Nos EUA, espionagem sustenta “tirania suave”

Thomas Drake: Nos EUA, espionagem sustenta “tirania suave”



Do Viomundo

Estados Unidos usam manual da polícia secreta da Alemanha Oriental: depoimento de ex-funcionário da NSA ao Parlamento da União Europeia

Thomas Drake depõe ao Comitê de Liberdades Civis, Justiça e Assuntos Internos

do Government Accountability Project

Gostaria de agradecer ao Parlamento Europeu e ao Comitê de Liberdades Civis, Justiça e Assuntos Internos por terem me convidado para falar diante desta importante audiência pública – e do desafio que vocês enfrentam coletivamente em relação ao programa de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) e seu impacto nos respectivos países-membros como também sobre a privacidade de cidadãos no meu país e nos de vocês.



O tema fundamental diante deste Comitê é o fato de um governo estrangeiro (quase sempre em acordo com o aparato de espionagem de outros países, como também com a cooperação de provedores de internet, telefone e serviço de dados) espionar vocês sob o argumento de estar protegendo seus próprios interesses em nome da segurança nacional, fora do alcance da lei e do debate público, enquanto subverte sua soberania.

Eu costumava voar como um cripto-linguista em um RC-135, em vôos de reconhecimento na Europa durante os últimos anos da Guerra Fria.

Meu principal alvo era a Alemanha Oriental. A polícia secreta da República Democrática Alemã se tornara monstruosamente eficiente no uso da vigilância para permitir sua necessidade patológica de “saber tudo” – seu modus operandi.

Porém, eu nunca imaginei que os Estados Unidos usariam o manual da Stasi como modelo para seu próprio regime de vigilância patrocinado pelo Estado e que se voltariam contra seus próprios cidadãos como pessoas de interesse, assim como milhares de cidadãos do resto do mundo.

Nós realmente queremos nos tornar objetos da vigilância secreta do Estado?

Em um Estado vigiado, todo mundo é suspeito e as leis que protegem a privacidade e a soberania dos cidadãos são vistas como verdades inconvenientes atropeladas em nome da necessidade de manter todos nós seguros, uma forma de justificar a coleção e cópia desenfreada de grandes quantidades de dados sobre nossas vidas.

Infelizmente, esse regime de vigilância cresceu e se tornou um sistema global, que foi muito além de processar o terrorismo e outros crimes internacionais.

Seu Comitê está diante do desafio de lidar com um estado de vigilância escondido nas sombras, que está desmanchando o cerne da liberdade e dos direitos de nossos respectivos cidadãos e usa esse poder para expandir zonas de soberania livres –  enquanto mina o tecido social, rompe a confiança entre nações e ameaça até mesmo o mecanismo que usamos para comércio e trocas.

Este excepcionalismo dá lugar à mentalidade de que os fins justificam os meios em violação à soberania de outras nações e cidadãos muito além das reais ameaças que enfrentamos daqueles que realmente nos causariam problemas, mas quase sempre exagera essas mesmas ameaças em público para ter acesso a todos os nossos dados por trás dos panos.

Quando os serviços de segurança nacionais estão mais do que dispostos a comprometer deliberadamente os serviços tecnológicos de informação e os protocolos com os quais tanto cidadãos como empreendimentos comerciais e privados contam e dos quais usufruem para ter serviços confidenciais legítimos, proteção de dados e segurança de forma a conduzir seus negócios no dia a dia, se torna muito difícil manter a confiança nestes sistemas.

Existe bem mais em jogo do que apenas a soberania de nossos cidadãos e estados diante do aparato estatal de vigilância.

Pelas revelações recentes de Edward Snowden, o governo norte-americano tem violado rotineiramente, em vasta escala industrial, as proteções que a Constituição garantem a seus cidadãos, enquanto também desconsidera a integridade interna de outros estados e direitos fundamentais de cidadãos não norte-americanos.

Eu sei, fui testemunha da criação das bases de um estado de vigilância, tremendamente expandido, em profundo segredo, depois do 11 de setembro. Eu estava lá bem no começo.

