Sílvio Tendler: "Eu quero ser visto: copie e distribua"
Exuberante, caloroso, expansivo e ágil na percepção das coisas ao redor, Silvio conversou com Carta Maior em seu apartamento em Copacabana, Rio.
Léa Maria Aarão Reis
Há cerca de um mês, numa sessão do 46 Festival do Cinema Brasileiro, na capital federal, a plateia superlotada aplaudiu de pé, durante alguns minutos, o documentário de Noilton Nunes, A arte do renascimento - uma cinebiografia de Silvio Tendler. O cineasta carioca é autor de 40 produções de longa e curta-metragens, de séries para a televisão, e já foi premiado com dezenas de prêmios – entre eles seis Kikitos em Gramado, dois Candangos em Brasília, quatro Margaridas de Prata com que a CNBB o distinguiu.
Silvio, professor da cadeira de Cinema e História do Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ, presente à consagração no Cine Brasília, comentou depois, emocionado, mas sem perder o humor permanente - uma das suas marcas mais fortes: “Eu me senti como se estivesse vendo a arquibancada do sambódromo se levantar”. Já Noilton Nunes observou: “O filme conta muito da história do Brasil e explica um pouco porque ocorreram as manifestações de junho passado. Ele vem no lugar certo e na hora certa. Todo manifestante deve assisti-lo porque agora é a vez da geração dos jovens entrar em ação.”
O documentário conta a trajetória de Tendler que, após ficar tetraplégico anos atrás, continuou lutando pela vida e por suas idéias através dos filmes que não parou de fazer. Espécie de manifesto, não se trata apenas da história de um homem na batalha contra a limitação física, mas de um cidadão lutando contra as limitações do Brasil. Como ele diz: “Se dá para salvar a saúde de uma pessoa, por que não dá para salvar a saúde de um país?”
Longe vai o tempo em que viveu em Paris, estudou História e Ciências Sociais, fez mestrado de Cinema na Sorbonne, trabalhou com o mitológico documentarista Chris Marker e foi aluno de outra lenda deste gênero de cinema, Jean Rouch. Agora, aos 63 anos, Silvio carrega na bagagem de cineasta, com justo orgulho, o título de dono das maiores bilheterias de documentários da história do cinema brasileiro: Os anos JK, Jango, O mundo mágico dos trapalhões. Os seus longas sobre brasileiros notáveis - Oswaldo Cruz, Josué de Castro, Carlos Marighela, Milton Santos - são outras referências culturais obrigatórias.
Mas o filme Utopia e Barbárie, de 2005, relançado há três anos, que “consumiu”, ele registra, “19 anos da minha vida”, é a obra prima desse cineasta “dos sonhos interrompidos”, como Silvio é chamado pelos muitos amigos. Por Utopia e Barbárie, que se passa na França, Itália, Canadá, Estados Unidos, Cuba, Israel, Palestina e, na América Latina, no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, e México, no período dos últimos 50 anos do século passado, o jornalista Mauro Santayana nutre grande admiração: ”Sua visão pessoal do que foram o mundo e o Brasil neste período é antológica. Isto para dizer o mínimo; o filme representa o clímax de uma carreira.”
Exuberante, caloroso, expansivo e ágil na percepção das coisas ao redor, Silvio conversou com Carta Maior em seu apartamento, em Copacabana, Rio. Nosso assunto foi cultura. Sempre perpassada pela política, questões relativas ao meio ambiente, as manifestações de rua, os jovens e, naturalmente, cinema.
Recuperando-se bem da doença que o atingiu de repente, trabalhando no computador com energia renovada, ele tem vários projetos novos simultâneos. Dois deles serão lançados em março de 2014, por ocasião dos 50 anos do golpe militar no país. Um, sobre os advogados que defenderam presos políticos. O outro sobre os militares que foram contra o golpe.
Sempre apaixonado pelo Brasil e dedicado ao resgate da memória nacional, ele segue como crítico impiedoso das mazelas do país e das políticas neoliberais que desmontaram a cultura – aqui e lá fora.
Quero saber, Silvio, qual foi o impacto das políticas neoliberais na cultura mundial e brasileira.
Total. Tudo virou mercadoria, produto. O produtor passou a ser mais importante que o autor. Este passou a não ter qualquer importância. Houve um grande desmonte na minha área de cinema. Os cinemas de rua viraram igreja, banco ou academia de ginástica. Passeando pelo meu bairro me lembro do cinema Copacabana. Virou academia. O Art Palácio, uma sapataria. O Metro, loja de departamentos. O Caruso, um banco, o Rian virou hotel, e o Riviera e o Alvorada acabaram. O grande Roxy foi fracionado em várias salas. No Centro da cidade, o Odeon, sobreviveu porque é subsidiado. E o Iris hoje é cinema pornô.
