A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino: a Roma de Fellini 51 anos depois
Considerado o melhor filme do ano pelo European Film Awards e candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro, A Grande Beleza é um filme vulgar. E ótimo.
Léa Maria Aarão Reis
Há críticos franceses debruçados sobre o que vêm chamando, com propriedade, de cinema da vulgaridade. Filmes como Bling Ring, a gangue de Hollywood, de Sofia Coppola, exibido no Brasil este ano, é um deles: uma ode à vulgaridade californiana. Outro é o italiano A grande beleza, sétimo filme de Paolo Sorrentino, um dos cineastas mais interessantes surgidos na península recentemente, que acaba de estrear nos cinemas do eixo Rio-São Paulo. Sorrentino é um dos que ajudam a levantar o prestígio do cinema de seu país e agora nos oferece um alentado presente de fim de ano para quem ama o cinema.
La grande bellezza, sem dúvida, é um dos grandes filmes de 2013. Seus personagens, de uma vulgaridade espantosa, ganham vida em um dos cenários mais belos do mundo, Roma, a cidade que resiste indiferente ao grotesco espetáculo dos humanos.
A grande beleza da Roma de Fellini, mais de meio século depois, é revisitada pelo napolitano de 43 anos nascido oito anos após a estreia de A doce vida, em 1960.
O jovem Sorrentino retoma, com audácia, uma narrativa que nada tem a ver – e ainda assim tem tudo a ver – com o olhar do italiano do norte, de Ferrara, certo Federico que vivia em Roma, nos fins dos anos 50 começo dos 60, e já realizara diversos filmes magníficos e tinha a base do seu trabalho nos sonhos que sonhava decifrados com o seu analista, junguiano formado em Zurique e recém chegado da Suiça.
Se Fellini dizia que crítica não era a seara dele (“senso crítico é uma qualidade que me falta completamente”) como costumava comentar com Pasolini, então pupilo e afetuoso amigo, Paolo Sorrentino, ao contrário, é o intelectual deste tempo de agora. Seu cinema é engajado, duro e crítico como se vê no admirável Aqui é o meu lugar, com Sean Penn. Neste mais recente trabalho, ele desenha um mural da burguesia romana com todos os achaques, frivolidades, hipocrisias e faniquitos próprios da burguesia de todas as partes do mundo.
Se os tipos fellinianos sonhados por Federico, que se tornaram imortais, eram mais bizarros (sempre profundamente humanos; mesmo os mais repulsivos), os de Sorrentino com certeza são vulgares. Enquanto o primeiro fez cinema guiado pelo instinto (ou inconsciente, se quiserem), o de agora faz filmes com sua consciência.
Vulgares, exceto o protagonista de A grande beleza. Ele é o prolongamento do jovem jornalista Marcello (Mastroianni) de A doce vida. No filme de agora tem 65 anos, é autor de um único livro de grande sucesso de público escrito décadas antes, e ainda patina como jornalista de amenidades.
Conhecido como o rei das festas romanas, essa locomotiva social se chama Jep Gambarella. É o artista paralisado no processo de criação (como Guido/Mastroianni em Oito e meio), perdido nas mundanidades, no meio do caminho. Gambarella é autoconsciente e carrega consigo a consciência do mundo. É vivido por Toni Servillo, um dos melhores atores do cinema italiano.
Impecável neste papel difícil, repleto de nuances – ora crítico, cínico, sem esperança, ora desamparado, infantilizado, puro, comovente – Servillo mostra mais uma vez o intenso vigor com que interpretou o célebre primeiro ministro italiano Giorgio Andreotti, da democracia cristã, mestre da real politik e eficiente político/malabarista, em outro festejado filme de Sorrentino, Il divo.
Assim como o Marcello felliniano do passado, Gambarella é testemunha do próprio fracasso e da vulgaridade em torno.
Jep passeia pela Via Veneto de madrugada, vazia, onde rápidos flashes de rostos de turistas chineses e árabes nos remete à aurora dos paparazzi e aos engarrafamentos de vespas nas portas dos restaurantes da doce Roma de Fellini dos anos 60, quando se iniciava a cultura das celebridades.
