Quem perde na guerra de Belo Monte


Por Paulo Moreira Leite


O debate sobre Belo Monte parece uma discussĆ£o sobre meio ambiente. NĆ£o Ć©. A questĆ£o envolve nosso desenvolvimento e o bem-estar da populaĆ§Ć£o, em especial a mais humilde


FaƧa um teste de sinceridade: antes de seguir a leitura deste texto, desligue o computador por um minuto e, no escuro, tente adivinhar qual o tema em discussĆ£o. 


Quando vocĆŖ ligar de novo, irĆ” descobrir que o assunto Ć© a construĆ§Ć£o da Usina de Belo Monte. 

 

HĆ” dois dias, a JustiƧa deu nova liminar que interrompe a construĆ§Ć£o da usina, planejada para ser a maior hidrelĆ©trica em atividade no territĆ³rio nacional depois de Itaipu. O desembargador federal AntĆ“nio de Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1Āŗ RegiĆ£o (TRF-1) acolheu denĆŗncia do MinistĆ©rio PĆŗblico Federal, que afirma que nĆ£o estĆ£o sendo cumpridas condiƧƵes estabelecidas pelo Ibama. 

 

A decisĆ£o liminar de Souza Prudente determina a anulaĆ§Ć£o da LicenƧa de InstalaĆ§Ć£o da usina. 

 

NĆ£o Ć© o primeiro nem o Ćŗltimo capĆ­tulo de uma guerra. 

 

JĆ” existe uma determinaĆ§Ć£o de suspensĆ£o de uma liminar semelhante, assinada pelo presidente do Tribunal. A licenƧa de instalaĆ§Ć£o da usina estĆ” em vigor, de qualquer maneira. 

 

Esta liminar representa a 27ĀŖ interrupĆ§Ć£o nos trabalhos desde que as obras tiveram inĆ­cio, em 2011. Sendo generoso, temos uma interrupĆ§Ć£o a cada mĆŖs e meio, em mĆ©dia. Ɖ um plano de guerra atravĆ©s dos tribunais, vamos combinar. 

 

Em matĆ©ria de judicializaĆ§Ć£o, essa forma de interferir nas decisƵes do Estado sem levar em conta a soberania popular, que se manifesta nas urnas, pelo voto que escolhe os representantes da naĆ§Ć£o, deve ser um recorde mundial. 

 

O mini apagĆ£o sugerido no teste se justifica pelo seguinte. Para acompanhar o crescimento da economia, estima-se que o paĆ­s precise ampliar em 5,2% ao ano sua oferta de energia na prĆ³xima dĆ©cada. Este cĆ”lculo Ć© oficial. Ɖ assumido pelo ministĆ©rio das Minas e Energia e pela Norte Energia, que constrĆ³i Belo Monte, fontes responsĆ”veis pela maioria das informaƧƵes deste texto. 

 

VocĆŖ tem todo o direito de duvidar dos nĆŗmeros, mas Ć© bom admitir que dificilmente irĆ” encontrar informaƧƵes muito diferentes. A ordem de grandeza, de qualquer modo, nĆ£o se altera. Ɖ possĆ­vel mudar a interpretaĆ§Ć£o dos dados, naturalmente. 

 

AĆ­ nĆ£o estaremos discutindo CiĆŖncia, mas polĆ­tica, esse saudĆ”vel exercĆ­cio civilizatĆ³rio. O debate sobre Belo Monte parece uma discussĆ£o sobre meio ambiente. NĆ£o Ć©. A questĆ£o envolve nosso desenvolvimento e o bem-estar da populaĆ§Ć£o, em especial a mais humilde. 

 

Desde que se descobriu que um cavalo poderia puxar uma carroƧa se sabe que nĆ£o hĆ” desenvolvimento sem energia. E desde que a questĆ£o ambiental tornou-se um valor das sociedades contemporĆ¢neas, Ć© um fator que deve ser levado em consideraĆ§Ć£o. 

 

Em Belo Monte estamos falando de um investimento de R$ 27 bilhƵes, que emprega 24.000 trabalhadores e envolve umas das formas mais limpas de geraĆ§Ć£o de energia que se conhece. 

 

Estima-se que a energia de Belo Monte irĆ” atender a 60 milhƵes de pessoas – quase um terƧo da populaĆ§Ć£o brasileira hoje. A menos que pretenda prolongar nosso apagĆ£o de um minuto indefinidamente, seria preciso experimentar alternativas mais caras e mais poluentes para nĆ£o deixar essa fatia imensa de brasileiros na treva. 

 

Por exemplo: para substituir a potencia de Belo Monte seria preciso construir 19 usinas termoelĆ©tricas, que iriam gerar uma poluiĆ§Ć£o de 19 milhƵes de toneladas de gĆ”s carbĆ“nico por ano, valor superior Ć s emissƵes totais de todo setor elĆ©trico brasileiro em 2007. Outra possibilidade, sem dĆŗvida menos poluente, seria energia solar. O custo seria 6 vezes maior. 

 

Neste exercĆ­cio interativo, Ć© sĆ³ multiplicar sua conta de luz por seis para se ter uma ideia do que estamos falando. Imagine esse preƧo na conta das famĆ­lias mais pobres. 

