Adrián Fanjul: “É alemão no campus da USP, malandragem!”
O ridículo ameaçador da grande mídia
por Adrián Pablo Fanjul, especial para o Viomundo
A rádio CBN, da rede Globo, gravou, na manhã da sexta-feira, dia 11 de outubro de 2013, uma matéria, na USP, sobre a greve dos estudantes. Como se podia esperar, uma emissão direcionada a desmoralizar e, se possível, criminalizar, mesmo que fosse no discurso, os grevistas. Quase no início da sua fala, a repórter no afã de dar “o furo de reportagem”, deu, na verdade, um furo [PS do Viomundo: no jargão jornalístico, uma "barrigada"], já retirado do ar pela emissora, que, sem qualquer retificação, reeditou a alocução. Eis o fragmento e mais abaixo a íntegra do áudio da matéria:
Na Faculdade de Letras, grevistas
montaram piquetes com cadeiras empilhadas para impedir o acesso às salas
de aula. No interior do prédio, onde a gente conseguiu entrar, havia
também um recado de uma das professoras, que dizia “Alemão no Campus”,
uma referência ao termo dado nas favelas ao falar dos inimigos. Ela
dizia também que os alunos deviam ficar atentos aos e-mails, para saber
das próximas atividades.
As aulas de “Alemão no Campus” correspondem ao curso extra-curricular
de língua alemã oferecido à comunidade, interna e externa, pela
correspondente área do Departamento de Letras Modernas. Sua denominação é
acorde com cursos análogos de outras áreas do mesmo Departamento, como
“Francês no Campus” e “Italiano no Campus”. As aulas de todos eles têm
sido afetadas pelo bloqueio de salas com cadeiras que a jornalista viu e
menciona.Tudo bem, a repórter podia não saber previamente o que são esses cursos de línguas “no Campus”. Mas podia informar-se a respeito. E, sobretudo, estando no que ela denomina como “a Faculdade de Letras” [1], poderíamos esperar que fizesse a hipótese de que tal mensagem, ainda mais provindo de uma professora, tivesse a ver com alguma atividade relacionada à aprendizagem de línguas mais do que ser o recado de um olheiro para certas “próximas atividades” que devem ser dissimuladas.
Quais fatores podem ter favorecido que, na leitura do cartaz pela repórter, tenha sido ativado um contexto cognitivo ou um espaço de memória relativo a cenários de favelas e criminalidade e não a aulas, línguas e “letras”? Questão interessante para refletir não apenas sobre os processos de leitura, mas também sobre as políticas de construção informativa.
Não é difícil pensar o “furo” da jornalista como acorde com a construção criminalizadora que a grande mídia tem desenvolvido em relação a todo setor em protesto, e em especial ao movimento estudantil. A repórter “precisava” encontrar signos de descaso com o conhecimento, preguiça, vandalismo; se possível, uso de drogas, para daí fazer os já sabidos deslocamentos para o narcotráfico e outras formas de delito. Devia percorrer a série metonímica que já conhecemos pela qual, em última instância, toda forma de mobilização e resistência conduz ao “eixo do mal” por uma via retilínea. No fim das contas, foi a mídia para a qual ela trabalha que, em 2011, revelou ao mundo o caráter “maconheiro” da grande mobilização democrática que enfrentou o convênio entre a USP e a Polícia Militar.
Porém, observando o conteúdo específico da gafe da CBN, não podemos deixar de encontrar na palavra da própria reitoria da USP um fundamento primeiro para a imagem que nela se manifestou. Com efeito, foi o próprio Rodas, reitor da USP, o primeiro a comparar publicamente a Universidade com “os morros do Rio de Janeiro” em uma entrevista dada no início da sua gestão a um programa sensacionalista da Rádio Bandeirantes:
A comparação deu-se em ocasião de uma greve de funcionários com ocupação da reitoria. A entrevista inaugurou, por uma parte, um estreito relacionamento com o mais vulgar da mídia, que se manteria até hoje. Mas também preparou o terreno para a escalada repressiva que ainda tem expressão no malfadado convênio entre a USP e uma das polícias mais letais do mundo, a PM paulista. Ou para a presença, na Superintendência de Segurança da Universidade de um coronel da PM que se dá ao luxo de comparar, publicamente e com impunidade, estudantes em greve ao PCC.
Por isso, tentativas jornalísticas como a que nos ocupa fazem parte de uma ameaça constante contra toda ação coletiva de contestação. Desta vez, ganhou a forma do ridículo.
[1] Não existe, na USP, uma Faculdade de Letras. A repórter se encontrava no prédio dos departamentos de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Adrián Pablo Fanjul é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
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