Fascismo miúdo

Luiz Gonzaga Belluzzo
Escasseiam aqueles que podem exibir o humor e a ironia de Antonio Prata

por Luiz Gonzaga Belluzzo — publicado 10/11/2013

Na Bahia, manifestantes interromperam a participação de Demétrio Magnoli em um debate e impediram outro que seria protagonizado por Luiz Felipe Pondé. A escalada de intolerância, ofensas ad hominem e de desqualificações da opinião alheia segue o seu curso.
Escasseiam os que podem exibir o humor e a ironia de Antonio Prata. Em artigo publicado no caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo, na edição de domingo 3 de novembro, Prata assume a sua “conversão” ao reacionarismo que hoje, no “Brasil brasileiro”, empolga os que se julgam bem-nascidos e bem-pensantes. “Convertido”, Prata pede licença para desfilar a procissão de rancores que ronca nos Porsches e Ferraris em disparada pelas alamedas dos Jardins e adjacências, sem desprezar a colaboração dos remediados em carros de baixa octanagem.


Com requintes de ironia, Prata se infiltra no pelotão dos brancos, ricos, remediados, heterossexuais, machistas, e alerta para a invasão dos bárbaros: negros privilegiados com cotas, vivandeiras do Bolsa Família, homossexuais e feministas. À mercê dessa chusma, nada resta aos bons, bonitos e virtuosos senão responder com os bordões do menosprezo e da revolta.
Nesse ambiente, a intolerância atarraxa todas as máscaras e galopa a rédeas soltas. É ilusão encontrar personalidades por detrás das personas. Na passarela da intolerância, as personas imprimem suas faces inexpressivas nas personalidades congeladas. Não são personagens à procura de um autor, mas máscaras esvaziadas na busca desesperada por protagonismos e autorias.
O desespero é devastador: a multidão de personas dissolve-se na mesmice do narcisismo anônimo. Cintilam e se apagam com a velocidade das aparições no Facebook ou no Instagram. É a massificação da diferença. Daí a agressiva repulsa ao outro, no mundo exatamente como eles, apenas do lado contrário.
Foram exuberantes as manifestações de apoio e de repúdio à caricatura do conservadorismo desenhada por Antonio Prata. O traço de união entre as favoráveis e contrárias é a obstinada resistência ao humor e ironia, uma cabal demonstração dos estragos produzidos pelos trabalhos de massificação da chamada “indústria cultural”. A avaliação dos “bem-pensantes” a respeito de si mesmos não resiste a uma prova de interpretação de textos.
Na visão de Elisabeth Roudinesco, o sujeito moderno, aquele “consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela proibição”, é substituído pela concepção “psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente, preocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”.
Os trabalhos de destruição da subjetividade moderna são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, as vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários produtores do seu desencanto. É preciso caçar essa escumalha como ratazanas prenhes, diria Nelson Rodrigues, grande conservador crítico.
Essa curiosa “psicologização” da existência, diz Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que ele não compreende. O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios dos direitos do homem, do humanismo e da democracia.

No livro As Origens do Totalitarismo e da Democracia, Hannah Arendt definiu o ambiente hostil à cidadania e à liberdade dos modernos como o espaço do totalitarismo anárquico. “A política totalitária não substitui um corpo de leis por outro, não instaura um consensus iuris próprio, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade... a peculiaridade do totalitarismo não é uma estrutura monolítica, senão a ausência de estrutura.”
As lideranças do “pequeno fascismo cotidiano”, diz Domenico Losurdo, propugnam explicitamente por uma ditadura invisível, mais potente do que qualquer outra, justamente porque o indivíduo “psicológico” recusa os sinais exteriores de reconhecimento dos direitos alheios consubstanciado no consensus iuris.

Comentários