Blue Jasmine, de Woody Allen: Realidade é comer pizza vendo TV
Em Blue Jasmine, Woody Allen parece cansado de brincar de sair da realidade com uma virada do acaso favorecendo seus heróis no último momento.
Léa Maria Aarão Reis
Desta vez Woody Allen diz que não há saída da realidade (e do sentimento da culpa) – a não ser na loucura. Ou ele quer dizer que a loucura é a realidade? “As pessoas aguentam muitos traumas; até que um dia vão para as ruas gritar e falar sozinhas”, diz Janete, nome real de Jasmine, a Blue Jasmine, genial personagem do mais recente filme de Woody Allen, de 76 anos, um dos melhores trabalhos que o americano vindo do Brooklin fez na sua carreira de mais de quarenta filmes. E o mais surpreendente.
Em Blue Jasmine Allen dá um show de argúcia, inteligência, graça e crítica social. A inglesa Cate Blanchett, (Oscar de melhor atriz em 2005) nos brinda com outra exibição colocando-se em definitivo como uma das grandes intérpretes da sua geração.
Depois de anos filmando pequenas comédias da vida, alguns filmes quase medíocres, histórias saídas da sua prodigiosa imaginação, e aceitando convites e financiamentos de várias prefeituras de cidades notórias como Barcelona, Paris e Roma (Londres, onde fez o seu magistral Match Point, é exceção) Allen não conseguia levantar fundos para continuar trabalhando nos Estados Unidos. E aí está: ele volta à grande forma de mestre do cinema e da arte de pensar a sua época, na cidade de São Francisco.
São duas irmãs, ambas adotadas e vindas de famílias diversas. Uma é Jasmine, assim rebatizada pela mãe adotiva. “Seu perfume se abre ao entardecer; nas grandes festas e noitadas”. É a de pele clara, fina, bonita, olhos azuis. É a que tem “bons genes”, enfatiza Allen diversas vezes no filme, através dos comentários da irmã, a atriz Sally Hawkins, um desempenho perfeito. Esta segunda é simpática, morena, banal. Caixa de supermercado.
Jas (Janete ou Jasmine; de identidade imprecisa) perde todos os bens e é expulsa da vida milionária de Park Avenue quando o marido, escroque da espécie dos madoff, é apanhado pelo FBI e vai para a cadeia.
Jasmine voa (em primeira classe, mesmo sem tostão na bolsa, mas ainda com cartão de crédito válido) para a costa oeste onde vive a irmã, agora nova pobre em busca de trabalho e de onde morar. Na bagagem, apenas os seus símbolos antigos de poder e fortuna salvos da bancarrota - bolsas, roupas, marcas milionárias, Saint Tropez, Mônaco e Rolex – que não servem agora para nada. Mais vidros de tranquilizantes e muitos drinques de vodca.
São vários os temas e subtemas de Allen neste filme. Um dos mais evidentes é o embate entre as duas trajetórias das irmãs que não são irmãs: a da alta elite financeira, consumidora, indiferente (ela diz: ”Não é pecado ter muito dinheiro!”), e a dos indivíduos simples, os que produzem e vão vivendo.
A sequência da apresentação de Jasmine ao namorado grosso da irmã e aos amigos dele que a paqueram é uma ária brilhante tocada por um virtuose - não do violino, mas dos diálogos de um requintado piadista.
A definição mais justa da anti-heroína de Allen é esta: “aquela que olha sempre para o outro lado” para não enxergar o inconveniente, como diz o seu cunhado no filme. Da parte do marido madoff vivido com brilho por Alec Baldwin e batizado de Hal por Woody Allen - mesmo nome do computador enlouquecido de Kubrick, um dos seus ídolos, no filme 2001 – a filosofia é a de “aprender a não dar 50% do seu dinheiro ao governo”.
Ambiguidade. Orgulho e humildade. Safadezas, hipocrisias. Tons e semitons morais, a aparência, sempre as aparências, e a instabilidade do ser humano montado na gangorra dramática, balançando de um extremo a outro na procura do equilíbrio (?) e da sobrevivência de algum modo. Estes são outros temas secundários de Blue Jasmine. Para abri-los, uma das chaves é a do personagem do diplomata de Washington, viúvo, (vivido por outro ator excelente, Peter Scarsgaard) em busca de uma mulher decorativa e com “bons genes”: um clone pelo avesso do ex-marido madoff.
Este filme de Woody Allen é de uma riqueza notável nos seus jogos de simulações e nos diálogos onde diretas e indiretas se superpõem e compõem o mosaico de uma realidade estilizada (como de hábito é a realidade de Allen). Seu ritmo cinematográfico preciso e conciso, mesmo com os famosos planos-sequência do autor, nos remete ao brilho de Hannah e suas irmãs, de Match point (Ponto final), do excepcional Crimes and Misdemeanors (Crimes e pecados) e de Rosa Púrpura do Cairo.
Por que o sucesso planetário de crítica e de público deste Blue Jasmine? Ele é arte? É entretenimento? Discutem os que se habituaram - nos mais recentes sete anos – a encontrar uma filosofia de bolso nas comédias dramáticas, tão agradáveis quanto banais, de Allen.
“Não sou artista o suficiente nem comercial o bastante; alguns filmes meus, por acidente, são bons e até rentáveis”, brinca Woody com Eric Lax no livro do jornalista Conversas com Woody Allen (Editora Cosac Naify), uma leitura fascinante para aficionados.
Em Blue Jasmine, um dos acontecimentos cinematográficos deste ano, Woody parece cansado de brincar de sair da realidade com uma virada do acaso favorecendo seus heróis no último momento. Aquele anjo que os toca, redimindo-os. Mesmo com um vestígio de melancolia e de uma culpa mal digerida (como em Crimes e pecados, onde o monólogo final de Martin Landau, um dos grandes atores setentões redescobertos por Woody, é simplesmente perturbador), seus personagens acabam se saindo... digamos, “bem” - dentro do princípio de que “cínico é apenas um jeito diferente de dizer realista”, como lembrou Allen, em Cannes, ao lançar seu filme mais “cínico” - ou “realista”, Ponto final, em 2006.
O recado de Blue Jasmine é direto: embora a vida seja “tão complicada” como diz a protagonista, a realidade é simples; é comer um pedaço de pizza vendo televisão.
Para o bem ou para o mal.
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