Elegia à autonomia

Elegia à autonomia
Salinger mostra que nem todos os conselhos podem nos livrar da inautenticidade contemporânea

O Apanhador no Campo de Centeio mostra que, se o mundo perdeu o senso, o caminho errado pode ser o certo

Por Roberto Taddei

O Apanhador no Campo de Centeio é sucesso há seis décadas. O livro mais famoso de J.D. Salinger ultrapassou os 65 milhões de exemplares vendidos desde o seu lançamento, em 1951, e continua sendo passado de pais para filhos e entre amigos referendado como uma narrativa contemporânea de construção de identidade e defesa da liberdade.

O livro conta a história do adolescente Holden Caulfield, estudante de classe média de 16 anos, reincidente na expulsão de escolas, às vésperas do feriado de Natal. Nele, Salinger reproduz com tanta eficiência o efeito da linguagem adolescente que a leitura sugere um livro de escrita fácil. No entanto, é preciso lembrar que levou dez anos para ficar pronto, que o livro tinha o dobro de páginas antes de sua versão final e que no meio do processo de escrita Salinger foi enviado ao front para lutar na Segunda Guerra Mundial. Além disso, apesar de seus 32 anos de idade à época do lançamento, vinha de uma carreira bem-sucedida na publicação de contos em revistas de peso como a New Yorker. O ­efeito coloquial, portanto, é intencional e revela um autor no controle do texto.


Para notar como Salinger reforça o uso estilístico da linguagem adolescente, convém reparar nos encontros de Holden com outros personagens: com os de mesma idade, os diálogos são inconclusivos ou vagos; já com os professores e adultos, revelam personagens articulados e pensamentos elaborados que Holden supostamente não seria capaz de entender. Para reforçar esse contraste, Salinger cria um narrador que fala abertamente com o leitor e demonstra consciência sobre o próprio discurso.

Holden está distante apenas alguns dias ou meses dos fatos ocorridos no livro quando decide escrever a obra. Não se distanciou o suficiente da história, não tem uma “moral” para revelar ao leitor. Ainda assim, quer narrar o acontecido. Mesmo que seja preciso avisar que, “para ser franco, não sei o que eu acho disso tudo”. Mais uma dica de que a forma de contar, aqui, é tão importante quanto a história que se conta. Vejamos alguns exemplos.

No início do livro, o professor de História que o reprova, provocando a nova expulsão, diz: “A vida é um jogo, meu filho. A vida é um jogo que se tem de disputar de acordo com as regras”. Holden pensa, em silêncio: “Jogo uma ova. Bom jogo esse. Se a gente está do lado dos bacanas, aí sim é um jogo – concordo plenamente. Mas se a gente está do outro lado, onde não tem nenhum cobrão, então que jogo é esse? Qual jogo, que nada”. No entanto, ele apenas responde: “Sim, senhor, sei que é. Eu sei”.

Em outro momento, pensa: “Sou o maior mentiroso do mundo. É bárbaro. Se vou até a esquina comprar uma revista e alguém me pergunta onde é que estou indo, sou capaz de dizer que vou a uma ópera”. Em todas as vezes que mente, porém, não há a intenção de enganar o leitor.

É um Holden que se desespera contra o mundo o que vemos no início do livro. Chega a se identificar com Legião, o personagem do evangelho de Marcos (5:1-20) que cortava a própria carne com pedras e tinha esse nome “porque somos muitos”.

Assim como na imagem bíblica, Holden procura compreensão e reconhecimento. Parece buscar o momento autêntico, a experiência significativa.

Personagens previsíveis provocam ataques de raiva. Gestos de atenção esvaziados de significado o deprimem. Ele desconfia de ações controladas: “Se vejo um ator representando, mal consigo escutar direito. Fico preocupado, achando que ele vai fazer um troço cretino e falso a qualquer instante”.

Holden não está em busca de respostas filosóficas ou de conforto espiritual. Procura apenas as experiências autênticas. Mas se deprime ao perceber que quase tudo ao seu redor – um universo que na sua expectativa adolescente deveria ser potencialmente pleno, intenso e autêntico – acaba se revelando contaminado por experiências falsas e controladas, cuja expressão maior é a indústria cinematográfica de Hollywood.

“Você sabe o que eu quero ser?” Pergunta Holden à irmã, citando um poema de Robert Burns. “Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que que eu tenho de fazer? Tenho de agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho de aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer.”

Mas é Holden quem está caindo no precipício; o precipício da vida adulta. Um antigo professor dá o alerta: “Este é um tipo especial de queda. (...) A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade”.

Após três dias de busca desesperada, Holden decide fugir de casa. Idealiza um futuro neutro em que não precisasse falar, quando se casaria com uma mulher também muda e teria filhos mudos; a esperança da vida plena se recolhe diante da incapacidade de articular o pensamento e vencer a inevitabilidade do mundo adulto.

O mesmo professor provoca Holden a estudar. Os homens cultos, diz, “­tendem a se expressar com mais clareza e, geralmente, têm a paixão de desenvolver seu pensamento até o fim. E – o que é mais importante – na grande maioria dos casos têm mais humildade do que o pensador menos culto”.

A deixa é simbólica. Holden não é capaz de organizar o pensamento a ponto de escapar do precipício para onde caminha, mas tem outro tipo de sabedoria que escapa ao professor: ele reconstrói narrativamente a experiência pela qual está passando. Aos poucos, percebemos que essa é a intenção de Salinger. Não quer apenas contar a história de um personagem adolescente que caminha para a vida adulta e desperdiça as lições e todos os bons conselhos de seus professores ao longo do caminho. Quer antes um livro sobre um personagem que mostra que nem todos os conselhos podem livrá-lo da inautenticidade do mundo contemporâneo. Os conselhos, afinal, reforçariam o mesmo arranjo mal construído das coisas e serviriam apenas como caminho de aceitação das falsidades do mundo.

Holden é talvez um dos primeiros personagens da literatura norte-americana a mostrar que, se o mundo perdeu o senso, o caminho errado pode ser o certo. Não se trata de encontrar a teo­ria correta, a “moral da história”, mas sim de mostrar o que acontece com um personagem que decide viver com integridade, buscando autenticidade nas interações com o mundo.

O Apanhador no Campo de Centeio é uma espécie de elegia à autonomia do indivíduo, à possibilidade de se viver com liberdade e o custo de se respeitar esse ideal. A causa não é nova e tem antepassados religiosos, sonhadores ou aventureiros de peso. Mas Holden é um dos primeiros a mostrar que errar, e errar sem juízo final, também pode ser um caminho.

Publicado na edição 82, de dezembro de 2013 
Da Carta Capital

Comentários