Argentina: começar de novo

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Foram muitos dias longe e fora da luz dos holofotes. Pouco mais de quarenta. Mas quando chegou a hora de voltar, Cristina Kirchner resolveu mostrar que voltou com tudo.

Antes dessa ausência, aconteceram duas coisas. Primeiro, a derrota inegável nas eleições legislativas de outubro.

E segundo, uma operação na cabeça, para sumir com um edema cerebral, cuja causa permanece nas brumas da fase anterior – aquela em que não se dizia nada, em que todos no governo eram uma rara mescla de prepotência e autossuficiência.

Da operação cerebral e suas causas, só Cristina, seus médicos e os íntimos mais íntimos saberão dizer.

Da derrota nas urnas, restam claras ao menos duas coisas.


Primeiro: a aprovação popular da presidenta argentina anda bem abaixo, ou andou, do que ela esperava. Embora seus candidatos a renovar mandatos de deputado e senador tenham obtido, no total, a maioria das vagas, é fato que cerca de 70% do eleitorado preferiu espalhar seus votos na oposição. E ela sofreu uma contundente derrota na província de Buenos Aires, que reúne 40% do eleitorado nacional.

Segundo: ficaram definitivamente sepultadas as possibilidades de que ela se lance como candidata a um terceiro mandato presidencial. Com isso, se aprofundou uma incógnita que já se desenhava, claramente, no horizonte imediato: quem seria escolhido para sucedê-la e levar adiante um processo iniciado há dez anos, quando seu falecido marido, Néstor Kirchner, se elegeu presidente?

Se do lado do governo o panorama é confuso e complexo, resta um tênue consolo: a oposição, lá, bem se parece com a de cá. Não há nenhuma figura de peso, nenhuma proposta concreta e viável de alternativa para o modelo vigente. No balaio de gatos que é o sistema partidário argentino, com um sem fim de sublegendas, apenas dois ou três têm presença e peso em escala nacional. E tirando a sublegenda Frente para a Vitória, que responde diretamente ao kirchnerismo dentro do Partido Justicialista (nome oficial do peronismo), nem os socialistas e menos ainda a União Cívica Radical mostraram desempenho convincente nas últimas eleições. O resto são grupos, agrupações, legendas e sublegendas de alcance apenas local e, na melhor das hipóteses, regional. Dito assim, pareceria que o cenário para que Cristina Kirchner controle a própria sucessão e assegure a manutenção, ainda que parcial, de seu projeto político.

A realidade, porém, é outra. Seu governo enfrenta um desgaste marcante e o próprio processo kirchnerista, depois de dez anos, dá claras mostras da necessidade de uma série de ajustes e correções. A resposta das urnas, nas recentes eleições parlamentares, serviu de confirmação desse mal-estar. O próprio estilo pessoal da presidente, pouco dada ao diálogo e à negociação, propensa a uma formidável centralização de decisões – inclusive as mais corriqueiras – contribuiu, e muito, para esse mal estar visível. 

Pois agora, na sua volta após a licença médica, a presidente surpreendeu.
Primeiro, assumiu a realidade: retirou seu inócuo ministro da Fazenda, Hernán Lorenzini, e pôs em seu lugar Axel Kicillof, que ocupava uma secretaria nacional mas era quem, de fato, ditava as regras do jogo. Nomeou, para a chefia de Gabinete – que corresponde à nossa Casa Civil – o governador da província do Chaco, Jorge Capitanich. E afastou o todo-poderoso secretário de Comercio Interior, o polêmico Guillermo Moreno, que também funcionava como uma espécie de ministro-paralelo da Fazenda. Houve outras mudanças, da presidência do Banco Central ao ministério da Agricultura, mas essas três – a saída de Moreno e muito especialmente a chegada de Capitanich e Kicillof – dão a medida da extensão do que está acontecendo.

Kicillof é uma espécie de pequeno gênio da economia. Defendeu o seu doutorado com as notas mais altas da história da Universidade de Buenos Aires. De esquerda declaradamente, é da linha keynesiana. Capitanich é jovem, absolutamente leal a Cristina (como antes foi a Nestor) Kirchner, tem fama de trabalhador. Também de esquerda, é considerado mais pragmático que Kicillof. Nas mãos da dupla se concentra, a partir de agora, não apenas o poder maior (além, claro, de Cristina, que continua soberana), mas também a condução da máquina do cotidiano governamental.

Se Kicillof assusta o empresariado e os ruralistas, Capitanich serve como paliativo. Já anunciou que vai conversar com todo mundo, a começar pela oposição (Cristina, a bem da verdade, não conversa nem com os aliados).

Um dos primeiros desafios da dupla é encontrar meios eficazes para controlar a espiral inflacionária, que já atingiu a casa dos 25% anuais e não para de pressionar. Guillermo Moreno, o defenestrado, foi-se embora levando na bagagem de pecados o de ter manipulado os índices oficiais de inflação. Outro é recompor as reservas em divisas, que despencam com velocidade assombrosa. É bem verdade que parte desse desmoramento se deve ao fato de o país ter honrado seus compromissos com credores internacionais. Mas, seja como for, dos 48 bilhões de dólares que existiam em fevereiro de 2010 restam pouco mais de 33 bilhões.

    A tarefa que os dois têm pela frente é qualquer coisa menos fácil. Mas, ao menos para Capitanich, o prêmio em caso de êxito é formidável: tornar-se o favorito de Cristina para a sucessão. Ganha a projeção nacional que não tinha, e se mostra como gestor altamente capacitado. Se der errado, nada muda: afinal, o quadro já não era nada bom.


Créditos da foto: Arquivo

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