Na área do documentário?
O documentário deixou de ser uma arte política para virar entretenimento. Os meus filmes são classificados como entretenimento. Tenho os mesmos constrangimentos que o cinema de ficção e não tenho nenhuma das benesses desse gênero porque meus filmes não passam em cinema de shopping. Cinema político em cinema de shopping? Não tem mais sala de rua para passar meus filmes. E tenho que pagar os mesmos direitos que paga um filme com três milhões de espectadores.
Não se discute hoje a importância artística e cultural dos filmes. Discute-se se dão ou não grana. A qualidade de uma produção é medida pelo mercado; não pelo conteúdo nem pela criatividade. Isso tem muito a ver com a política neoliberal que se instalou no mundo e que o Brasil adotou.
Não há mais espaço, então, para o cinema político?
Hoje ele está praticamente sem espaço para exibição. Os filmes passam em um único cinema, às duas da tarde, se mantêm em cartaz durante uma semana e ninguém vai ver. Para efeito de bilheteria não se considera sala de periferia; apenas aquelas com o bilhete com código de barra. Se o filme passa na laje, na escola pública, se passar para mil pessoas onde o ingresso não tem código não se considera o número de espectadores. É desconsideração total com o cinema. Meus filmes são muito vistos na periferia. Têm muito prestígio, mas não dão bilheteria. Eu não quero ganhar dinheiro com cinema, eu quero ser visto. Não me importo de baixarem da internet. O filme sobre o Milton Santos é talvez o mais pirateado do Brasil. Em outro, O veneno está na mesa, coloquei o selo: copie e distribua.
Seu filme Utopia e barbárie, Mauro Santayana o considera obra prima. Foi exibido em circuito comercial?
Teve 10 mil espectadores. Eu sou vítima da honestidade política dos meus filmes. Utopia me tomou 19 anos de vida. Foi lançado em 2010 quando a Dilma, ainda não candidata, foi ao Senado e respondeu ao Agripino Maia que ela, sob tortura, tinha mentido para salvar a vida de pessoas. Eu pensei e disse: ‘Esta mulher é muito corajosa; eu a quero em meu filme’. Não sabia que seria candidata e fiz a entrevista com ela. Se soubesse, teria pensado no assunto. Mas ela foi candidata, o filme estava pronto para ser lançado e eu me perguntei: o que faço? Paguei então o preço de ter incluído a Dilma em Utopia e Barbárie, e fui criticado por isso. E paguei o preço de ter ouvido Aécio e Serra no meu filme sobre o Tancredo. A mídia está muito condicionada pelas conjunturas, pelo momento. Como se fosse um jogo: por exemplo, você torce pelo PT e me reprime porque acho um equívoco a política do governo de estímulo à indústria automobilística. Amanhã, vai para a oposição e resgata as minhas velhas entrevistas. Eu não me pauto pelo momento, pelas circunstâncias. Eu me pauto pela história.
As artes foram atingidas pela lógica do lucro acima de tudo. E lá fora?
Paris tem mecanismos culturais, mas não acho que a realidade, lá, seja menos dramática que aqui. Os artistas lá foram todos mobilizados para o mercado – falo isto a partir de conversas com amigos meus. Antes, era charmoso você ser pobre, viver com certa parcimônia. Hoje, todo mundo quer consumir. Vivemos numa sociedade... cool; as pessoas são cool... querem ter o celular cool, a televisão cool, e aí você vai perdendo essa aura de artista, de criador. Hoje, tudo é mercado.
Voltando ao papel do desmonte do Estado brasileiro para a cultura.
O desmonte vem dos anos 90 com o globalitarismo – a expressão é de Milton Santos. Além do fascismo e do nazismo, existem outras formas de totalitarismo sobre as quais a gente não fala; e o consumo é a pior delas, dizia Milton Santos.
Neste sentido você acha nocivo o estímulo ao consumo dirigido à chamada nova classe média?
Eu acho nocivo uma palavra muito forte. Mas eu acho que é extremamente nocivo, sim. Eis o pior exemplo que a gente pode dar do equívoco da política econômica: incentivar a indústria através do consumo de automóveis.
