Vergonha no STF

O grande problema da mais nova investida do presidente do STF, Joaquim Barbosa, contra o jornalista Felipe Recondo, do Estado de S. Paulo, é a certeza de que ele não está falando a verdade

Numa situação constrangedora para o País, uma autoridade que responde por um dos três poderes da República decidiu empenhar-se uma operação mesquinha. Usou de sua autoridade para tentar forçar a demissão da advogada Adriana Leineker Costa, funcionária do gabinete ocupado por Ricardo Lewandovski, onde ela trabalha desde 2000. Na época em que a doutora chegou ao STF, nem o atual presidente do STF nem o vice sequer tinham o direito de imaginar que hoje em dia estariam dando expediente por ali.



Num ofício em que procura justificar seu gesto, mas apenas envergonha as partes envolvidas, Barbosa alegou que a presença de Adriana Leineker Costa configura uma situação “aética” em função de uma “relação marital” com um “jornalista-setorista de um grande veículo de comunicação” que exerce sua atividade nas dependências do tribunal, utilizando-se “da infranet, internet e telefones colocados a sua disposição”. Diz Joaquim que, em função de sua relação “marital”, o marido da funcionária usufrui de “situação capaz de gerar desequilíbrio na relação entre jornalistas encarregados de cobrir nossa rotina de trabalho.”

Por trás de um palavreado típico de quem não expressa o pensamento com clareza, o presidente do STF cometeu várias atitudes inconvenientes em nome de fantasias absurdas. Para começar, não há base legal para se afastar uma pessoa de seu emprego em função do casamento, assunto que diz respeito à vida privada de todo mundo. Mesmo que a doutora Adriana fosse casada com um criminoso de alta periculosidade, cumprindo pena em presídio de segurança máxima, teria o direito integral a garantir o próprio sustento num emprego digno, exercido depois de prestar concurso público, cumpridas todas as exigências legais. Depois da Idade Média, nenhuma autoridade tem o direito de imiscuir-se na vida privada de homens e mulheres que, recentemente, conquistaram inclusive o direito de unir-se a pessoas do mesmo sexo, não custa recordar. Visões preconceituosas que incluíam no passado expressões como “más companhias”, “tipos indesejáveis” e "passado duvidoso" não fazem parte do convívio numa sociedade democrática.

A nenhuma autoridade cabe a prerrogativa de zelar por um suposto “equilíbrio” na “relação entre jornalistas” encarregados da cobertura da área em que atuam. Num País onde a censura é proibida pela Constituição, não cabe ao presidente do STF, nem à presidenta da República, nem ao delegado da esquina e nem ao pipoqueiro do parque de diversões tomar qualquer providência para orientar, definir, equilibrar ou desequilibrar o trabalho dos jornalistas. Quem deve cuidar dessa tarefa é o pauteiro do jornal, profissional encarregado de distribuir repórteres pelas diversas áreas de cobertura. Quem julga se um trabalho está equilibrado, ou não, é outro jornalista, o editor.

Em qualquer caso, a organização de uma cobertura é, na forma e na essência, uma atribuição exclusiva de quem escreve e de quem lê uma notícia. Faz parte de sua liberdade que, por definição, não é equilibrada nem desequilibrada – apenas é.

Toda pressão externa para interferir nesse trabalho nada mais é do que uma forma de pressão, abuso e intimidação.

E é neste terreno, das liberdades e garantias individuais, que a intervenção do ministro do STF se mostra preocupante. Foi a Felipe Recondo a quem Joaquim Barbosa se dirigiu em 2010, em termos grosseiros e inaceitáveis, quando este tentou cumprir a obrigação profissional de lhe dirigir uma pergunta – e foi interrompido antes que pudesse terminar a questão. O caso produziu um escândalo e uma sequência vexatória. A assessoria de imprensa do STF divulgou, na época, uma nota onde sustentava a desculpa de que a reação descontrolada se deveria às dores nas costas de Joaquim Barbosa.

Não se deve esperar, no entanto, que o caso receba o tratamento que deveria, embora estejamos falando de algo tão essencial para um País como a palavra do presidente do Supremo Tribunal Federal.

Foi esta palavra que se colocou em dúvida com a dor nas costas de 2010, e é ela que se coloca em dúvida, com o argumento de "aética" sobre a “relação marital” e o jornalismo “desequilibrado” de 2013. Mas todos podem ficar tranquilos, pois logo o caso estará esquecido.

Da mesma forma, a prisão de Claudia Trevisan, correspondente do mesmo jornal, quando tentava entrevistar Joaquim Barbosa em Yale, talvez nunca venha a ser inteiramente esclarecida.

O que se teme, na verdade, é que este comportamento condenável do presidente do Supremo possa contaminar a avaliação de seu papel Ação Penal 470. A cada dia que passa, surgem vozes autorizadas em torno do julgamento para condenar a falta de garantia aos réus e o pouco respeito exibido pelos direitos da defesa. Os acusados falam de irregularidades e episódios mal explicados. Descrevem inquéritos mantidos em segredo, provas que poderiam ser úteis, mas jamais foram exibidas na hora certa. Eles também se queixam de documentos públicos, como inquéritos da Polícia Federal, auditorias de empresas estatais, que não foram devidamente esclarecidos pelos ministros no tribunal.

São elementos coerentes com o retrato de um juiz que divulga notas à imprensa que ninguém leva a sério, e invade a vida privada de uma funcionária da Justiça para atingir a reputação de um repórter, detentor de um Prêmio Esso, a mais alta distinção da carreira, a quem acusa de agir de forma “desequilibrada.” A menos que se queira acreditar que as pessoas mudam de personalidade na mesma velocidade com que trocam de roupa, seria bom perceber que uma coisa tem muita relação com a outra.

Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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