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Filho e pai: destino traçado

Editorial

De como, aos 16 anos, entrei pela primeira vez no Pão de Açúcar

por Mino Carta — publicado 08/11/2013 

Vamos à praia?”, propôs meu pai. Era domingo, dia de folga no Estadão que não saía às segundas. Eu tinha 16 anos e logo concordei, “vamos”. Meu pai possuía um Jaguar preto com painel de madeira e dele cuidava com desvelo paterno, embora não esbanjasse virtudes de piloto. Antes do Jaguar, conduzira pelas ruas de São Paulo um Skoda de rodas traseiras tortas, como as pernas de dona Maricota, que morava na esquina.

São Paulo não chegava a 2 milhões de habitantes e contava com pouco mais de 50 mil carros em circulação. As placas levavam números relacionados com o momento do registro, e a chapa número 1 ornava o Cadillac de Chiquinho Matarazzo, filho do fundador da IRFM e morador destacado da Avenida Paulista, além de dono da maior fortuna brasileira.


O pai Francisco, imortalizado desde seu passamento à outra vida até por estátuas, chamara da Itália o arquiteto Piacentini para construir sua casa na esquina da Rua Pamplona, e a sede do império no centro da cidade, em mármore travertino. Podia-se permitir certos luxos, chegara a incluir entre suas propriedades um terço do Porto de Santos

Meu pai, não sem alguma pompa, tirou da garagem o lustroso Jaguar e partimos para a praia. Morávamos em uma rua do Jardim Paulistano, travessa de uma Iguatemi de paralelepípedos que hoje, notavelmente alargada e devidamente asfaltada, chama-se Avenida Faria Lima. Onde, dias atrás, fui entrevistar Abilio Diniz, instalado no alto de imponente espigão, inimaginável quando eu morava por perto. E não é que mal andamos, mais de 60 anos atrás, por meia dúzia de quarteirões, e o Jaguar dá sinais de fadiga, emocional suponho?

Meu pai tinha afeição profunda por seu carro, sem detrimento da dificuldade ao reduzir as marchas. À época do Skoda, nas ocasiões em que nos levava, a mim e meu irmão Luis, para o Colégio Dante Alighieri, no instante em que o motor implorava, na hora de subir a Rua Augusta entre as alamedas Franca e Itu, pela redução da terceira para a segunda, o câmbio lançava um urro espasmódico para espanto das calçadas. Preparados para o evento, meu irmão e eu, sentados no banco traseiro e tomados de vergonha, abaixávamos cabeça e tronco em operação sincronizada para escapar à vista dos transeuntes.

O Jaguar também sabia protestar e meu pai, dotado de paciência invulgar, consigo mesmo inclusive, determinou: “Vamos à oficina”. Ficava na Brigadeiro Luís Antônio, bem em frente a uma bela mercearia de clara inspiração portuguesa, chamava-se Pão de Açúcar, conforme murmura a memória. Segundo meu pai, aquela oficina era a única em toda a cidade em que um Jaguar receberia tratamento hospitalar competente, com boas chances de cura.

Era domingo, e por isso na oficina lá estava o próprio patrão, conquanto vítima de um ataque de sinusite e portanto sofredor de ciclópica dor de cabeça. Disse aos meus botões “isso vai demorar”, atravessei a Brigadeiro e entrei na Pão de Açúcar. Atrás do banco, largo e esticado, um quarentão jovial, tez rosada e olhos vivos, perguntou “a que vem o mocinho?”, respondi ir em busca “de uma boa média, que não seja requentada”, e de “um pão bem quente com geleia à beça”. Discordava da manteiga de Noel.
Ele me serviu com um sorriso e precisão generosa. Muito tempo depois saberia que se chamava Valentim e que era o pai de Abilio. Diniz, está claro. E para não deixar dúvidas, a sede central da empresa familiar, o formidável Pão de Açúcar dos supermercados, tomou conta, décadas a fio, do exato espaço da mercearia. E lá continua enquanto Abilio zarpa para outra empreitada.

E acabei apresentado ao Seu Valentim, figura fidalga e encantadora. Sempre enxerguei em Abilio Diniz o inescapável herdeiro daquela loja da Brigadeiro, sintomática de labor profícuo e de esforço genuíno.Em 1978, Abilio, que ainda não conhecia, quis almoçar comigo. Convidou-me para o Clube Nacional, alturas do Pacaembu. Encontrei o primogênito de Valentim. Um ano depois, juntamente com Domingo Alzugaray, nos atrevemos a lançar um certo Jornal da República, da minha exclusiva responsabilidade seu fracasso, embora fôssemos parceiros na empreitada. A mídia nativa regozijou-se, obviamente. Não era normal, contudo, que o Pão de Açúcar brindasse o Jornal da República, toda semana, com dois anúncios semanais de página inteira. Foi a única contribuição substanciosa à curta sobrevida do jornal. São estes fatos que não esqueço para o meu sempre.

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