão crítica acerca da ideia de íntimo. Ao contrário do que parece – em virtude do modo de Clarice aproximar-se do leitor pela via de uma comunicação, digamos, ‘íntima’, ou seja, feita por um trato afetuoso, diretamente dirigido ao leitor dirigido –, Clarice dedica-se a desconstituir a ideia de intimidade, bem como as ideias a esse vocábulo relacionadas. Ideias como a de profundidade, interioridade e subjetividade. A todo tempo, e sem cessar, afirma-se ali o desprender-se de todo traço psicológico. Em frases de As palavras tal bem se declara em diferentes momentos; mas não se trata apenas de declaração e sim de compromisso. Compromisso com o exterior, com a política vital, e com o outro. Quer-se afirmar, e afirma-se, a certeza de nossa multiplicidade de rostos e devires. Para Clarice, o intimismo, o eu, a crença em o existir a pessoa, o indivíduo, a identidade como modos unitários de existência só tendem a enfraquecer tanto a saúde da vida quanto a saúde da arte, da arte da letra e da arte em geral. Portanto, a questão ‘obra intimista’ não gerou obstáculo algum no que tange à seleta e à estruturação do livro. Sobre o retirar da escultura verbal dos escritos claricianos os potentes diamantes (sentenças de poder filosófico, poético e plástico: aparições, pois) que a compõem fez-se com uma facilidade estranha. No ato de separar, logo me encontrei no compreensível e quase natural gesto de ler como trabalho irrecusável de colheita. O texto de Clarice monta-se assim: de sentenças completas, de estados frasais absolutamente irradiantes nelos mesmos. A junção das frases – o arranjo – que gera seus livros requer de Clarice uma diversa, sutil e esplendorosa sabedoria. Diante da riqueza do material, enorme a perícia artística na operação de compor. Indo de fragmento a fragmento, Clarice orquestra obra mais do que musical; nelas, muitas vezes, há composições de silêncios, e subitamente, de gritos.

Quando surgiu a ideia de criar uma obra com as palavras de Clarice, tão intensas e enigmáticas?
Lembrou-me há pouco um amigo que esse desejo era bem mais antigo do que mesmo me recordava. Fiz, nesses tempos, para uso pessoal, recortes, sempre postos no seio dos estudos, e isso jamais exercendo o papel das citações. Era um uso voltado para a hipótese de haver poemas no corpo narrativo das obras: dobrei, nessa épocas, frases ao modo dos poemas, e lá marcava a cadência poética exata. Lá estavam poemas geradores de ‘distúrbios’ no caminho da leitura, dado que teria o leitor, sem aviso, passar de um tom a outro, de uma atitude discursiva a outra, isso sem contar os sustos das imagens a se expandirem por meio de recursos tais como os provindos do como se (princípio do comportamento do fictício), da alusão (princípio do movimento do repetir e repetir até gerar-se o impossível definir de algo, senão pela diferença que o repetir acaba por gestar) e da tautologia (princípio de algo só se reconhecer em sua redundância congênita; princípio quase oriental de diante da pergunta ‘o que é isso? só se possa dizer de maneira certeira assim: isso, ‘isso é isso’). A ideia desse fazer (com outros fins) acompanhava-me, mas a adorável feitura dessas recolhas, contudo, só se tornou possível pelo convite da Editora.

A descoberta do mundo é um livro que já li e reli várias vezes. Curiosamente, fiz como você: lia, anotava algo, relia, pincelava outra frase. Tudo aquilo se reverberava em mim e as frases sempre refletiam alguma época da minha vida. Isso aconteceu com você?
Fico tão feliz de conversar com um parente de afetos e de atitudes de leitura e de eleição, obrigado. Sim: reverberar é o verbo perfeito; reverbera tanto períodos e períodos de minha vida, como você diz, como reverbera vontades que ainda não pudera antes, sem aquelas diretas palavras de Clarice, ter sob foco mais claro – esse reverberar esclarece-me. Em artes visuais, lugar de onde também falo, tenho-me dedicado ao que nomeio de Clínica de Artista, ‘método’ de fazer artístico que lida com algum-outro que esteja em trabalho (mesmo que não saiba) de tornar-se artista, e essa é a obra a ser feita: há tratos, princípios, atitudes em jogo: visa-se, repita-se, à saúde da vida do espírito. Pois bem, em As palavras, todas as frases, seja cuidando de animal, planta, sentimentos, sensação, fato, ou de que mais, Clarice exerce sua potentíssima Clínica, Clínica de Artista também e a envolver ética, política, história, desejo, fulgor.

Clarice sempre se colocou no lugar do outro (a crônica Mineirinho prova isso). Ao selecionar as sentenças que fariam parte de As palavras, você se colocou no lugar dela? Como organizou as frases?
Não se pode ter diferente operação ou estratégia em se tratando de Clarice: a obra dá a nota, diz o que pede ou exige; deixava-me conduzir, obedecia ao que Freud chamou de escuta flutuante. Creio na arte de ceder. Tenho um miúdo e antigo livro de poemas que se intitula: Arte de ceder. Diante dos livros escolhidos, aparelhei-me de uns bons lápis 6b, lápis de artistas, lápis que produzem marcas e manchas (traços da escrita clariciana). Com lápis no punho, segui nas páginas, por impulso e por intuição, a ordem do sensível, sempre atento à ideia da concretude necessária de um dizer ‘completo’, sempre à captura do enunciado que se montasse qual se montam os poemas, os aforismos, os fragmentos ou ditos filosóficos (no caso, fragmentos ou ditos pós-filosóficos, uma vez, em Clarice, distantes da lógica do pensar socrático). Definido a ordem da nova composição (o ritmo foi o norteador mais forte), entreguei o xerox dessa pesquisa-traço-marca. O 6b mais o xerox com sua borradura-grafite-escrita geraram uma obra plástica contemporânea de arte-escritura (tal como livros de artista) a aguardarem algum convite para exposição. Friso ainda que o livro foi concebido como espaço expositivo para receber as frases-obras de Clarice: ou seja, para estar no livro entendido como sala de exposição; daí o sentido de curadoria como termo possível para o que se fez.

