Joaquim Barbosa e o sensacionalismo



A eventualidade presidencial de Joaquim coloca uma questão complicada em suas iniciativas em relação à ação penal 470

Vamos ler o item IX do artigo 41 da Lei de Execuções Penais. Diz assim:

Art. 41 - Constituem direitos do preso:

IX - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;

O Houaiss ensina: sensacionalismo consiste no “uso e efeito de assuntos sensacionais, capazes de causar impacto, de chocar a opinião pública, sem que haja qualquer preocupação com a veracidade”

Vamos entender o contexto de 1984, quando a lei foi aprovada, e o contexto de hoje. Os presos da ação penal 470 atravessaram o país em jatos da Polícia Federal para ir a Brasília sem que ninguém saiba a razão, já que a maioria deixou clara a vontade de cumprir pena em região próxima de amigos e familiares e todos têm o direito de serem atendidos nesse quesito.


Alguém vai negar que os presos foram vítimas de uma iniciativa sensacionalista, capaz de “causar impacto, de chocar a opinião pública”?

Uma das comentaristas presentes ao Jô Soares, outro dia, chegou a dizer que a verdadeira proclamação da República não ocorreu em 15 de novembro de 1889, mas na sexta-feira passada. Isso é "impacto" e choque, vamos combinar.

Em 1984, quando a lei foi aprovada, a dignidade dos cidadãos encarcerados era ameaçada pelos meios de comunicação. O jornalismo policial tinha uma importância que não possui hoje. Repórteres e fotógrafos disputavam histórias escabrosas, que permitiam retratar criminosos como personagens animalescos,  monstros morais com valores incompatíveis com uma sociedade civilizada. Era uma forma conveniente de fechar os olhos para a tortura e às execuções cometidas em ambiente de absoluta impunidade. Policiais eram glorificados e tratados como ídolos populares, embora agissem de forma criminosa – inclusive Sérgio Fleury, do DOPS paulista, onde aliava-se a traficantes de drogas e combatia militantes que se opunham ao regime militar.

Em 2013, a situação é outra, evidentemente.

Vivemos no mundo do marketing e dos factoides, essas iniciativas das próprias autoridades que procuram “causar impacto” e se antecipam aos meios de comunicação com a finalidade de usá-los em seu proveito.

O voo dos prisioneiros foi isso, uma sensação. Boa ou ruim, depende do paladar de cada um.

Mas parece claro que ocorreram vários desvios antes, durante e depois da viagem.

Se não havia uma razão clara para que os prisioneiros fossem embarcados, apareceram outras questões no momento da chegada. Os prisioneiros não estavam devidamente acompanhados pela carta de sentença, documento que estipula as condições para o cumprimento de sua pena. Em condições normais, prisioneiros nessa situação costumam ser simplesmente devolvidos à polícia, que só deve retornar quando tiver a papelada devida. Imagine o vexame.

Para não estragar a cena da proclamação da República, todos foram aceitos.

Mas havia outra dificuldade. Havia prisioneiros com direito ao regime semiaberto – mas não havia vagas para que fossem instalados nessa condição. O correto, nesta circunstancia, é liberar o preso e, na pior das hipóteses, amarrar um chip eletrônico em seu tornozelo. Cidadãos notórios – como boa parte dos prisioneiros – até seriam dispensados do chip, já que poderiam ser facilmente reconhecidos e localizados em qualquer ponto do país.

O resumo lógico da epopeia é o seguinte: os  prisioneiros não deveriam ter ido a Brasília. Se chegassem lá, não poderiam ter sido aceitos no presídio por falta de documentos apropriados. Se mesmo assim tivessem entrado, os mais importantes, os troféus – José Dirceu, Genoino, Delúbio – precisavam ser colocados na rua.

Seria sensacional? Talvez. Mas foi sensacionalista, quando se leva em contra um aspecto grave do episódio.

Não foram tomadas medidas adequadas, em relação aos prisioneiros, que poderiam ter estragado a cena. Essas medidas corretivas poderiam, com certeza, colocar em questão a “veracidade” do espetáculo, como diz o artigo 41 da Lei de Execuções.

Há outra questão oculta que acompanhou o episódio.

Com uma oposição que até agora não encontrou um rosto capaz de traduzir um descontentamento difuso que as pesquisas indicam existir no país, o nome de Joaquim Barbosa é  uma possibilidade óbvia para 2014. Ele tem negado qualquer intenção neste sentido e conheço muitos políticos bem colocados que duvidam inteiramente da hipótese

De qualquer modo, o presidente do STF não precisa ter pressa. A lei lhe dá o direito – exclusivo de juízes – de permanecer no cargo até abril antes de desincompatibilizar-se. Só neste prazo precisará filiar-se a um partido político.

Para animar a oposição a pensar na possibilidade da candidatura Joaquim, as prisões ocorreram na mesma semana em que as pesquisas informam que Dilma levaria no primeiro turno se as eleições  fossem hoje.

A eventualidade presidencial de Joaquim coloca uma questão complicada em suas iniciativas em relação à ação penal 470. Está na cara que ele só deixou a condição de ilustre desconhecido para ser aplaudido nas ruas por causa dela. Alguém lembra de outro caso que tenha julgado no Supremo? De alguma denúncia que apresentou quando integrava o Ministério Público?

E aí uma coisa alimenta a outra. Toda iniciativa de Joaquim Barbosa, como presidente do STF, pode lhe render frutos eleitorais óbvios, caso resolva entrar em campanha para se tornar presidente do país.

Pergunto se é muita má vontade enxergar aí um caso estranho de conflito de interesses.

Acho aceitável que um governador, um presidente, um senador, utilize de seu cargo para conseguir votos. Afinal, estamos falando de cidadãos que têm um partido político, falam em nome de um projeto e defendem uma parcela da sociedade. Foram eleitos com essa perspectiva.

Seria absurdo pedir a um governador ou presidente que fosse isento.

Pelo contrário: mesmo procurando defender o conjunto da nação e comprometido com a Constituição, todos têm o direito e até o dever de priorizar seus eleitores, que tem interesses que podem ser até opostos aos de outras fatias da sociedade. Este é o jogo democrático.

A atuação de um juiz, ainda mais presidente do STF, tem outra natureza, outro caráter. Em certa medida, são opostos àquilo que se espera de um candidato. Devem refletir a isenção das togas negras e dos olhos vendados.

Seu compromisso é com a aplicação da lei e o respeito pelas provas dos autos.

Mas, no caso do Brasil e de uma eventual candidatura de Joaquim Barbosa em 2014, suas decisões irão servir a busca por votos.


Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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