Veja transforma em ‘super-herói nacional’ assassinos de Amarildo

Antônio David: Veja transforma em ‘super-herói nacional’ assassinos de Amarildo




por Antônio David, especial para o Viomundo

Todo policial do Bope sai do quartel com seu saquinho plástico. Serve para pôr na cabeça do marginal, apertando bem na base, que fica amarrada no pescoço. O sujeito sufoca, vomita e desmaia. É meio nojento, mas eficaz. Do livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel



Na terça-feira passada, 1º de outubro, a Polícia Civil do RJ entregou ao Ministério Público inquérito pedindo o indiciamento de dez policiais militares que atuavam na UPP da Rocinha.

Os policiais são acusados de terem sequestrado, torturado, assassinado e ocultado o cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, cujo corpo continua desaparecido.

Detalhe: dentre os dez indiciados, está o ex-comandante da UPP, major Edson. Trata-se de um oficial formado pelo Bope.

Não há como deixar de lembrar do filme Tropa de Elite.

Isso porque, segundo a polícia, moradores relataram durante as investigações ja terem levado choques elétricos e já terem sofrido asfixia com sacos plásticos por policiais em busca de informações sobre traficantes e armamento.

Ora, não são exatamente essas práticas que o filme retratou?

Mas o que mais chama a atenção é o fato de que, enquanto a tortura deita e rola no filme e na vida real (pelo menos para uma parte da população), a percepção de muitos que assistiram o filme é positiva em relação ao tipo de policial que o filme retrata.

É sintomática a capa da revista Veja, de 10 de novembro de 2010. Sob a imagem do Capitão Nascimento, a chamada anuncia: “O primeiro super-herói brasileiro. Ele é incorruptível, implacável com bandidos e espanca políticos degenerados”. E promete: “Que recado estão dando os milhões de brasileiros que viram e aplaudiram o filme?”.

Não tratarei da reportagem. O leitor do Viomundo não merece tal desprazer.

É inegável. De fato, “milhões viram e aplaudiram o filme”. Mas será que esses milhões não viram que os “super-heróis” sequestram, torturam e matam? Não viram as cenas de asfixia com saco plástico? Não viram, ao final de Tropa de Elite 2, um policial prestes a matar “com a 12″ um traficante já rendido? Claro que viram. E, no entanto, aplaudiram.

Uma parte talvez não se dê conta de que o filme retrata a vida real. Outra parte talvez saiba disso, e não se importa. E há aqueles que sabem e, justamente por isso, aplaudem. Certamente Veja não está entre os primeiros. Duvido que esteja entre os segundos.

O mais inquietante na esdrúxula capa é saber que os crimes praticados no filme por policiais do Bope convivem com a imagem de que estes mesmos policiais seriam “incorruptíveis”, quando na verdade não há corrupção maior do que sequestrar, torturar e assassinar.

Claro está, e não é novidade, que a revista Veja tem um critério não só seletivo mas também bastante sui generis de corrupção.

O ponto é que, ao promover a imagem do policial “incorruptível”, do “super-herói”, Veja ignora solenemente as práticas de tortura e assassinato que o filme retrata, e que ocorrem de maneira recorrente e sistemática na vida real para milhões de brasileiros que vivem em periferias urbanas.

Contudo, o problema maior não está em ignorá-los, mas em transformá-los no seu exato oposto. Na abordagem de Veja, tortura e assassinato praticados por policiais passaram de crimes a algo normal, que deve ser encarado com naturalidade.

Ao cabo, é como se a revista tivesse dito: exatamente porque sequestra, tortura e mata, ou seja, sendo “implacável com bandidos”, é que o capitão Nascimento é o nosso herói.

Ocorre que isso não pode ser dito, pelo menos não de maneira tão explícita e aberta. A naturalização dos crimes praticados pelos policiais do Bope no filme é feita, na abordagem da revista, exatamente quando Veja silencia sobre eles. Passam despercebido.

Temos aqui uma prática recorrente do tipo de direita que se formou no Brasil. O fascismo é naturalizado na medida em que é silenciado, na medida em que passa despercebido, na medida em que é incorporado à paisagem. O fascismo não é explicitado, mas silenciado. A revista Veja não precisa defender abertamente a tortura praticada por policiais. Ela o faz veladamente, quando silencia.

Daí porque a crítica à direita brasileira envolve voltar-se para estes silêncios e fazê-los falar, obrigá-los a falar, exigir que falem – o que verdadeiramente pensam, o que verdadeiramente pressupõem, e que é estrategicamente silenciado.

Que fique claro: ao retratar um torturador e assassino como o “super-herói nacional”, Veja transforma em “super-herói nacional” exatamente os assassinos de Amarildo (e de tantos outros).

Em tempo: reportagem publicada pela Folha de S. Paulo mostra que o número de desaparecidos em 18 regiões onde há UPPs aumentou 56% entre 2008 e 2011.

Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.

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