O direito à crítica, à ironia e ao mau gosto
Márcio Mello Casado*
1. A Constituição Federal e a liberdade de expressão
A liberdade de expressão, o direito de informar livremente, a faculdade de se dizer o que bem entende, externando o seu pensamento, são pilares de uma democracia que deseje continuar a crescer e se consolidar.
Nessa ótica, a crítica ácida, a ironia elegante e mesmo a piada de mau gosto são condutas que raramente infringirão, do ponto da vista da reparação do dano, a esfera individual dos atingidos, notadamente se forem pessoas públicas.
Isto é: quem está exposto – até porque a regra é que as pessoas usufruam dessa exposição em suas vidas – deve estar preparado não só para ouvir elogios de uma claque de admiradores, como para tomar as mais fortes pancadas de quem diverge da conduta, pensamento, partido ou opinião.
Nosso ordenamento jurídico consagra a liberdade de expressão e manifestação do pensamento nos incisos IV e IX do art. 5º e art. 220, ambos da Constituição Federal, bem como o art. 1º da falecida Lei de Imprensa.
O que não se admite é o abuso no jus narrandi ou no jus criticandi, o que, sob qualquer ótica que se analisem os textos jornalísticos sérios (ainda que contenham ironias ou piadas e trocadilhos que possam ser considerados até mesmo de mau gosto) é raro. Até porque, em uma democracia, é saudável que o jornalismo chegue bem perto da linha que divide a liberdade de opinião e o abuso indenizável.
2. Leading case: Juca x Teixeira
No Supremo Tribunal Federal podemos apontar como leading case o litígio que envolveu Juca Kfouri e Ricardo Teixeira, julgado em 13 de maio de 2010.
Trata-se da decisão monocrática, confirmada pelo colegiado, (AI 675276 / RJ. Em igual sentido, a decisão do AgR 705.630-SC, que envolvia um Desembargador de Santa Catarina e o jornalista Cláudio Humberto. Esse último caso foi julgado em 22 de março de 2011), em que o Ministro Celso de Mello examina as supostas ofensas que o jornalista Juca Kfouri teria feito a Ricardo Teixeira, presidente da CBF.
Dentre as ofensas, a que motivou a demanda foi o fato de o jornalista ter chamado o presidente da CBF de “sub-chefe da máfia do futebol nacional”.
Lecionou o Supremo Tribunal Federal que “o conteúdo da matéria jornalística que motivou o ajuizamento da presente causa, longe de evidenciar prática ilícita contra a honra subjetiva do suposto ofendido – parte agravante -, traduz, na realidade, o exercício concreto, pelo profissional da imprensa – ora agravado -, da liberdade de expressão, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República, que assegura, ao jornalista, o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e mesmo que em tom contundente, contra quaisquer pessoas ou autoridades. Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, art. 5º, IV, c/c o art. 220). Não se pode desconhecer que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar. A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade em geral, pois o interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas”.
3. Provando do veneno da liberdade de expressão
O Ministro Celso de Melo provou do veneno da liberdade de expressão no último mês. Justa ou injustamente (para nós foram absolutamente descabidas, burras e mal intencionadas as críticas dirigidas a ele), foram veiculadas diversas opiniões acerca de sua postura no julgamento da AP 470. Os grandes veículos, os Mervais da vida e outros “juristas” da mídia desfiaram carretéis de impropérios contra quem, democraticamente, fez aquilo que é sua atribuição: julgar da forma que acha certo, dentro da ótica constitucional. Mas isso não vem ao caso. O que interessa é que até mesmo para falar essas bobagens/opiniões a liberdade de expressão é garantida.
A grande mídia, no final de semana que antecedeu o voto do Ministro Celso de Melo no julgamento da AP 470, foi até mesmo um passo adiante: partiu para a ameaça mesmo, dizendo que estava em jogo não só a aplicação da Constituição Federal, mas a própria credibilidade daquela Corte.