Enquanto oficial sênior da Agência de Segurança Nacional, eu soube do uso de um programa secreto de escuta doméstica que coletava e acessava grandes quantidades de dados digitais (incluindo números de telefone, endereços de e-mail, transações financeiras e mais), que transformou os Estados Unidos no equivalente a uma nação estrangeira para o propósito da rede de vigilância e coleta de dados – descaradamente abandonando e se distanciando da Constituição e de um regime legal de 23 anos adotado por conta de violações anteriores dos direitos dos cidadãos por parte do governo e do abuso de instrumentos nacionais de poder contra os norte-americanos, nos anos 60 e 70.

Esses programas secretos de vigilância nasceram durante as primeiras semanas e meses críticos que se seguiram ao 11 de setembro, como resultado de decisões tomadas nas altas esferas do governo norte-americano.

Esses abusos não eram necessários, existiam alternativas legais que teriam melhorado tremendamente a capacidade do serviço de inteligência dos Estados Unidos recorrendo ao que existe de melhor na capacidade de inovação e ao mesmo tempo protegendo a privacidade dos cidadãos.

Eu apresentei minhas profundas preocupações através dos canais internos, falei diretamente com o Escritório do Conselheiro Geral do NSA e depois me tornei testemunha e a pessoa que denunciou problemas internos para duas investigações do Congresso sobre o 11 de setembro, em 2002.

Depois expus fraude, desperdício, abuso e má administração na NSA durante a auditoria do Escritório do Inspetor Geral do Departamento de Defesa, entre 2003-2005, com relação ao programa multibilionário de coleta de informação da NSA que estava em desenvolvimento, mais caro e menos eficiente no atendimento das necessidades da espionagem do que o que já estava disponível e protegia a privacidade.

Eu segui todas as regras que um delator deve seguir até entrar em um conflito fundamental com o meu juramento de respeitar e defender a Constituição.

Então tomei a decisão, em 2006, de exercer meu direito estabelecido pela Primeira Emenda e apresentei à imprensa informação crítica à qual o público tinha direito com relação à fraude, desperdício e abuso, como também com relação ao programa de vigilância secreto e inconstitucional.

Entretanto, ao invés de tratar da ilegalidade e dos desmandos, o governo me transformou em alvo de uma grande investigação criminal sobre vazamento de informação a respeito de um programa secreto de vigilância e me submeteu a uma retaliação severa, represália e desforra que começou me obrigando a deixar meu emprego de servidor público de carreira.

Em seguida fui colocado em uma lista negra, não tinha mais renda enquanto acumulava dívidas substanciais com advogados e outros custos, que me obrigaram a tirar uma segunda hipoteca da minha casa, esvaziar minhas contas bancárias, incluindo aposentadoria e poupança.

O que experimentei como delator envia uma mensagem assustadora sobre o que o governo pode e quer fazer quando alguém fala a verdade que contraria o poder – repressão política e censura diretas.

E ainda após a denúncia, esses desvios inconstitucionais foram (e ainda são) previsivelmente justificados por afirmações vagas e pouco definidas sobre a segurança nacional, enquanto sustentados e instigados descaradamente pela promoção do medo por parte do governo.

Agora nós estamos em uma era na qual discutir assuntos de preocupação significativa para o interesse público, o que de forma alguma compromete a segurança nacional, é frequentemente considerado ato criminoso e como tal tratado por repórteres e pela imprensa – o que é anátema numa sociedade livre, aberta e democrática.

Eu fiz tudo o que pude para defender os direitos inalienáveis de todos os cidadãos norte-americanos e a soberania do indivíduo que são ofensivamente violados e abusados por meu próprio governo – quando não havia motivo para tal, a não ser como desculpa para enveredar pelo “lado escuro”, através do exercício irresponsável e “fora das regras” do poder executivo unilateral e em segredo.

Eu denunciei porque vi grave injustiça, ilegalidade e transgressão ocorrendo dentro da Agência de Segurança Nacional.

