ELEITOR DE 1 VOTO E ELEITOR DE R$ 1 BILHÃO
Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Projeto da OAB ajuda a enfrentar o aluguel de nosso sistema político
O STF terá uma ótima oportunidade para dar uma contribuição efetiva para a melhoria do padrão de nossa democracia hoje, quando examinar a ação da OAB que pretende proibir a contribuição eleitoral de empresas. É uma proposta corretíssima.
Quando feita às escondidas, a contribuição de empresas privadas é um dos principais instrumentos de corrupção, sabemos todos.
Quando feita às claras, é uma forma de alugar o poder político a quem tem mais dinheiro.
Em qualquer caso, é uma forma indevida e escancarada de distorção do processo eleitoral. Compromete a transparência de uma eleição e transfere, para o interior da democracia, uma desigualdade típica da sociedade brasileira, uma das mais desiguais do planeta.
Se a ideia essencial do regime democrático é um sistema pelo qual 1 cidadão = 1 voto, o dinheiro privado produz eleitores que valem 1 voto e outros que valem 1 bilhão de reais.
Colocando a questão em seu ponto essencial, convém lembrar o artigo 1 da Constituição, que diz todos os poderes emanam do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos.
Quando fala em “povo”, a Constituição não está falando de empreiteiras, nem de bancos nem fazendas. Está se referindo aos 100 milhões de brasileiros com direito a voto. São homens e mulheres com 18 anos de idade ou mais. Também se aceita o voto facultativo de quem tem mais de 16 e não se proíbe o voto dos analfabetos.
O dono de uma empreiteira deve valer o mesmo que o operário que dá expediente em seu canteiro de obra.
Como já foi observado tantas vezes, permitir que uma empresa dê dinheiro de seus cofres para um determinado candidato, em prejuízo de outro, é lhe dar um tratamento de uma coisa que ela não é. Falando ontologicamente, como querem os filósofos, não custa lembrar que são os seres humanos – executivos, gerentes, funcionários -- que fazem escolhas políticas. As empresas, como se sabe, são seres sem vida própria e sem consciência. Por isso podem ser vendidas, compradas, fundidas e até fechadas. Mas não podem ir até as urnas e fazer sua opção. Não são entes donos de vontade, como recordou, em artigo recente, David Cay Johnson, num artigo dedicado a empresas norte-americanas de saúde que alegam possuir convicções religiosas para recusar métodos anticoncepcionais a seus funcionários e associados.
Este é o princípio da coisa: pelo menos durante um dia, de quatro em quatro anos, todos os brasileiros devem ser iguais em seus direitos e deveres. Pelo menos num dia – num dos países mais desiguais do mundo.
A proibição de contribuições de empresas privadas vigora em boa parte dos países de democracia consolidada. Em alguns, vigora o financiamento público exclusivo. Em outros, a contribuição de pessoas físicas é autorizada, mas dentro de limites bem definidos e estreitos, compatíveis com aquilo que se pode chamar de “contribuição individual”.
A exceção, que está longe de ser recomendável, reside nos Estados Unidos, que possui um sistema muito semelhante ao brasileiro. Lá, como aqui, as contribuições de campanha são dominadas pelas grandes corporações privadas que, através do dinheiro eleitoral, determinam a agenda política. Observadores ingênuos adoram assinalar as semelhanças notáveis entre os dois principais partidos norte-americanos, democratas e republicanos, e até acreditam que isso reflete um certo amadurecimento político. A semelhança é real mas ela não se explica pela ausência de debate de ideias na sociedade, que é mais vivo e rico do que se costuma imaginar – mas pela prolongada e profunda presença do dinheiro privado sobre o mundo político, que conquista aliados com absoluta indiferença, desde que possam servir a seus interesses.
É por essa razão, e nenhuma outra, que a população norte-americana enfrenta, entre outras desvantagens, o pior serviço público entre os países com o mesmo perfil sócio-econômico. Sua educação de qualidade é ótima, mas totalmente elitizada. As empresas privadas de saúde possuem uma bancada imensa de políticos que lhe devem todo tipo de favor financeiro, e por essa razão estão sempre a postos para sabotar qualquer esforço que possa beneficiar a população mais pobre, como ficou demonstrado no debate sobre o Obamacare. Mais poderosos lobistas de Washington, os fabricantes de armas impedem qualquer medida de controle sobre a venda de metralhadoras e armas mais pesadas a população civil. O resultado é aquela violência que todos conhecem. Ligados aos interesses de Israel, outro grupo de lobistas muito importante tem um papel decisivo na definição da política externa da Casa Branca, como próprio Obama sente na pele toda vez que ensaia um passo fora da curva no Oriente Médio.
