Crocodilo, ou Arlequim

O longo domínio que Berlusconi exerceu sobre a política italiana está no fim. Contra a sua vontade, Letta continua no poder e quem mexe os cordéis é o presidente da República, Giorgio Napolitano
por Mino Carta — publicado 06/10/2013



Neste enredo dramático, de diversos pontos de vista medíocre com decepcionantes resvalos na farsa, ou na ópera-bufa, sobra em primeiro lugar, límpida e notável, a figura do presidente da República, Giorgio Napolitano, desde o começo deste atribulado 2013 protagonista determinante. Aquele mesmo que, tempos atrás, teve palavras ásperas e amargas para lamentar o asilo concedido pelo Brasil a um assassino chamado Battisti. Na antípoda, o ex-premier por três legislaturas Silvio Berlusconi. Defini-lo como vilão não esgota o assunto.



Um presidente da República em regime parlamentarista teria, em princípio, funções pouco mais amplas do que as da rainha da Inglaterra. Em larga parte decorativas, cabe-lhe representar o Estado e presidir alguns atos formais, mais ou menos automáticos. Como ancião sábio (88 anos), Napolitano assumiu as rédeas da situação sem alarde, quase sorrateiramente, e foi o antídoto providencial à praga chamada Berlusconi.

Foi Napolitano o criador da situação que forçou a retirada de Berlusconi da presidência do Conselho dos Ministros e provocou a formação de um governo de emergência encabeçado por Mario Monti. Torpedeado Monti no final de 2012, ao lhe faltar o apoio do PdL, o partido berlusconiano estranhamente chamado Partido da Liberdade, forçoso foi convocar as eleições. Ao sabor de uma lei eleitoral inaugurada por Berlusconi e sua maioria, surgiu o impasse por gerar três partidos de consistência praticamente igual, o PD de centro-esquerda, o PdL e o Movimento 5 Estrelas, anarquista na pior acepção no sentido de antipolítico. Contra tudo e contra todos, sem distinções ou arrependimentos.

Encerrava-se o mandato de Napolitano na Presidência da República. Tentativas de encontrar um sucessor malograram em virtude da ausência da maioria parlamentar indispensável. Pela primeira vez na história da República italiana, o presidente foi reeleito, desde que não havia entraves constitucionais. E Napolitano voltou à ribalta para patrocinar a formação do único governo possível nas circunstâncias, a despeito das profundas contradições que carregava. Direita e esquerda aliados em torno de um programa aceitável por ambas as partes para salvar o país da bancarrota.

Napolitano, comunista de cepa antiga, mais ligado a Gramsci do que a Togliatti, avesso ao stalinismo e defensor do eurocomunismo, é intelectual refinado e político atilado. Foi ele quem soube enxergar em Enrico Letta, ex-democrata-cristão, o premier possível dentro do peculiar entendimento, ao considerar que não lhe faltam qualidades de equilíbrio e ponderação. E foi ele quem, diante do derradeiro, irresponsável desafio de Berlusconi, orientou Letta na condução do embate decisivo.

Desta vez, Berlusconi tentou reeditar a manobra que precipitou a queda do governo Monti ao retirar-lhe o apoio do seu PdL. As circunstâncias são, porém, diferentes, a partir do fato de que Berlusconi foi condenado por fraude fiscal com sentença definitiva do Supremo italiano, e a punição não se encerra com o pagamento de mais de 500 milhões de euros, algo em torno de 1 bilhão e meio de reais, mas também comina quatro anos de prisão e a perda do mandato parlamentar por um período a ser ainda determinado entre três e cinco anos. O longo caminho do processo criou injunções legais pelas quais a pena de prisão ficou reduzida a um ano aos domiciliares ou ao serviço social, conforme escolha que Berlusconi deverá fazer antes do fim deste mês.