Em seguida fui submetido a intensa vigilância física e eletrônica, minha casa foi invadida pelo FBI em 2007 e dois anos e meio depois, no governo Obama, fui indiciado criminalmente por 10 crimes graves, cinco deles sob o Ato de Espionagem, que podiam resultar em 35 anos de cadeia.

As acusações extraordinárias imputadas contra mim pelo Departamento de Justiça são sintomáticas do crescimento do poder do estado de segurança nacional desde o 11 de setembro e são um assalto direto à liberdade de expressão, pensamento, inovação e privacidade.

O governo descobriu tudo que podia a meu respeito e me transformou em um Inimigo de Estado.

Eu me tornei o primeiro delator processado em décadas desde Daniel Ellsberg, sob o Ato de Espionagem draconiano da era da Primeira Guerra Mundial, uma lei que tem como objetivo processar espiões e não delatores que denunciam erros do governo.

Tendo a habilidade secreta de coletar e analisar dados com pouco ou nenhum tipo de restrição, especialmente sobre pessoas, é uma sedução poderosa – e quando é feito sem a permissão da pessoa e em segredo, contra a vontade dela – é a maior forma de controle sobre os outros.

Quando vigilância do governo dessa magnitude se esconde por trás de um véu de segredo, quando professa abertura e transparência enquanto adota uma prática opaca e enganadora, é aí que os cidadãos precisam se tornar mais atentos e cientes sobre o que pode acontecer no futuro – quando suas liberdades são erodidas e até mesmo suspensas em nome da segurança nacional – sem seu consentimento.

O medo engendrado pela invocação de ameaças (reais ou imaginárias) cria um clima no qual os direitos são ignorados como causa unificadora da obsessão com a segurança nacional e o uso do medo pelo governo para controlar a agenda pública e privada.

Meu processo criminal é uma prova direta de um governo fora de controle e das regras que está mais e mais alienígena com relação à Constituição e à democracia, em casa e no exterior.

O surgimento desta forma de governo alienígena, que assume o formato de um Estado de segurança nacional sob vigilância, evidencia as tão distintas e historicamente familiares características de uma “tirania suave”, alarmante e é anátema a qualquer forma de democracia.

Como escreveu Montesquieu, “nenhuma tirania é mais cruel do que aquela que se pratica na sombra da lei e com as armadilhas da justiça: isso é, qualquer um afogaria o infeliz usando a mesma prancha com a qual teria esperanças de ser salvo”.

É possível argumentar que o governo escolheu transformar a mim (e outros) em alvo como parte de uma campanha bem mais ampla contra os delatores para mandar a mensagem mais forte possível sobre o que o governo pode e fará para suprimir discordâncias e discursos dos quais não gosta.

E ainda assim o ataque brutal e sem trégua dos Estados Unidos contra os delatores foi superado pela magnitude do que agora está tentando esconder e continua, como resultado das revelações de Snowden.

A NSA não está apenas escutando todos os norte-americanos e construindo a arquitetura de um estado policial nos Estados Unidos, ela criou os maiores programas de vigilância em massa da história do mundo, enquanto secretamente enfraqueceu a segurança da internet e a privacidade de todo mundo no planeta.

Sem privacidade e sem proteção robusta da privacidade, nenhuma soberania real de cidadãos dentro de um Estado e uma sociedade é possível.

A NSA está fazendo isso deliberadamente, sistematicamente e em segredo.

Mesmo se levarmos em consideração as palavras da NSA – de que tem intenção apenas de mirar em pessoas suspeitas de terrorismo e suas relações com serviços de inteligência estrangeiros – eles estão agora coletando e armazenando claramente o máximo que podem das nossas comunicações.

A NSA inverteu o coração do paradigma democrático no qual o governo atua em público e nossas vidas particulares são privadas.

Agora, as vidas pessoal e privada de todos e as transações e dados históricos associados se tornam o equivalente à propriedade secreta do governo, mantida por anos como dados pré-crime, caso sejam necessários no futuro – dossiês secretos do Estado – enquanto tentativas de expor o governo são rebatidas com a mão pesada do processo criminal.

