O contrato antissocial
Antes da crise, em 2007, A Espanha era superavitária em 1,9%. O Brasil tem hoje um resultado fiscal semelhante ao da Espanha então.
por: Saul Leblon
Deve haver algo de profundamente errado com um sistema tributário em que a perspectiva de pagar um piso salarial de modestos R$ 1.860 reais ao magistério, em 2014, dispara as sirenes do colapso sistêmico nas prefeituras e governos estaduais.
Pelo menos é o que diz o colunismo especializado na pauta: ‘de amanhã Brasil não passa’.
O estranho torna-se paradoxal quando se verifica que o mesmo jogral que cobra educação de qualidade, incita ao arrocho e buzina por cortes de impostos o que, em última instancia, rebateria em uma redução estrutural nas transferências municipais.
O descasamento entre uma fórmula de reajuste do magistério que embute ganhos reais e a evolução nominal das receitas explica, em parte, a tensão nas contas locais.
Mas nada disso dissipa a incoerência do objeto de desejo oferecido pelos pré-candidatos do conservadorismo para 2014.
Nas tertúlias com o dinheiro grosso, eles acenam a miragem de um Brasil com produtividade chinesa, civilidade suíça, superávit ‘cheio’ e receita fiscal correspondente a de Burkina Faso, onde o índice de alfabetização não ameaça a barreira dos 25%.
Ademais, a crítica fiscal que anda de mãos dadas com o boicote à constituinte da reforma política, como é o caso, deve ser encarado no mínimo como esperta.
Preservar um sistema arredio à formação das maiorias políticas dá as elites a salvaguarda institucional contra as reformas progressistas e progressivas que o país reclama.
A tributária entre elas.
Sem ampliar a base tributável sobra o quê?
A purga da austeridade; o confinamento da pauta do equilíbrio no campo do arrocho.
Em tese, o sistema tributário deveria ser o oposto disso.
Uma espécie de caixa de compensação do capitalismo, caberia a ele alimentar os fundos públicos com os recursos necessários à equalização das ditas oportunidades republicanas.
O que se depreende do discurso eleitoral do conservadorismo, no entanto, é o propósito de estreitar ainda mais a margem de manobra do Brasil nessa frente.
O modelo só roda na cabeça de quem acredita nas virtudes do Estado mínimo e na eficiência dos mercados autorreguláveis.
Sendo mais complexa que isso, como é, a sociedade trava.
E esse ‘deu pau’ é um acontecimento recorrente na história da América Latina.
A incapacidade dos Estados nacionais realizarem a transferência líquida de fatias da riqueza das elites para os mencionados fundos públicos está na origem desses colapsos.
Eles se transformam em ruptura política, quando a essa rigidez interna se superpõe uma transição desfavorável de ciclo econômico internacional.
A margem de manobra recente, assegurada pela alta liquidez global, está prestes a se esgotar.
Qual será a direção da nova ruptura?
A julgar pela fragilidade fiscal predominante na região não deveria haver dúvida.
A carga tributária média na América Latina e Caribe é inferior a 20% do PIB.
A da União Européia atinge 40%; no Brasil está em torno de 37%.
Não só.
Mais de 50% da arrecadação regional é baseada em impostos indiretos, pagos de forma linear por toda população, com efeito redistributivo nulo ou regressivo.
Na União Europeia, acontece o oposto: mais de 40% da arrecadação provêm de impostos diretos; os 60% restantes dividem-se em fontes indiretas e contribuições à segurança social.
Um país como o Brasil, com 200 milhões de habitantes e enormes carências estruturais, não poderia se contentar com uma carga equivalente a de sociedades dotadas de infraestrutura já madura.
O sistema brasileiro, no entanto, destaca-se pelo pior: é um paradigma da regressividade desaconselhada por qualquer compendio fiscal.
Enquanto o imposto sobre o consumo representa aqui mais de 15% do total arrecadado, a taxação sobre o lucro líquido é dez vezes menor: não chega a 1,5% da receita.
A blindagem em torno dessa matriz benevolente com o capital é, todavia, irredutível.
Por exemplo: o Brasil é um das maiores exportadores de minérios do mundo.