Quer criar qualidade de vida? Constrói transporte de massa de alta qualidade. Na França, quando Paris começou a crescer além da conta e a ficar uma cidade insuportável, estimulou-se a ocupação dos subúrbios, a periferia, o banlieu, e foi criado um sistema de transporte coletivo de alta qualidade.
Aqui, os ônibus são construídos sobre carroceria de caminhão. Lá, os ônibus têm a altura da calçada. Ao invés de botar 20 milhões de carros nas ruas de SP - isto é tragédia! – vamos botar transporte de alta qualidade. A pessoa anda de ônibus de segunda a sexta-feira e usa seu carro no fim de semana para passear na montanha, na praia. Eu discuto o governo. Ele tem que ter um projeto social para o país. Quero viver em um país em que possa andar de ônibus sendo cadeirante e possa me deslocar pela cidade de uma forma limpa, rápida e confortável sem precisar ter carro. A única chance de sermos cidadãos, com direitos, é investir nos direitos públicos. Isto não aconteceu nos 12 anos de governo do PT.
A inclusão ao consumo não foi um primeiro passo?
Primeiro passo é criar cidadania, o cara ter direitos públicos, sociais. O segundo passo é acesso a bens de consumo. Podemos até discutir o padrão de consumo, mas estimular a compra de automóvel é criminoso. É incentivar engarrafamentos, é incentivar falta de qualidade de vida nas cidades. Mas aqui o transporte não é público - é privado. Se ele for público, como ocorre em Paris, Berlim, Roma, Londres, Nova Iorque, mundo afora, não haverá os financiamentos nas campanhas eleitorais.
Vê luz no fim do túnel?
Eu sou um otimista. Essa bolha que aconteceu nos Estados Unidos, a quebradeira que chegou à Europa, que criou os homeless, que criou o Ocupa Wall Street, que vai ocupando as cidades, Barcelona, Rio de janeiro, está levando à formação de outra mentalidade que ainda não se materializou em ações culturais específicas. Estamos vivendo uma era muito performática. As pessoas estão agindo muito via facebook. Há grandes manifestações de massa, mas tudo isto ainda não se cristalizou numa criação coletiva.
O filho do taxista que me trouxe até sua casa me contava sobre o filho dele que estava, naquele momento, numa grande manifestação, no centro do Rio, filmando tudo para um blog, o Nova Democracia. Não ia comercializar o vídeo dele. Tem 21 anos. Não quer ver seu trabalho manipulado.
Eles se intitulam vídeoativistas. Um dos principais é o Patrick Granja. Tomou tiro de borracha na perna. Costumo ter encontros com o pessoal, mas tenho uma diferença com eles. Enquanto eu, com 63 anos, acredito nas ações políticas organizadas, eles estão beirando um anarquismo orgânico e inorgânico.
Sobre o pessoal dos Black Blocs?
Tenho medo da infiltração de agentes à paisana, os P2, para quebrar coisas e botar a culpa nos manifestantes. Isto me dá medo. Por outro lado, ouvi inúmeros relatos de professores daqui do Rio defendendo os Black Blocs e dizendo que graças a eles não foram massacrados. Eu sou contra esse massacre policial. Você tem que usar os meios à mão para reagir a esta violência insana. Jogar spray de pimenta no rosto das pessoas é uma covardia. Usar armas que dão choque elétrico é criminoso - várias pessoas que levaram um tiro dessas armas morreram. E não se noticia.
Paris, em 68, não foi parecido?
Não, em 68 tinha de tudo...
Mas não tem um perfume daquela época?
Naquela época nós fomos enganados. Sessenta e oito só deu certo porque a a CGT (Central Geral dos Trabalhadores) entrou em greve e foram cinco milhões de trabalhadores grevistas - senão teria sido só uma fuzarca no Quartier Latin. O que transformou 68 em 68 foi a soma das ações. Nas ruas, eram os comunistas, os anarquistas, maoístas, trotskistas, a CGT entrando em greve.
... e deram consequência e maior consistência ainda às grandes manifestações e protestos.
Você tinha, nas ruas, o Cohn-Bendit, hoje um cara super bem comportado; agora ele é verde bílis. Na época, era uma sociedade que pregava certa liberdade, o proibido proibir; pare o mundo - eu quero descer; sejam realistas, peçam o impossível. Por outro lado você já tinha o padrão do pequeno consumidor: eu quero ter o meu quartinho, a minha bibliotecazinha, meus livrinhos, ver meus filminhos, arranjar uma namorada que seja uma guerrilheira, uma camponesa, manequim. A música Soy loco por ti America resume muito esse espírito de época.
Créditos da foto: Henrique Fornazim
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