A força desse dinheiro, em Washington, chega a ser constrangedora, pois demonstra um poder político em processo de privatização acelerada. As empresas privadas – algumas são diretamente empresas de lobby -- não se limitam a dar contribuições de campanha. Pagam funcionários nos gabinetes políticos, financiam estudos e projetos, bancam mordomias e favores, construindo uma blindagem espessa na proteção de seus interesses.
A motivação real dos adversários da mudança em debate no STF é difícil de admitir, por motivos óbvios. O que se pretende é manter a desigualdade dos cidadãos no acesso às decisões de Estado, facilitando a eleição de candidatos sob encomenda, patrocinados como marcas de sabonete. Não se trata, aqui, da saudável e necessária disputa entre visões de mundo diferentes ou projetos políticos conflitantes, típicas do mundo político.
O que se quer é manter o direito de fabricar e cooptar políticos com base no cofre, dóceis como aqueles cavalos de aluguel que se encontram nas pracinhas do interior do país, e que costumam ser levados para qualquer lugar por seus donos, conforme definição um tanto bruta, e até grosseira, de um dos mais experientes (e sinceros) políticos brasileiros. Quando se recorda o esforço de desconstrução de conquistas históricas, que inclui a abolição das principais garantias previstas na CLT e o retorno a um tempo em que a questão social era um caso de política, pode-se imaginar a importância essencial que o financiamento de campanha irá adquirir no próximo período.
Como é sempre complicado defender privilégios numa sociedade que cultiva valores democráticos, o combate a proibição das contribuições privadas é feito a partir de um recurso retórico conhecido como fracassomania. Elaborada pelo estudioso Albert O. Hirshmann, a fracassomania é um tipo de raciocínio que procura bloquear toda iniciativa inovadora sem debater se é boa ou ruim – argumenta-se, apenas, que irá produzir tantos efeitos contraproducentes que seus eventuais benefícios serão eliminados por inevitáveis fatores adversos. Era assim que se dizia – você lembra quem disse – que não adiantava fazer eleição porque o brasileiro não sabia votar. Ou que não adianta aumentar os salários porque os preços sempre sobem junto. Ou que era possível abolir a CPMF porque todo dinheiro do Estado sumia no ralo da corrupção em vez de ir para saúde. E assim por diante.
No caso da proibição das contribuições privadas, o que se diz é que elas irão obrigar as empresas e os partidos a ampliar o caixa 2 de campanha. Na mais pura fracassomania, tenta-se sustentar que aquilo que se deixa de pagar na contabilidade oficial será pago clandestinamente. Essa afirmação tem um componente absurdo, pois o caixa 2 já é utilizado de forma ampla e irrestrita hoje em dia, quando o pagamento de empresas é legalizado. Não é por falta de autorização, portanto, que se prefere fazer pagamentos às escondidas, mas porque há interesses que preferem nunca mostrar sua cara. Não são transparentes porque isso não lhes convém.
A fracassomania, aqui, vale como o reconhecimento de que, apesar de surtos periódicos de moralismo, como na ação penal 470, poucas pessoas acreditam que aquela parcela que comanda o Estado brasileiro, e é sua verdadeira elite econômica e política, abandonará o costume de só respeitar a lei quando isso lhe interessar.
O debate é este, na verdade. A proibição de contribuições das empresas é um avanço em direção a igualdade entre eleitores. Será obedecida da mesma forma que o Estado brasileiro consegue impor a lei em todas as suas esferas. Em alguns casos a lei funciona sempre. Em outros, só às vezes. Em terceiros, nunca. O saldo final, certamente, trará mais ganhos do que prejuízos, pois implica na afirmação de um princípio necessário. Não há outro, aceitável por qualquer padrão democrático decente, que possa excluir o critério 1 homem=1 voto.
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