Mas os royalties pagos por toda a indústria mineral brasileira no ano passado somaram minguados R$ 2 bilhões.
O governo quer dobrar a alíquota que passaria de 2% sobre o lucro líquido para 4% sobre o valor bruto.
Ainda assim, algo modesto diante do padrão mundial.
Mas não obtém maioria para ser aprovado no legislativo.
E não se trata de um ponto fora da curva.
O prefeito Fernando Haddad reforçou a progressividade na coleta do IPTU em São Paulo.
O PSDB acaba de entrar na Justiça com uma ação direta de inconstitucionalidade contra o que caracteriza como sendo um imposto ‘de caráter confiscatório’.
Regressividade é isso.
Uma engrenagem política e fiscal feita para recolher proporcionalmente mais dos pobres e proteger os ricos.
Esse contrato antissocial contamina todo o tecido econômico brasileiro, mas os presidenciáveis de estimação do conservadorismo ainda acham pouco.
Quando Marina Silva se confessa a nova namoradinha do tripé, o que ela está dizendo?
Está se oferecendo para lubrificar a natureza antissocial do contrato, devolvendo ainda mais, em espécie, aos endinheirados.
‘Superávit fiscal cheio’ é o nome da mensagem cifrada, vendida como sinônimo de prudência ao eleitor leigo.
Na real, trata-se de um reforço na regressividade fiscal brasileira.
Ela já remete o equivalente a 5,7% do PIB de volta aos cofres da plutocracia, na forma de juros da dívida pública pagos anualmente.
Uma subversão do princípio da solidariedade fiscal pela primazia rentista.
Na educação o Brasil investe menos que isso: 5,3% do PIB; na saúde, 3,9%; em transporte, 1,2%, em políticas assistenciais; 1,8%; em investimentos de infraestrutura, 1% (governo federal).
Quando o jogral que nunca desafina fala em reduzir impostos e cortar ‘a gastança’, o que se preconiza é alargar e não reduzir esse hiato.
Ou seja, injetar vapor na caldeira da supremacia rentista.
Sem espaço político para taxar endinheirados e o seu patrimônio, governos são compelidos cada vez mais a compensar a anemia tributária com endividamento público.
Emprestam e pagam juros por aquilo que deveriam arrecadar. As consequências explodem em exemplos pedagógicos. Caso recente, a Espanha.
Depois de dois anos e seis milhões de desempregados de uma política ortodoxa devastadora, o déficit fiscal do país está em 7,1% do PIB.
Antes da crise, em 2007, o Estado espanhol era superavitário em 1,9% .
O Brasil tem hoje um resultado fiscal semelhante ao da Espanha pré-crise.
Mas o conservadorismo diz que é a bancarrota e quer que o país adote a política econômica que levou a Espanha a um déficit de 7% do PIB.
Por quê?
Bem, hoje, a banca e os rentistas tem o governo espanhol na palma das mãos.
Agora é emprestar e vigiar. Talvez seja esse o objetivo do terrorismo editorial que coloca na boca das agências de risco ameaças que nem elas consideram pertinentes ao Brasil.
O programa acenado nos salões elegantes por Marina, Campos, Aécio e assemelhados é reforçar esse panóptico que vigia os cofres da União, para evitar fugas que comprometam a ‘meta cheia do primário’.
Não importa que os ‘desvios’ destinem-se a financiar desonerações contracíclicas.
Só este ano, o Estado renunciou a R$ 64 bi em impostos para preservar o consumo e o investimento no ambiente pantanoso da crise mundial.
Nada disso conta.
A agenda fiscal brasileira foi sequestrada pelo rentismo. Há muito tempo. Essa captura constrange e restringe o espaço de debate do passo seguinte do desenvolvimento.
A equação fiscal condensa uma correlação de forças, que hoje reflete a supremacia das finanças desreguladas em escala planetária.
Inverter o jogo não se resume, assim, a inverter valores nas rubricas de receita/despesa.
Está em jogo a capacidade da frente progressista brasileira de reunir força e consentimento para contrapor ao projeto conservador um novo contrato social de desenvolvimento.
Não é fácil. Mas é para isso que serve eleição. É para isso deveriam servir as campanhas eleitorais.
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