4. As orelhas de Daniel Dantas: STF sem escalas
Após o julgamento da ADPF 130/DF, de relatoria do Ministro Ayres Britto, a qual declarou não recepcionada pela Constituição federal os textos da Lei nº 5250/67 (Lei de Imprensa), a liberdade de imprensa ganhou ainda mais vigor e importância.
Foi fundado na ADPF 130/DF que o jornalista Paulo Henrique Amorim, em litígio com Daniel Dantas, obteve no Supremo Tribunal Federal liminar na Reclamação 15243/RJ. A discussão entregue ao Ministro Relator Celso de Melo tocava ao desrespeito cometido pela Primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao preceito vinculante da ADPF 130/DF.
Os fundamentos utilizados pelo Ministro Celso de Melo em favor de Paulo Henrique Amorim são praticamente os mesmos que se faziam presentes no debate que envolveu Juca Kfouri. A novidade no caso de Amorim foi o meio processual de que ele se valeu: a Reclamação.
Trata-se de remédio que pode ser utilizado diretamente no Supremo Tribunal Federal, sem escala nos tribunais estaduais. Isto é, se uma decisão proferida por um juiz de qualquer estado da federação contemplar alguma forma de censura ou restrição ao direito de opinião, o lesado poderá ir direito ao Supremo Tribunal Federal reclamar. Não há nem mesmo a necessidade de se fazer uma “escala” (interpor um recurso) nos tribunais estaduais. E a mesma regra se aplica aos Tribunais. Nada de desejar calar a imprensa.
Disse o Ministro Celso de Melo: “O descumprimento, por quaisquer juízes ou Tribunais, de decisões proferidas com efeito vinculante, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade, autoriza a utilização da via reclamatória, também vocacionada, em sua específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer, no que concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia subordinante dos comandos que emergem de seus atos decisórios. Precedente: Rcl 1.722/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno)”.
Chamar alguém de orelhudo, miserável, maior bandido do país ou banqueiro bandido, como fez Paulo Henrique Amorim, dirigindo-se a Daniel Dantas, é algo bom para a democracia. Tão bom quanto chamar Ricardo Teixeira de mafioso, como fez Juca Kfouri. São pessoas públicas, envolvidas em incontáveis denúncias e processos. O bom jornalismo investigativo, crítico e ácido ajuda a movimentar as enferrujadas engrenagens dos poderes. Polícia, ministério público e judiciário têm seus olhos abertos pela imprensa.
5. O mau gosto é constitucional
Merval Pereira, Miriam Leitão e Reinaldo Azevedo são livres para fazerem seus esforços anti-PT, anti-Dilma, anti-qualquer coisa que não faça plim plim. E o fazem com amparo na Constituição Federal. Quando Reinaldo Azevedo critica severamente Joaquim Barbosa, chama os petistas de petralhas, o faz com o mesmo amparo constitucional que Paulo Henrique Amorim comenta o tamanho das orelhas de Daniel Dantas ou faz trocadilho com o nome do Ministro Gilmar Mendes (sempre chamado de Gilmar Dantas).
O mau gosto é constitucional. Até porque o gosto ou cor política não entram na valoração da liberdade de imprensa. O petista acha de extremo mau gosto ser chamado de petralha. Mas quem está afinado com outro tipo de convicção política acha que se trata de uma boa ironia. Divulgar que um famoso jornalista é homônimo de um ator pornô pode ser de mau gosto para uns, mas é fina ironia para outros tantos.
O que não se pode fazer é mentir ou agir com o ânimo exclusivo de injuriar. Mas a avaliação se a conduta foi desconforme com a liberdade de imprensa deve ser sempre norteada pela ideia de que se está tratando de um superdireito, um pilar da democracia. Entre proibir e punir quem deu a sua opinião, o operador do direito deve pensar que é mais saudável que se ouçam ironias ácidas, do que o silêncio ensurdecedor de um estado totalitário.
Márcio Mello Casado é Advogado. Doutor e Mestre em Direito - PUC/SP
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