Quando a nação tem culpa em cartório

Berlusconi
Muitos italianos não quiseram perceber naquele que os governava um bufão embusteiro, que nada vez pelo país, apenas e tão somente por si mesmo


Por que na pátria de Leonardo e Galileu Berlusconi conseguiu governar por tanto tempo?

por Mino Carta — publicado 29/11/2013 06:32, última modificação 29/11/2013 11:03

Silvio berlusconi parece imbuído da certeza dos reis por direito divino. De fato, ao ser expulso do Senado anunciou impavidamente a morte da democracia italiana. Poderia ter dito: a democracia sou eu. Denunciou um golpe de Estado e os juízes que o condenaram por fraude fiscal na qualidade de sicários da extrema-esquerda, e todos aqueles empenhados nos julgamentos ainda em curso. Acrescente-se um punhado de anátemas contra o presidente Giorgio Napolitano.
Eugenio Scalfari, o maior jornalista italiano vivo, o apelidou de “sultão” e o diretor de cinema Nanni Moretti tornou-o protagonista de um filme intitulado Il Caimano. Figura tragicômica, bufão do mundo, mas ao mesmo tempo negativamente grandiosa, graças ao voto de larga parte do eleitorado que o levou ao governo por cerca de 13 anos em cerca de 20.

A Itália é o berço da Renascença, nela começou no século XIV e levou mais de cem anos para que alguns países europeus dessem sinais de ter percebido a rota do futuro. A Itália é a pátria inegável do estilo e hospeda, segundo a estatística da Unesco, mais de 50% das obras de arte do mundo. Como explicar a repentina e extraordinária carreira política de Berlusconi? Não parece crível que personagem tão vulgar e tão claunesca possa ter sido o herói de tantos italianos.
Admitamos que a primeira vitória eleitoral de Berlusconi, em 1994, tem explicações. A Operação Mãos Limpas feztabula rasa dos partidos governistas, PDC e PSI de Bettino Craxi em primeiro lugar, enquanto a queda do Muro de Berlim forçava o Partido Comunista a repensar seus rumos. A Primeira República nascida no imediato pós-Guerra e amparada por uma Constituição exemplar, estava enterrada. Havia funcionado a contento por 30 e mais anos, apoiada por grandes esperanças na década de 50, por grandes realizações políticas e econômicas na década de 60, pela vitória contra o terrorismo na década de 80. A Itália, país paupérrimo em recursos naturais, saído da guerra em escombros, depois de 21 anos mussolinianos, tornou-se um dos mais ricos do mundo.

O assassinato de Aldo Moro, líder da esquerda do PDC, disposto a um entendimento com os comunistas depois das eleições de 1976, quando o eleitorado premiou o partido de Enrico Berlinguer com uma votação praticamente igual à do situacionismo democrata-cristão, foi o primeiro e apavorante aviso de uma mudança de rota. A ideia do compromesso storico morreu com Moro, eliminado pelas Brigadas Vermelhas infiltradas pelo serviço secreto americano e com o transparente beneplácito de lideranças do PDC como Giulio Andreotti e Francesco Cossiga. Este, aliás, é aquele que Cesare Battisti, o assassino asilado no Brasil, chegou a considerar seu protetor.
Ascendeu a estrela de Bettino Craxi, novo líder do Partido Socialista, figura dominante nos anos 80, e com ele a corrupção fermentou ao sabor de escândalos nunca dantes navegados. Ao cabo, Craxi fugiu da Itália para evitar a prisão, sem antes ter orientado inúmeras tramoias e de ter transformado Silvio Berlusconi em megaempresário da televisão privada.

O desastre da Primeira República de certa forma contribui para o entendimento da primeira vitória de Forza Italia, o partido recém-criado pelo senhor da Fininvest, do time do Milan e de três canais de tevê, a serviço das suas ambições e muito bem-sucedidos na tarefa. Berlusconi surgia como alternativa a uma esquerda titubeante, pronto a reunir debaixo das asas náufragos do PDC e do PSI. Ganhou. Seu governo durou menos de um ano, quando foi atingido pelos efeitos do primeiro processo a seu cargo e pela defecção da Liga Norte, que o abandonou a seu destino.
O homem, duro na queda, não saiu da arena. O governo de centro-esquerda liderado por Romano Prodi, não foi capaz de encaminhar as reformas necessárias, inclusive aquela sobre o conflito de interesses que, na primeira oportunidade, fecharia o caminho da volta de Berlusconi. De mais a mais, as contradições entre centristas e esquerdistas redundaram em uma cisão interna, coroada pela substituição do ex-democrata-cristão Prodi pelo ex-comunista Massimo D’Alema. Inevitável a vitória seguinte de Berlusconi, conquanto cantassem a todo volume suas verdadeiras intenções.
Dono de ampla maioria, a contar com o apoio dos ex-fascistas encabeçados por Gianfranco Fini e recuperada a aliança com a Liga Norte, o premier reeleito cuidou antes de mais nada dos seus interesses particulares e os da sua empresa, avançou na sua ação de corruptor contumaz e deu para se exibir em canastronices e vulgaridades sem conta, para a diversão global e o desespero dos italianos conscientes. Sem contar transparentes ligações com a Máfia siciliana, representada autorizadamente pelo amigão e senador Dell’Utri e por um chefão mafioso transformado em palafreneiro davilla de Arcore. É aí que uma vasta fatia da nação peninsular passa a fazer jus à sua culpa em cartório.
Nada se fez no período, e também quando Berlusconi voltou ao poder depois do segundo e malogrado governo Prodi, em proveito da economia italiana, já iniciada sua parábola descendente. Por outro lado, a maioria parlamentar cuidou, ao longo de dois mandatos berlusconianos, de aprovar leis iníquas, francamente xenófobas, como aquela que regula a entrada de foragidos na Península. E uma lei eleitoral que o próprio autor batizou de porcellum, o porco.
Foi esse mesmo Parlamento que aceitou a versão do líder segundo a qual a prostituta marroquina Ruby, menor de idade ao participar das orgias em Arcore, mereceu especial atenção por ser sobrinha do então ditador egípcio Mubarak. Aqui alude-se a outro célebre lance do casanova milanês: presa Ruby, acusada de furto, o premier telefona para a delegacia onde a moça se encontra para solicitar a imediata soltura por causa do notável parentesco.
Quem é o eleitor de Berlusconi, que continua a pretender-se líder do seu partido e, segundo pesquisas recentes, de um quinto do eleitorado italiano? Um reacionário, obviamente, mas também um radical na defesa dos seus interesses, com vastos toques de ignorância, insensibilidade, arrogância e hipocrisia. E muito mau gosto.
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