 

Ɖ a regressĆ£o forƧada Ć  vela e Ć  lamparina, certo? Lembra daquele economista que quer impedir a poluiĆ§Ć£o atmosfĆ©rica elevando o preƧo da carne e do leite para reduzir nossos rebanhos? Ɖ o mesmo raciocĆ­nio. 

 

NĆ£o custa relembrar algumas verdades conhecidas. Elaborado e reelaborado ao longo de trĆŖs dĆ©cadas, o projeto de Belo Monte Ć© produto de uma sucessĆ£o de negociaƧƵes. As medidas compensatĆ³rias, destinadas a beneficiar populaĆ§Ć£o do lugar, envolvem gastos de R$ 3,7 bilhƵes de gastos nos onze municĆ­pios atingidos. NĆ£o vou listar investimentos e melhorias em curso – algumas essenciais -- porque a ideia nĆ£o Ć© embelezar as coisas. Basta dizer que sĆ³ por causa de Belo Monte a cidade de Altamira, com mais de 100 000 habitantes, ocupando uma Ć”rea equivalente ao CearĆ” e maior do que o Acre, por exemplo, terĆ” seu primeiro sistema de Ć”gua e esgoto. 

 

Colocada no centro de uma mobilizaĆ§Ć£o internacional que hĆ” dĆ©cadas procura colocar a AmazĆ“nia como uma reserva ecolĆ³gica da humanidade – sob zelo dos Estados Unidos, naturalmente -- Ć  margem da soberania do territĆ³rio brasileiro, Ć© compreensĆ­vel que a populaĆ§Ć£o local procure tirar proveito de todos holofotes, nacionais e internacionais, para arrancar cada dĆ³lar e cada real a mais para si, para suas famĆ­lias e seus descendentes. 

 

NĆ£o se pode, contudo, perder de vista um ponto essencial. Da mesma forma que a populaĆ§Ć£o norte-americana tem a palavra final sobre o Alaska e a populaĆ§Ć£o de todo paĆ­s define o que farĆ” com seus tesouros naturais, o destino sobre a AmazĆ“nia Ć© uma discussĆ£o entre brasileiros. E, neste aspecto, Ć© fĆ”cil reconhecer que o projeto de Belo Monte Ć© uma proposta bem encaminhada. Ao longo de dĆ©cadas de debate, vĆ”rias mudanƧas foram realizadas, implicando em recuos e concessƵes dos chamados “desenvolvimentistas”. Nem todo mundo jĆ” percebeu, mas os verdadeiros sectĆ”rios, insensĆ­veis, em grande medida reacionĆ”rios, estĆ£o entre seus adversĆ”rios.

 

Em relaĆ§Ć£o ao projeto original, elaborado pelos padrƵes de uma Ć©poca em que a questĆ£o ambiental estava fora da agenda, a usina ocuparĆ” um terƧo da Ć”rea inicial. A tecnologia de geraĆ§Ć£o de energia nĆ£o se baseia em grandes reservatĆ³rios, como ocorre no mundo inteiro, mas no mĆ©todo fio d’Ć”gua, que produz eletricidade de acordo com a velocidade do rio. Em relaĆ§Ć£o ao que poderia gerar, Belo Monte terĆ” uma produĆ§Ć£o considerada modesta, equivalente a 42% de seu potencial, contra uma mĆ©dia nacional superior a 50%. Ɖ o preƧo que se considerou conveniente pagar pelo respeito a cultura e hĆ”bitos da populaĆ§Ć£o da regiĆ£o. 

 

E Ć© um preƧo tĆ£o alto que vĆ”rios engenheiros da Ć”rea hoje questionam se vale a pena construir uma usina com tĆ£o alto custo para benefĆ­cios relativamente baixos – ou se vale a pena abrir uma discussĆ£o polĆ­tica que atĆ© agora ficou fechada, em gabinetes que favorecem a aĆ§Ć£o de ONGs e lobistas ecolĆ³gicos, para tentar chegar a parĆ¢metros mais compensadores. 

 

Em termos sociais, a obra irĆ” provocar o deslocamento de 20 000 pessoas. Ɖ um numero respeitĆ”vel, mesmo quando se considera que equivale a 5% da populaĆ§Ć£o da Ć”rea, de 400 000 pessoas. 

 

Ao contrĆ”rio do que se costuma divulgar, em momentos de sĆŗbito interesse pela sorte dos primeiros brasileiros, nenhuma das 12 Ć”reas indĆ­genas serĆ” alagada. Por exigĆŖncia das negociaƧƵes, serĆ” construĆ­do um canal de 20 km para que suas Ć”reas nĆ£o sejam atingidas. 

 

Nesta situaĆ§Ć£o, ocorre uma charada conhecida dos confrontos polĆ­ticos, tĆ£o bem definida na fĆ”bula do Cordeiro e o Lobo. O detalhe Ć© que, desta vez, muitas pessoas ainda nĆ£o se deram conta de que o Lobo veste pele de cordeiro. 

 

O que acontece com Belo Monte, entĆ£o? Desligue a luz por um minuto e tente imaginar.

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