Jep flana pela cidade e olha a fauna romana - assim como nós, os espectadores, também a observamos. Reencontra o amigo idoso proprietário de um inferninho como aqueles que ainda hoje funcionam nas ruas transversais da Via Veneto e onde a filha do homem, com 50 anos, insiste em continuar trabalhando como stripper.
Em uma esquina, de noite, súbito, esbarra na bela atriz Fanny Ardant caminhando e diz reverente: ”buona sera, Mme. Ardant”. A (não por acaso) viúva de Truffaut recebe o cumprimento, condescendente, sorri e continua andando. Ao contrário de Anna Magnani, que no filme Roma, encontra Fellini e diz, “vá a dormire, Federico” e bate a porta da casa no nariz do amigo.
Na festa de grandes colecionadores de arte, Jep é o espectador blasé – a sequência é surpreendente -, da menina enraivecida que deseja ser veterinária, mas é obrigada pelos pais a agredir uma imensa tela branca com tintas coloridas e “cria” assim uma obra “notável”, um dripping ao modo de Pollock para impressionar os convidados, grandes compradores.
Os encontros com o cardeal mundano (“ele deve ser o próximo papa”, segredam ao seu ouvido), desinteressado dos assuntos espirituais que passa o tempo recitando receitas gastronômicas intermináveis em jantares fúteis. A maternal editora e sua agente anã que chama Jep de Jepinho e o alimenta com uma revigorante sopa quente. “Há quanto tempo alguém não me chamava de Jepinho”, ele se lamenta.
Nas andanças, visita um amigo, um ilusionista. “Pode me fazer sumir, por favor?” pergunta ao mágico que treina, em um galpão, para fazer desaparecer uma girafa. O mágico responde, rindo: ”Ora, Jep, se eu soubesse sumir comigo não estaria aqui fazendo essas baboseiras (sumindo com girafas).”
Lembramos Fellini quando dizia: ”É tudo uma questão de truque”.
Diálogo ferino e culto à palavra são marcas do cinema de Sorrentino. “Somos um país de quitandeiros”, diz um personagem. Outro: “o país esqueceu a cultura e a arte; é conhecido hoje pela moda e pela pizza.” Um terceiro: “quando sentar à mesa (mesa igual a vida?) leve a sério apenas o cardápio.” E alguém conclui: ”o mundo? O mundo não é mais refinado.”
Roteiro enxuto para duas horas e vinte minutos de filme que não larga o espectador exceto quase no fim, quando desaba em um anticlímax e ensaia se encerrar em vários finais. O roteiro é escrito em conjunto com Umberto Contarello, escritor premiado ano passado com David di Donatello por Aqui é o meu lugar e um dos mais ativos roteiristas do cinema italiano. No final definitivo de A grande beleza, a esplêndida câmera insistente e fluida do fotógrafo Luca Bigazzi retoma a possante beleza de Roma, o ritmo do filme, a indiferença da atmosfera e certo cinismo lembrando o Woody Allen de Blue Jasmine.
Considerado o melhor filme deste ano pelo European Film Awards e candidato forte ao Oscar de melhor estrangeiro da temporada, A grande beleza brinca com A doce vida, com o cinema de Fellini todo o tempo, mas com personalidade própria e fulgurante. É um filme à clef, um grande belo filme que não desculpa a vulgaridade e a feiura do tempo de hoje.
O fotógrafo de Sorrentino, Luca Bigazzi, excede em beleza especialmente nas duas sequências das pontas do filme - uma cantada, a outra, sussurrada. No começo, na abertura da ópera, uma saudação com o alvorecer do dia nas proximidades do Castelo de Sant’Angelo. Ao fim, sequência mais bela ainda, um segundo amanhecer sobre o rio Tibre, a alma da cidade, e a despedida de Roma em respeitoso silêncio enquanto os créditos são exibidos. (Atenção: quem sair do cinema antes dos créditos perderá grande beleza.)
Em La grande bellezza só falta sonhar e ver de novo, de manhã, Giulietta Massina de bicicleta com cestinha percorrendo as ruas do Trastevere livre de turistas, como fazia, nos anos 70, levando para casa a compra das verduras e legumes.
Esta é a verdadeira beleza, como dizia o marido de Giulietta: sonhar a obra.
Sorrentino assina embaixo.
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