A tortura, um crime demasiadamente humano
Um livro essencial sobre os crimes da ditadura: é lançado, em São Paulo, Tortura, testemunhos de um crime demasiadamente humano, de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes.
Por José Carlos Ruy*
A história dos brasileiros que ficaram no Brasil durante a ditadura de 1964 e enfrentaram a clandestinidade, as perseguições, prisões e toda a barbárie cometida pela repressão do regime militar ainda precisa ser melhor conhecida. Há inúmeros relatos e memórias daqueles que foram forçados a ir para o exílio e, de lá, lutaram contra o arbítrio, mas a história daqueles vai sendo, aos poucos, revelada.
Uma contribuição essencial, neste particular, é o livro Tortura, testemunhos de um crime demasiadamente humano, de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes (a Dodora), que a editora Casa do Psicólogo acaba de lançar.
A autora, psicanalista, é ela própria uma sobrevivente dos tempos de barbárie. Começou sua militância na Ação Popular (AP) em 1963, foi presa entre 1968/1969 (juntamente com seus filhos Priscila e André que, na época, tinham idades abaixo de quatro anos!); mais tarde, no final da década de 1970, foi uma ativa dirigente e militante da luta pela anistia no Brasil.
Seu livro traz uma discussão teórica sobre as motivações da tortura baseada nas teorias de Freud, com uma interessante apresentação das cartas sobre a guerra - e a violência - trocadas entre Einstein e pai da psicanálise.
Mas a investigação feita por Maria Auxiliadora vai muito além dos motivos psicológicos da violência política. Há um extenso capítulo que trata da tortura no Brasil, com um bem documentado relato da história da ditadura de 1964 e dos métodos da repressão política. Outro capítulo lança o olhar sobre a história da tortura de maneira mais geral, abrangendo desde a antiguidade, a Inquisição, e inclui a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Argélia (1957-1962), quando os franceses desenvolveram métodos de tortura e desaparecimento de presos políticos assassinados que fizeram escola, nas décadas seguintes sobretudo entre os militares norte-americanos e latino-americanos.
Outro capítulo traz o relato de cinco vítimas da repressão e da tortura: Alípio Freire, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Gilse Cosenza e Rita Sipahi.
O estudo realizado por Maria Auxiliadora aprofunda a compreensão da barbárie cometida pela repressão. Aborda aspectos psicológicos, históricos, sociais, jurídicos, sobre estes crimes. O sistema da repressão, na ditadura de 1964, envolveu militares de diferentes patentes e policiais civis, agentes públicos no exercício de sua função pública que “incorporaram o papel de torturador”. E teve o patrocínio de empresários que “acompanharam diretamente sessões de tortura e financiavam equipamentos para torturar”.
Maria Auxiliadora vai além e busca as raízes históricas da violência na sociedade brasileira. Revela como ela está enraizada na colonização e é uma herança perversa do escravismo. Ela decorre, diz, do “modelo de predação e rapinagem dos povos que os europeus recém-chegados aqui encontraram, e sobre a exploração que a colonização manteve como prática”. A sociedade que nasceu com a colonização foi fundada na escravidão que, vigorando oficialmente até 1888, diz ela, “deixou uma marca indelével na nossa história e os incontáveis estudos sobre sua vigência não esgotam nem exorcizam a barbárie perpetrada pelos portugueses, pelos brasileiros e compartilhada pela sociedade”.
A grande novidade do livro está na exposição detalhada da ação dos franceses na Guerra da Argélia; eles se tornaram uma espécie de polo aglutinador da violência política nas décadas seguintes, usada principalmente pelos EUA na guerra do Vietnã e pelos militares latino-americanos que, com amplo apoio dos EUA, instituíram ditaduras civis-militares na década de 1960.
Maria Auxiliadora baseia-se sobretudo no depoimento do general Paul Aussaresses que, na Argélia, foi um dos comandantes do destacamento de paraquedistas (foi o braço direito do comandante dos paraquedistas, general Massu).
O general torturador, Paul Auussaresses
Quando Massu e Aussaresses, já nonagenários, publicaram suas memórias, em 2001, o debate público sobre a tortura ganhou força na França. Ambos confirmaram que os mais de três mil desaparecidos políticos foram, na verdade, executados. Segundo Aussaresses, desde meados da década de 1950, a tortura e as execuções sumárias faziam parte da política de guerra francesa, e chegou a vangloriar-se por elas.
Nas décadas seguintes, ele especializou-se na formação de oficiais norte-americanos e de vários países latino americanos nesses métodos iníquos de combate e aniquilação de opositores políticos. Em 1961 foi designado pelo governo francês para apoiar os norte-americanos em combate no Vietnã, onde os vietnamitas haviam iniciado a guerra de guerrilhas, que os norte-americanos mal conheciam, mas que os franceses enfrentaram na Argélia.
Aussaresses se instalou em Fort Bragg, na Carolina do Norte (EUA) onde, disse, “ensinava as técnicas que havia aprendido durante minha carreira” - isto é, a tortura e o desaparecimento de presos políticos. Além de militares norte-americanos, havia outros de países como Bolívia, Argentina, México, Colômbia, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile e Venezuela. E formou alunos que foram esteio, na década seguinte, de ditaduras em seus países.
Aussaresses diz que não ter sido um mero mercenário, mas que sua ação “pedagógica” tinha conhecimento de toda hierarquia militar. “Eu não fui um mercenário, mas um oficial superior francês em missão oficial”, que ocupava um posto “dentro da cooperação entre França e Estados Unidos, nosso aliado na luta contra o comunismo”. Isto é, mais do que psicológica, sua missão fazia parte da luta de classes.
Aussaresses esteve no Brasil em 1973, a convite da ditadura, tendo sido adido militar à embaixada da França. Um de seus amigos mais íntimos era o então coronel João Batista Figueiredo, do Serviço Nacional de Informações, o mal afamado SNI. Além de Figueiredo - que viria a ser o último general presidente da ditadura de 1964 - o general francês também conviveu com o facínora da tortura e do assassinato político, o delegado Sérgio Fleury. E deu aulas de tortura e desaparecimento de opositores políticos em Brasília, Manaus e outros lugares.
Nesta época em que o debate público da tortura, do assassinato político e da necessária exposição pública dos responsáveis por estes crimes cresce no Brasil - principalmente entre a juventude -, a leitura e oi debate do livro de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes é fundamental!
*José Carlos Ruy é jornalista, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, editor do jornal A Classe Operária e do Portal Vermelho.
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