As duas faces da glória

Há quem conte com a generosidade do Vaticano e quem não conte, como Berlusconi, que esgotou seu arsenal de milagres

por Mino Carta — publicado 04/10/2013 




















Para quem viveu em glória, às vezes cabe a glória da recordação perene. E positiva. Não será este o caso de Berlusconi

Sic transit gloria mundi, diziam os antigos romanos, assim passa a glória do mundo. A frase pode assumir significados e tons diversos, mas, basicamente, avisa que a morte não poupa os vivos, mesmo os poderosos e os celebrados.





Nos últimos 20 anos, Silvio Berlusconi foi o político mais influente da Itália e como premier a governou três vezes. Na soma, cerca de 13 anos. Mandou e desmandou a seu talante. Driblou o conflito de interesses evidente, na qualidade de dono de um império midiático, capaz inclusive de enxotar da Europa o ambicioso Roberto Marinho. Seu partido mudou de nome, manteve, porém, perfeita coesão ao longo do período e, ao dispor da maioria, não hesitou em impor leis iníquas, a começar por aquela eleitoral, também conhecida como porcellum, porco em latim. Primeira responsável pela crise política que há tempo dilacera a Itália.

Não lhe faltou, obviamente, o apoio dos eleitores empenhados em premiar a esperteza na sua acepção mais velhaca e daninha. Muito além da oposição de centro-esquerda, entregue a intermináveis disputas internas, quem de fato o enfrentou foi a Justiça, habilitada a levá-lo várias vezes ao banco dos réus. Soou fatal o processo que condenou Berlusconi em terceira instância por fraude fiscal. Sentença definitiva que implica, entre outras coisas, a perda do mandato por tempo determinado. Falta só definir quanto. De três a cinco anos.

Outros julgamentos se alongam tempo adentro, o mais grave ainda não começou, a tratar da acusação por compra de votos parlamentares para derrubar o governo Prodi. A demanda que o acusa por concussão e abuso de menor já passou da primeira instância com o pedido de uma pena de sete anos de prisão. Neste caso, a perda do mandato seria definitiva. Este titanic achou o seu iceberg, ao qual se agarram os próprios correligionários do ex-líder, abandonado ao seu destino juntamente com uns poucos fidelíssimos.

Berlusconi resiste, mas seu fim é inescapável e evoca outro inglório, o de Benito Mussolini, derrubado pela maioria do Conselho Supremo do Fascio a 25 de julho de 1943 e aprisionado por ordem do rei. A guerra, à qual o Duce havia arrastado um país despreparado, na ilusão de uma rápida vitória hitlerista, para a Itália estava perdida e os próprios dirigentes fascistas, os gerarchi, entenderam a necessidade de afastar Mussolini de vez. Alguns dos “traidores” foram presos no ano seguinte e fuzilados a mando do destronado, libertado da prisão por um comando nazista e transformado em presidente da republiqueta de Salò, no norte da Península. Entre eles o ex-ministro do Exterior, Galeazzo Ciano, genro do ditador.

Para quem viveu em glória, às vezes cabe a glória da recordação perene. E positiva. Não será este o caso de Berlusconi e de Mussolini. Este lembrado negativamente nas páginas da história. Aquele destinado a um destino similar. Não me arrisco a dizer que neste rol há lugar para João Paulo II. Surpreende-me, contudo, que se aproxime o dia de proclamá-lo santo, de sorte a ganhar a glória dos otários. Ocorre agora que o papa Francisco tome claramente rumo oposto àquele de Wojtyla. Ele quer uma Igreja pobre para os pobres, escancara as portas da tolerância para os não crentes, recomenda que o jogo político passe ao largo do Vaticano.

Mais. Bergoglio, a provar a sua determinação, reforma a Cúria porque nela hão de atuar servos de Deus em lugar de cortesãos, e manda despedir 900 correntistas do IOR, o banco Vaticano, entre eles quatro embaixadas, ao deixar claro que questões morais orientam a dispensa sumária. Pois é, o IOR, que foi de monsenhor Marcinkus, protegido de João Paulo II. Quem recorda? Marcinkus acompanhou Wojtyla na viagem ao Brasil no fim de 1979 como a figura mais destacada do séquito, aquele volumoso bispo notoriamente mulherengo, bom de tênis, golfe e negociações mafiosas. Anotações a respeito dos seus deslizes, digamos assim, pousavam sobre o criado-mudo de João Paulo I ao lado de uma chávena de chá na noite em que faleceu do mal súbito, não melhor especificado, e sem direito a autópsia. Deus me livre.

Sim, Wojtyla teria sido um grande monarca por direito divino, imperador e estadista, despótico e impiedoso.  Berlusconi, um sultão devasso.

Comentários