Desde o momento da condenação, Berlusconi cogitou da queda do governo Letta, ao alegar de saída que, tomada pelo PD do primeiro-ministro a decisão de ratificar no Senado a sua cassação, seria impossível continuar aliado de quem o expulsava. Tanto Letta quanto o líder dos Democratas, Guglielmo Epifani, cuidaram de definir a linha do governo e do partido: os problemas judiciários de Berlusconi não se confundem com os interesses do país. Nem por isso a chantagem berlusconiana arrefeceu, ao som das trombetas dos seus cortesãos mais próximos que a mídia passou a chamar “falcões”, enquanto algumas “pombas” ocupavam pastas ministeriais, encabeçado o grupo por Angelino Alfano, ex-delfim de Berlusconi no PdL e atual vice-premier e ministro do Interior.

Neste exato instante, o enredo ganha ritmo mais intenso, como se dá no começo do segundo ato. A despeito dos esforços dos representantes do PdL na comissão chamada a encaminhar o processo de decadência política de Berlusconi, aproxima-se a data da decisão determinada pela lei. O “crocodilo”, como Nanni Moretti o viu em um seu filme recente, quer o golpe de cena e ameaça a demissão coletiva das bancadas do seu partido, lance inédito na história das democracias. Parece imbuído do espírito de Sansão, pronto a morrer com todos os filisteus, embora Sansão seja de outra natureza e catadura.

O golpe de cena precisa de retoque fino para um efeito retumbante. Na sexta 27 de setembro o sansônico “crocodilo” invade a ribalta e anuncia a demissão dos ministros do PdL ao sabor de uma motivação diversa daquela brandida até então: os esquerdistas que dominam o governo não cumprem o acordo selado no início do primeiro ato, pelo qual certos impostos haveriam de ser simplesmente cancelados. A esquerda sabe apenas agir desta forma, sangrar o povo, mas deste Berlusconi é o paladino, aí está para defendê-lo. Berlusconi acredita ser um mestre da retórica, um perito imbatível da comunicação, e é inegável que nas últimas duas décadas sua crença mostrou razões de ser.

No entrecho o coro ganha destaque, uma porção notável do coro. Trata-se dos italianos que se apressam a celebrar um misto de matreira vulgaridade com vocação predadora e absoluta falta de escrúpulos. Sem esquecer a incapacidade crônica de manter o comportamento reservado que se espera de um chefe de governo, a despeito dos ternos escuros, camisas de cor única, gravatas azuis de bolinhas brancas. Diga-se que o “crocodilo” faz um implante de cabelos negros como o manto do Zorro, em contraste com a pele de um indivíduo de 77 anos e, apesar da maquiagem espessa e lustrosa, sempre invocada mesmo quando não enfrenta as câmeras.

A Itália é a pátria do estilo, abriga 60% das obras de arte do Ocidente, mas há italianos, além de Berlusconi, que não merecem habitar o seu cenário. Tal foi a plateia do “crocodilo”, indispensável ao seu êxito. Agora, no entanto, o caldo entorna. A demissão dos ministros precipita a crise do governo e Enrico Letta galga a subida que leva ao topo do Quirinale, uma das sete colinas em que Roma surgiu há cerca de 3 mil anos. Ali o espera Napolitano.

Destas conversas no renascimental palácio da Presidência sai o plano para neutralizar Berlusconi, que de outro recanto romano, o Palácio Grazioli, deblatera contra os comunistas abrigados no governo e nos tribunais e acusa Napolitano de ter influenciado a sentença definitiva da Corte di Cassazione. Ele já está em campanha eleitoral, na certeza de que a crise provocará o pleito a curto prazo e à sombra da lei imposta anos atrás por sua maioria, conhecida como porcellum, o porco.

O presidente da República logo responde e diz com todas as letras que Berlusconi delira e difama, presa do desespero. Há razões mais para justificar o estado patológico, além do primeiro movimento da contraofensiva de Letta: o premier rejeita as demissões dos ministros do PdL e anuncia a decisão de enfrentar o voto de confiança na quarta 2 de outubro para obter o apoio de quem, por cima dos programas partidários, se coloque à disposição dos interesses imediatos do país.