As palavras do senador americano Frank Church durante as audiências que conduziu sobre os abusos do poder da segurança nacional nos 70 são boas para nos recordar o que pode acontecer quando um regime de vigilância patrocinado pelo Estado é usado como desculpa para nos manter seguros à custa da liberdade.

“Se um ditador tomasse o poder neste país, a capacidade tecnológica que a comunidade de espionagem deu ao governo poderia permitir a ele impor a tirania total, e não haveria jeito de enfrentá-lo, já que até mesmo o esforço mais cuidadoso para organizar uma resistência ao governo, não importa com que grau de privacidade for feito, está ao alcance do conhecimento do governo. Esta é a capacidade da tecnologia”.

As pessoas nos Estados Unidos e no mundo não deveriam ter que se preocupar em se defender de um governo norte-americano à solta, desvinculado de sua Constituição, mas devem se preocupar.

E o governo não deveria, sob o pretexto de proteger seus próprios cidadãos, conduzir um arrastão massivo de vigilância secreta, muito menos do mundo inteiro, enquanto publicamente está esmagando quem tenta expô-lo.

Eu respeitosamente sugiro que o seu Comitê examine devidamente a necessidade decisiva de transparência e a responsabilidade legal de se fazer cumprir os direitos preciosos, vitais e fundamentais dos cidadãos de se expressar em associações, enquanto se protege os que expõem os erros do governo e se oferece proteção robusta contra operações não autorizadas que “vasculham e confiscam”, patrocinadas por qualquer poder estrangeiro, agência estatal de vigilância ou entidade corporativa.

Espero que seu Comitê considere uma lei abrangente no âmbito da União Europeia na qual todos os links EU-EU sejam codificados, com tecnologia aberta de codificação disponível para o uso mais amplo possível sempre que for prático, ao mesmo tempo auditado pela UE.

O que vemos agora revelado em escala global cria o poder de vigilância em massa e escapa do controle efetivo das regulamentações de proteção de dados e da privacidade.

Como vocês, estados membros, se protegem da predação de regimes de vigilância?

Existe uma necessidade distinta de políticas que proíbam um terceiro país e interesses comerciais de acessarem e comprometerem dados pessoais, enquanto também cobrem vendedores e fornecedores de sistemas e produtos de tecnologia da informação.

Também existe a necessidade de criar o poder de processar e cobrar responsabilidades das empresas transnacionais e entidades de comprometerem secretamente a estrutura da qual a sociedade depende para seus negócios e trocas comerciais – considerando até mesmo a necessidade de um tratado compreensivo de proteção de dados entre os estados membros e os Estados Unidos.

Tornar os servidores de internet dos paises membros “à prova do Prism” (programa de espionagem que Snowden revelou) é crítico, dado que os dados não são apenas vasculhados mas copiados e tomados pelo Estado da vigilância.

É a possibilidade constante de um olhar desigual e a realidade da vigilância e da observação (real ou imaginada) que entorpece a sociedade, emudece a criatividade e mina nossa liberdade com o ácido servido pela fermentação potente do segredo e da vigilância em nome da segurança, enquanto nossas liberdades são abandonadas como se fosse o preço que devemos pagar.

Eu rejeito fundamentalmente essa premissa e essa promessa depois do que aconteceu comigo.

Eu tive a sorte de não terminar em uma prisão de verdade (vivi a versão virtual por um bom número de anos) por ter saído do sistema e ter falado a verdade para e sobre o poder – um ato de desobediência civil e individualidade certamente perigoso nestes tempos – expressando o direito fundamental e inalienável da soberania individual em face de um governo decidido a destruí-lo.

A última coisa que uma sociedade livre e aberta precisa é de uma cerca digital em torno de nós – com o arame farpado da vigilância não apenas mantendo controle sobre nossas idas e vindas, agora cada vez mais querendo saber o que pensamos e sentimos –, ameaçando a essência mesma de quem somos e do que compartilhamos como seres humanos.

Tradução Heloisa Villela

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