O que pensa do cerceamento a biografias a qual o Brasil tem passado? O americano Benjamin Moser, por exemplo, demorou cinco anos de intensa pesquisa para biografar Clarice…
Sobre esse tema, digo diretamente que me posiciono a favor da liberdade de expressão, e mais: afirmo não haver contradição com respeito à privacidade.

"Eu nunca assumi ser escritora, sou uma amadora e faço questão de continuar assim", disse Clarice. Como uma mulher que não almejava pertencer ao mundo das letras consegue agradar a alta literatura, o mundo acadêmico e leitor comum?
Talvez Clarice não pretendesse ser escritora profissional, como ela entendia esse termo em diferença ao termo amador. Escritor profissional faz desse trabalho seu campo de sustento financeiro e, assim, em razão da necessidade de sobreviver, ter, em muitos caso, de... conceder. Clarice diz em As palavras ser o sucesso uma gafe, uma falsa vitória. E diz também: ‘O autor que tenha medo da popularidade, senão será derrotado pelo triunfo’. Afastava-se, assim, de tudo que lhe parecesse vir a atingir o núcleo vital de sua arte. E é justamente por ‘não pertencer’, por pertencer somente aos comandos de seus desígnios de sabedoria, observação e delicadeza no trato das coisa do mundo, por fazer-se sem esforço indiferente à vontade de agradar alguém ou alguma instituição, por tal que Clarice alcança aquela magnitude constitutiva somente das artes fortes e raras: a academia e o leitor que busquem o valor ampliado do entender e, como ela avoca, do não entender, encontram em Clarice esse farol. Trata-se do muito saber e do muito desfaze-se do saber. E ir, qual o amador: no risco.

O que diferencia as crônicas da obras ficcionais de Clarice?
Não há diferença significativa: as crônicas são igualmente obras ficcionais. Em ambas, há o domínio da palavra, da sintaxe, da imagem, do ritmo, do imaginar… Um existir plural e extemporâneo.

Ela tinha o costume de anotar sempre que algo lhe vinha a cabeça, seja de dia ou de noite. Aconteceu o mesmo com você ao ler as obras dela?
Tenho eu o mesmo hábito; no caso, e mesmo antes, não foi necessário despertar para o registro: o desenho a lápis entorno da frase na página servia de arquivamento. Tratei as páginas como gavetas de recortes de preciosidades.

Em entrevistas, Clarice se mostra avessa à fama. Como acha que ela reagiria diante de tanta repercussão positiva de sua obra?
Clarice dizia grande sim a amar. E grande sim a ser amada. Isso não tem a ver com fama, tem a ver com entrega, alegria e comunhão. Ela sabia proteger-se do que chamava de mão indelicada do amor, mão que também o constitui.

Qual é sua citação favorita?
Não tenho frases favoritas. Destaco algumas. Uma que parece referir-se ao livro As palavras: “Faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: ‘Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!’”. Uma que a todos pode servir de horizonte: “Só são humilhados os que não são humildes”. E outra, por seu aviso: “Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto”.

O que pensa dos leitores que se satisfazem apenas com citações e referências descontextualizadas da obra de Clarice? Isso não levaria a obra da escritora a uma exaustão?
Creio que em As palavras, as frases se recontextualizam. Abrem-se a novos sentidos, e isso é bom. Creio ainda que o leitor forte a que me referia será conduzido pela vontade do querer mais, e querer os livros outros, e bem ver as frases no pulmão das cenas, das personagens, dos acontecimentos. O leitor forte pede de Clarice tanto esses sinais do respirar que se encontram em As palavras quanto o tambor do respirar ardente de cada livro. Exaurir, como exaurir? Como secar tais obras? Como dissipá-las? Como despejar até a última gota tamanha natureza de vida intensiva? Não há essa possibilidade.

Segundo pesquisa feita pelo site Youpix em junho de 2012, Clarice é a escritora mais citada no Twitter. Essa legião de "citadores" te agrada? Porque Clarice é um fenômeno nas redes sociais?
Não me desagrada, digo-lhe francamente: parece haver um senso coletivo de que a presença de Clarice nos desperta, nos acolhe, nos torna melhores, isso é, nos aristocratiza em sentido grego. Clarice escreve gerando redes, pede o terreno, afirma o capim, a capilaridade; seu texto é texto de conexões. Conclama o outro! Nas redes sociais, subjazem também redes de processos amplos e ativos de subjetivação, daí avocarem artistas e saberes mesmo quando às vezes de modo talvez estrábico. Clarice em texto de 1974, em texto premonitório viu esse fenômeno, e ficou nervosa. Hoje, hoje devesse rir como sempre por fim acabava por fazer em face da contingência. Diz o texto: “Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo o meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo”.

Fonte: Correio Braziliense

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