Quando cotas questionam a noção democrática




No Brasil, cada eleitor um vale 1/100.000.000 nas urnas. Aplicar a ponderação das cotas, numa escolha democrática, implica em consagrar a desigualdade e a distorção

Leio que avança no Congresso um movimento pela criação de cotas raciais para deputados – estudais e federais – e também para vereadores.

Fui inteiramente favorável às cotas raciais quando o debate envolvia direitos e oportunidades para o cidadão comum ter acesso às universidades publicas. Elas são uma forma de corrigir uma injustiça histórica e assumir que a cultura brasileira contém elementos racistas persistentes e condenáveis.


O debate sobre as cotas raciais na universidade redescobriu a mentira da democracia racial, uma noção que humilha todo cidadão que já foi vítima de atos preconceituosos e envergonha toda pessoa que não perdeu o senso de responsabilidade social.

A proposta de cotas para o parlamento é uma iniciativa do deputado Luiz Alberto, do PT da Bahia. Luiz Alberto é um parlamentar combativo, com compromissos ideológicos sérios e que teve uma atuação destacada na luta pelas cotas para universidade. Demonstrou coragem para enfrentar um debate em que questões teóricas, muitas vezes, serviam como cobertura disfarçada para o preconceito.

Conversamos várias vezes nos últimos anos sobre a situação do brasileiro negro e preciso admitir que aprendi muito com esses encontros.

Mas acho que devemos debater com mais profundidade a criação de cotas para representantes do povo. É uma situação diferente, que envolve questões de outra natureza.

Não estamos, aqui, abrindo passagem num exame vestibular. Estamos falando da representação política de uma nação, da delegação de poderes. Estamos falando em alterar a natureza do poder de Estado.

Numa democracia, cada parlamentar deve ser visto como um representante de uma parcela do eleitorado. Enquanto isso, a instituição fala pelo conjunto da sociedade brasileira. Isso só é possível porque temos uma equação que se resume da seguinte forma: um homem = um voto.

Como entidades autônomas, que representam uma parcela da sociedade, os partidos políticos têm direito, em minha opinião, de escolher a melhor forma para definir seus candidatos em toda eleição. Ao menos em teoria, podem criar a regra que lhes convém – inclusive definir candidatos perpétuos. Nada pode impedir que um eventual Partido Feminino lance 100% de candidatas de um só gênero, por exemplo.

O debate sobre cotas para parlamentares é diferente quando se pretende transformá-las em regras do Estado, válidas para todos os partidos e candidatos, com poder de alterar a equação fundamental, que nos assegura deveres e direitos iguais.

É legítimo, na universidade, questionar a meritocracia, conceito que pretende justificar séculos de opressão e desigualdade em nome de qualidades e competências individuais. Mas não há “meritocracia” entre eleitores. Todos são democraticamente iguais. Até analfabetos votam e fazem suas escolhas.

Se é errado dar a uma só pessoa o direito de votar duas vezes, também é errado assegurar, a determinado grupo de candidatos, um acesso especial ao poder legislativo.

Estamos falando aqui em modificar um pilar fundamental de toda democracia.

Ao reservar um quinto do plenário para candidatos negros, a proposta garante uma diferença inicial de 103 votos em qualquer deliberação de seu interesse.

Será, na Câmara, a maior bancada entre todas existentes hoje. Terá um peso decisivo em todas as decisões tomadas, a começar pela escolha do presidente da Casa e outras indicações importantes. Partido mais votado em 2010, o PT, nunca teve um peso específico tão grande. Nem o PMDB, em outras épocas.

Poucos grupos de interesse – progressistas, reacionários, meio a meio – que somam parlamentares de diversas legendas têm a mesma dimensão.

Estes grupos são constituídos da mesma forma, a partir do trabalho de argumentar e convencer os colegas de seus propósitos. Eleita por cotas, a bancada dos parlamentares afrodescendentes terá outra origem, uma reserva específica, definida no momento da eleição.

É claro que, na vida real, existem lutas, conflitos de interesse e diferenças. Também existem distorções, a começar pela influência do poder econômico na definição do voto de cada candidato. São falhas que é preciso corrigir.

O esforço de toda reforma eleitoral -- inclusive do financiamento de campanha -- deve ser garantir a expressão da vontade popular da forma mais transparente possível. A finalidade é uma só: aprimorar a equação um homem = um voto. Para isso se quer impedir a influência dos recursos privados numa eleição. Esse dinheiro é a maior fonte de distorção de uma democracia.

As cotas, numa eleição, implicam em diminuir direitos que devem permanecer intocáveis. Não envolvem benefícios nem oportunidades sociais, nem privilégios econômicos. Envolvem o instrumento que tem o poder de criar e desfazer privilégios.

Uma democracia se apoia, essencialmente, em direitos que devem ser milimetricamente iguais. Por isso ela é superior a todo regime de castas.

O que torna a democracia um regime com muitos defeitos, mas menos pior do que todos os outros, é uma matemática legítima.

Por mais que um assalariado e o seu empregador tenham patrimônios diversos, um estilo de vida diferente e interesses opostos em vários aspectos da vida social, os dois têm direito ao mesmo quinhão democrático no dia do pleito – nem mais, nem menos.

No Brasil, cada eleitor um vale 1/100.000.000 nas urnas. Aplicar a ponderação das cotas, numa escolha democrática, implica em consagrar a desigualdade e a distorção. O saldo final é uma queda na representatividade, o argumento final para todo questionamento do regime democrático.

O que está em jogo, em toda eleição, é a representatividade dos candidatos. Ela é que elege e manda para casa.

A vitória e a derrota numa democracia devem traduzir, em qualquer circunstancia, o número de votos. Não podem obedecer a outras condicionalidades. Não podem ser ajustadas nem corrigidas. Elas são o que são, absolutas.

Quem apresentou a proposta de governo que recebeu apoio da maioria tem legitimidade para governar, definir prioridades, formar alianças e tomar decisões em nome do povo. Os demais devem submeter-se, explorando ao máximo os direitos que as democracias reservam às minorias.


Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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