“Em matéria penal, Brasil age como um carrasco”


Por  e 

O ano de 2013 chega ao fim. Há de ser lembrado, pelo povo, num sentido aleatório, como o ano em que o Brasil se tornou “um país sério” ao condenar e iniciar a execução das penas de vários dentre os réus da Ação Penal 470, mais conhecida como escândalo do “mensalão”. Para os juristas em geral, é a confirmação dos tempos difíceis que virão, com o recrudescimento das leis e a severidade crescente dos magistrados na sua aplicação. Alguns fatos servem à ilustração do fenômeno. Como não poderia deixar de ser, a continuação do julgamento do “mensalão” roubou os holofotes, com contribuição grande do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, personagem a ilustrar, quiçá resumir, catonianamente, o que foi o ano a se encerrar. Eis os principais fatos:
Guardião

Neste ano começou a ser aberta caixa-preta do Ministério Público no que concerne às interceptações telefônicas. Estimuladas por reportagem publicada pelo ConJur em 27 de maior de 2013 (17 MPs interceptam ligações sem participação da Polícia), investigações começaram a ser aprofundadas e os escaninhos da Instituição a ser revirados. A Ordem dos Advogados do Brasil provocou o Conselho Nacional do Ministério Público, exigindo informações adicionais sobre a intromissão do órgão acusatório nas intimidades de terceiros. Descobriu-se, por exemplo, que em São Paulo, desde 2011, o Parquetestadual realiza interceptações diretas, sem auxílio da autoridade policial. Adquiriu-se o instrumental mediante pregão, ao qual atendeu solitária proponente, fazendo lembrar música de Tom Jobim: “Eis aqui este sambinha / Feito numa nota só, / Outras notas vão entrar / Mas a base é uma só”. No mínimo dezesseis outros Ministérios Públicos possuem aparelho análogo ao do segmento paulista. Vale lembrar, ainda, que o próprio Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu de forma definitiva se possui o Ministério Público poderes investigatórios. Enquanto isso, interceptem-se os telefones. A privacidade, a intimidade, nesses tempos, são ilusão, um verdadeiro canto da sereia.
EspionagemO episódio envolvendo a espionagem do alto-escalão brasileiro fez com que a Presidente Dilma viesse a público mostrar sua total irresignação com a intromissão dos Estados Unidos da América do Norte nos segredos brasileiros. Esbravejou, sapateou, reclamou à ONU. Poucos dias depois, descobriu-se que o Brasil praticara arapongagem análoga com vizinhos na América do Sul.
Delação premiada
A delação premiada, muitas vezes vestida sob a roupagem do eufemismo “colaboração processual” ou correlato, ganhou maior relevo no cenário jurídico brasileiro com a vigência da Lei 12.850/2013, em meados de setembro. Define a norma, de um lado, o que seria organização criminosa; de outra parte, importa mecanismos estrangeiros para combater tal espécie delinquencial. Dentre estes, destaca-se a delação premiada. Esta, embora já tenha sido prevista em diversas outras leis brasileiras, finalmente foi despida da máscara e pôde mostrar à comunidade jurídica sua real feição, exatamente idêntica, aliás, à plea bargain dos americanos do norte. Conferiram-se expressamente poderes outros ao Ministério Público que pode, agora, “deixar de oferecer a denúncia” ao vulgo “réu colaborador”, o digiti duri. Com esse novo remendo (ou arremedo), a sistemática processual vai gradativamente perdendo sua coesão sistêmica. Apenas como exemplo, se um particular, em ação penal privada, deixar de optar por não oferecer a queixa contra um dos querelados, verá reconhecida renúncia tácita comunicável aos demais acusados. A ação seria, no contexto, natimorta. Tornando-se à delação premiada, o que se vê, hoje, é corrida soturna, iniciada com a deflagração midiática de operações com nomes de gregos e troianos e capitaneadas pelo Ministério Público ou Polícia Federal, na qual cada um dos investigados busca primazia na incriminação dos demais, esperando as benesses da lei e fazendo lembrar tristememente a venda de indulgências na Idade Média. Até o perdão tem seu preço.
Episódio Nathan DonadonO Congresso e o Supremo Tribunal Federal, de uns tempos a esta data, têm passado por atritos. O caso envolvendo o deputado Nathan Donadon foi o último episódio. Ali, os parlamentares, protegidos pelo sigilo do voto, optaram pela manutenção do mandato do congressista já definitivamente condenado na esfera criminal, inclusive com trânsito em julgado. Não se tratou de proteger o colega, mas de confrontar o STF, mostrando que o Congresso é independente e não subserviente ao Supremo. A postura, aliás, foi espécie de retorsão ao crescente acúmulo de poderes observado no mais alto tribunal da República, iniciado lá trás, é certo, com as súmulas vinculantes, verdadeira atividade legisferante excrescente das atribuições deferidas aos ministros daquela corte. Montesquieu, no fim das contas, foi ressucitado.
MensalãoEmbora com julgamento iniciado no ano passado, os efeitos concretos só neste ano começam a ser percebidos. O constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, observando ao longe aquele que se convencionou chamar de “o maior julgamento da República”, assustado, constatou: “Tenho dúvidas, um tribunal com tanto poder. O tribunal brasileiro é dos tribunais com mais poderes no mundo”. Embora o jurista português se refira genericamente, algumas novidades, usando-se termo elegante, merecem destaque no “mensalão”:
(a) Tipicidade geleiosa: Em julgamento dos embargos de declaração opostos por um dos condenados, havendo dúvida temporal quanto à aplicação de normas penais sucessivas tocante ao crime de corrupção, o Supremo Tribunal Federal inovou, criando a tipicidade geleiosa, ou geleienta, “escorregadia e assentada no fato à vontade do intérprete” (v. “Fique à disposição dos doutos a tipicidade geleiosa”, de autoria do primeiro subscritor). Em outros termos, passando-se por cima de jurisprudência e doutrina predominantes (se pacíficas não eram), não se sabe por qual motivo, o STF afastou da corrupção o caráter de delito formal, fazendo deslizar, espraiar-se no tempo a consumação de modo a sofrer as influências da lei posterior, a qual, por ironia do destino, era mais gravosa...
(b) Capítulos de sentença: Uma das várias novidades trazidas pelo julgamento da ação penal diz com os denominados “capítulos de sentença”, teoria estudada, no Brasil, por Cândido Rangel Dinamarco. Não havendo intromissão no mérito de processo entregue a outros defensores, é preciso apenas alertar que, eventualmente, em crimes coletivos (plurissubjetivos), a absolvição de alguns agentes pode impedir a conformação do tipo (inocorrência do elemento normativo), implicando em efeitos diretos na pena, mais regime de futura execução, dos demais acusados.
(c) Execução das penas: A realidade do sistema carcerário brasileira finalmente veio a lume. As reclamações dos denominados “mensaleiros” com as acomodações das celas fizeram a imprensa voltar os olhos para a questão, isso apesar de certos privilégios dos parlamentares (nunca admitidos) que os demais detentos não têm. No entanto, o que se está vendo é apenas réstia de problema muito mais grave, envolvendo população carcerária excedendo o meio milhão, em sua maioria negros, mulatos, pobres e desvalidos, não se esquecendo dos quase 200 milhares de mandados de prisão ainda em aberto. Os problemas são vários: presos provisórios convivendo com outros de periculosidade acentuada e já definitivamente condenados; detentos mantidos em delegacias; superlotação de presídios; falta de condições sanitárias mínimas; inexistência de estabelecimentos prisionais voltados àqueles em regime semiaberto; lentidão na análise e deferimento de progressões, dentre muitas outras situações a tornarem desumana a vida dos reclusos. O “mensalão” pode ter dado o estímulo para finalmente a sociedade se dedicar à discussão sobre aqueles que ela decidiu por retirar do convívio social, esquecidos no mais das vezes como se fossem portadores de peste contagiosa. No fim, o próprio interesse da comunidade é relativo, ou episódico. Morre nas esquinas.
Trágica conclusão
Em suma, o ano foi movimentado, permitindo chegança a trágica conclusão: o recrudescimento da severidade na atividade de encarceramento já se instalou. O Ministério Público intercepta indiscriminadamente a todos; a Polícia corre atrás; o Judiciário, muita vez, encampa escutas de licitude discutível ou, sob a roupagem do denominado “ativismo judiciário”, extrapola as suas tarefas, transmudando-se quase em auxiliar de acusação; os advogados, no entremeio, quedam-se inertes, desunidos enquanto classe, preferindo a luta pelo interesse imediato do cliente do que a busca pela manutenção das prerrogativas da classe, as quais, acima de tudo, são essenciais à defesa dos constituintes.
Paralelamente, movimentos populares intermitentes dão a medida da insatisfação da massa quanto à Administração Pública. Os motivos são diversos e às vezes menos significativos. Vale mais o exame do caráter psicológico das sublevações. Em outros termos, agressão por agressão, violência por violência, lesão por lesão, morte por morte. O bandido assassina. A Polícia faz o mesmo. O governo, genericamente considerado, aumenta a capacidade lesiva. O povo não liga à inumação do meliante. É um a mais, ou a menos. Isso parece refletir na chamada democracia autoritária, entendendo as lideranças políticas que o chicote é mais eficaz que o diálogo. No meio de tudo, o país é talvez o campeão na multiplicidade de tributações, apertando a cidadania como se fora uma ameixa enrugada no ultrapassar do tempo. O Brasil vai mal em matéria de Direito Penal. A legislação é multiplamente ofendida. O juiz finge que não vê. O Ministério Público faz o mesmo. Milhares de reclusos, com direito a progressão de penas, apodrecem em penitenciárias pútridas. Entretanto, o Poder Judiciário se engalana na toga e finge que faz justiça. Diga-se que a demonstração de distribuição do justo não se faz em relação ao rico, ao bem nutrido, à exceção, mas sim, à isonomia, ou seja, ao tratamento adequado dado ao preso pobre, ao preto, à puta, àqueles, enfim, que não conseguem chegar aos tribunais superiores pelas denominadas vias digitais. Dentro de tal contexto, até o uso do computador é seletivo. É pena. Dá muito dó. Dir-se-á que sempre foi assim. Mas não precisa ser sempre assim. É só reconhecer, o togado, que assim é, perdendo um pouco do sono na tentativa de mudar. O Brasil, em matéria penal, caminha como carrasco que esconde a mão tinta de sangue na algibeira do gibão vermelho, pensando que ninguém a vê. Nós vemos.

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