Argentina e os ganhos da liberdade de expressão



Por Laurindo Lalo Leal Filho
Está no ar na Argentina o primeiro canal de televisão indígena do país. É o Wall Kintun (“olhar em volta” no idioma Mapuche) dirigido e operado pela comunidade de povos originários da região de Bariloche.
Dezenas de prefeituras, universidades e escolas também receberam autorização para utilizar freqüências de rádio e TV. Há mais de 500 solicitações para a instalação de rádios de baixa potência em zonas de grande vulnerabilidade social.

Essa nova realidade argentina deve-se a implantação da lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como Lei de Meios, que acaba de completar quatros anos de vigência. Promulgada em outubro de 2009, vem revolucionando o setor audiovisual.
Quatro artigos foram contestados na Justiça pelo grupo Clarin, o maior conglomerado de mídia do país. No último dia 29 de outubro a Suprema Corte julgou-os constitucionais. Com isso terá fim o domínio do setor exercido pela empresa que possui 240 licenças para TV a cabo, 9 para rádios AM, uma para FM e 4 para TV aberta.
Com toda a lei em vigor um mesmo empresário não poderá mais controlar canais de TVs abertas e fechadas ao mesmo tempo e o sinal de uma empresa de TV por não poderá chegar a mais de 24 localidades e nem superar o limite de 35 por cento do total de assinantes. Tudo para diversificar a oferta desses serviços.
A lei obriga também às empresas que superam esses limites a devolver as licenças excedentes no prazo de um ano. A maioria já se adequou a essas normas com a exceção do grupo Clarin que vinha usando de todas as armas para não abrir mão do seus privilégios.
O princípio mais geral da lei é que o total de frequências de rádio e TV esteja dividido em três partes iguais. Um terço para as emissoras privadas, outro para as públicas e um terceiro para as que operem sem fins lucrativos.
Trata-se de uma política destinada a ampliar a liberdade de expressão dando voz aos setores da sociedade emudecidos pela força dos monopólios. Em quatro anos, a aplicação dos outros 162 artigos, não contestados na Justiça, mostra a importância da lei para a ampliação da democracia.
Os números são impressionantes e, claro, desconhecidos no Brasil. A Lei de Meios argentina é quase invisível na grande mídia brasileira. Quando aparece é para ser demonizada, confundida ardilosamente com uma forma de censura.
Dá-se exatamente o contrário. Com a lei em vigor ocorreu uma explosão criativa no país ampliando as vozes com acesso aos meios de comunicação eletrônicos. Os números revelam não apenas o aumento da diversidade de ideias circulando como indicam uma grande expansão no mercado de trabalho e um avanço nas conquistas tecnológicas.
Foram concedidas 814 licenças para operação de emissoras de rádio, TV aberta e TV paga. Dessas 53 de TV e 53 de rádio FM destinaram-se às universidades e 152 para emissoras de rádio instaladas em escolas primárias e secundárias.
Enquanto aqui o número de operadoras de TV a cabo é reduzido, dominado por grandes conglomerados internacionais, na Argentina graças à lei, esses serviços já são oferecidos por 45 cooperativas, com 2800 horas diárias de programação própria. Para tanto foram realizados 50 cursos de capacitação e criados, segundo a autoridade que regula o audiovisual, cerca de cem mil postos de trabalho.
A TV digital aberta cobre 82,5% do país com 31 canais. Para que todos tenham acesso a ela foram doados ao público um milhão e 200 mil decodificadores. Ao mesmo tempo criou-se um banco de conteúdos audiovisuais, com mais de 5 mil horas de produções destinadas aos canais não comerciais.
O silêncio da mídia brasileira sobre esses dados reflete-se também no meio acadêmico onde o caso argentino é ignorado, apesar da Lei de Meios ter sido constituída com ampla participação de docentes e pesquisadores que deram a ela forte embasamento teórico. Vários artigos têm remissões indicando suas referências ou oferecendo mais esclarecimentos. Deveria ser texto de estudo obrigatório em nossas faculdades de comunicação.
Sem esquecer a ação política dos docentes argentinos que em 2009 saíram às ruas para apoiar a aprovação da lei. Agora buscam adaptar seus cursos a nova realidade audiovisual. Na Universidade de Quilmes, por exemplo, foi criado um programa transversal sobre tecnologia digital e instituído o “Premio Nuevas Miradas” para “reconhecer os conteúdos da nova televisão federal e antimonopolista”, segundo o reitor Mario Lozano.
A inserção da academia nos projetos de democratização da comunicação acaba de ganhar uma importante referência simbólica. A Faculdade de Jornalismo da Universidade de La Plata outorgou ao presidente da Bolívia, Evo Morales, o título de professor honorário da nova cátedra livre denominada “Por uma comunicação social pela emancipação da América Latina”.
Na homenagem, Morales lembrou o papel da rádio Soberania, criada pelos trabalhadores da região em que ele vivia quando era sindicalista para se contrapor a única emissora então existente, controlada pelos Estados Unidos. Hoje a Soberania integra uma das várias redes comunitárias que cobrem a Bolívia.
Vozes antes caladas, como as dos Mapuche, de Bariloche, essas emissoras bolivianas agora “educam e informam, mas também dizem a verdade e contribuem para a liberação dos povos”, frisou Morales ao se tornar professor honorário na Argentina.
(*) Artigo publicado originalmente na Revista do Brasil, edição de novembro de 2013

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

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