O golpe de cena urdido pelo “crocodilo” naufraga em outro, a rebelião dos próprios companheiros, liderados pelo vice-premier Alfano. As pombas são muito mais numerosas e de bicos mais afiados do que Berlusconi supunha. Na terça 1º de outubro, Berlusconi tenta reassumir o leme da nau à deriva em meio ao motim, ordena que o partido vote compactamente contra Letta no dia seguinte. Horas de grande tensão na noite de terça ao ficar claro que as “pombas” ganharam a parada e que Berlusconi está de costas para a parede. No programa político Ballaró assiste-se, para deleite de milhões de espectadores, à troca de invectivas entre dois companheiros de PdL, dos quais somente um continua fiel ao fundador, e a disputa quase chega às vias de fato. Simbólica da situação.

Berlusconi encontra um surpreendente aliado ao projeto de eleições imediatas, com porcellum e tudo: o cômico Beppe Grillo, líder do Movimento 5 Estrelas. A sua tigrada votará pela queda de Letta, embora também ali se manifeste a resistência de alguns parlamentares. O pombal, entretanto, aqui é pequeno. O decano do jornalismo italiano, mestre reconhecido de várias gerações, Eugenio Scalfari  escreveu no domingo 29 de setembro na primeira página do La Repubblica: “Parece estranho, mas Grillo quer o mesmo de Berlusconi (...) a queda do governo conduz à falência do Estado (...) a Grécia é irrelevante para o equilíbrio europeu, a Itália não é”.

Scalfari desfia o rosário dos problemas: os gastos públicos exorbitantes, os chamados mercados voltados ao assalto à dívida italiana, dos juros e dos índices inflacionários. Por este caminho, sustenta Scalfari, “acabaremos como o Mali, o Cazaquistão ou a Somália, nas mãos de dois bandos dominados por dois crocodilos”. Eleições já reproduziriam a situação de impasse que provocou o governo dito “dos largos entendimentos”. E apressariam o desastre final em um país que não cresce há tempo e cujo desemprego passa de 12%, de 40% entre os jovens.

Na manhã de quarta não há mais dúvidas de que Alfano e os seus estão em rota de colisão com Berlusconi, permanecerão no governo com seus ministros ao votar a confiança. Boquiaberta, a plateia assiste à pirueta arlequinesca do “crocodilo”. Um dos primeiros a ser chamados para dar seu voto na sessão do Senado, Berlusconi impavidamente declara: “Decidi votar sim a favor do país, não sem muito tormento”. Duas horas antes, os mais chegados ao líder anunciavam o contrário e que todos cumpririam a sua ordem. Ao cabo, neste final do segundo ato, Letta obteve a confiança, por 235 a favor e 70 contra no Senado, e por 435 a 162 na Câmara.

A reviravolta do “crocodilo” deixou estupefatos os companheiros de partido, mas revela uma liderança derrotada muito além de acuada. Quanto ao governo, Letta se fortalece e as prioridades passam a ser trabalho e crescimento, cultura e educação, a reforma da lei eleitoral e a aprovação rápida da lei financeira. O premier afirma: “Chega de chantagens, fica provado que, de qualquer forma, o governo não cai”. E reitera: as vicissitudes judiciárias de Berlusconi não interferem na ação governista.

As vicissitudes tendem a se apinhar, a começar pelo processo por concussão e abuso de menor, que já passou da primeira instância com o pedido de condenação a 7 anos de prisão e cassação política definitiva. Mas outros processos já estão engatilhados, um pelo procurador de Bari e diz respeito ao comércio de fêmeas dadivosas, outro pelo procurador de Nápoles, acusa Berlusconi pela compra de votos parlamentares para derrubar o governo Prodi cinco anos atrás.

O terceiro ato parece irremediavelmente destinado a ditar o fim do “crocodilo”, mas a manhã de quinta que haveria de ser serena foi turvada pela notícia do naufrágio ao largo de Lampedusa do navio de refugiados de outras crises e desgraças (leia em A Semana). As autoridades abandonaram Roma, no rumo da ilhota siciliana.

Na noite anterior, ao celebrar a confiança a Letta, Giorgio Napolitano, grande titereiro dos lances decisivos, dizia ter sido “essencial” confirmar o governo atual e louvava “a seriedade e a firmeza” do premier, o vencedor. E concluía: “Está claro que o primeiro-ministro e o governo não mais poderão tolerar que recomece contra eles o cotidiano jogo do massacre”.

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