A Folha e a democracia da mandioca
O jornal da família Frias que cunhou o termo ’ditabranda’ para o regime militar instaurado com o golpe de 1964, fuzila agora o princípio das eleições livres como um ‘fetiche democrático’.
Foi esse o título do seu editorial mais importante na sexta-feira (04/09)
O alvo, a reivindicação dos alunos da USP, que ocupam a reitoria do campus há três dias, em defesa de eleições diretas e paritárias para escolha do novo reitor da instituição.
O editorial admite que o sistema vigente de lista tríplice, obtida de dois mil votantes, numa comunidade formada por mais de 100 mil pessoas, não é dos mais representativos.
Nele, o governador do Estado, na verdade, escolhe quem bem entender.
Em 2009, por exemplo.
O candidato mais votado pelo corpo discente, o físico Glaucius Oliva (161 votos), foi preterido pelo então governador José Serra, que optou pelo atucanado João Grandino Rodas (104 votos).
Serra, como se sabe, excede no quesito manipulação em qualquer modalidade. Mas o sistema o sanciona.
O editorial da Folha ‘esquece’ o episódio, naturalmente.
E excreta o mesmo elitismo de seu tucano de estimação, ao questionar a pertinência, no âmbito universitário, do princípio democrático que assegura a cada cidadão um voto.
“Embora mais numerosos, alunos e servidores não constituem o núcleo produtivo da universidade. É de perguntar, portanto, se a academia teria a ganhar com a paridade entre os eleitores, ou se, como soa mais provável, sairiam vencedores os pleitos estudantis e funcionais --decerto legítimos, mas menos afeitos à finalidade da instituição”, argui o jornal.
É de se perguntar se o jornal lê o seu próprio noticiário.
Se o fizesse saberia que, ao abrigo de seleto critério eleitoral, a Universidade de São Paulo acaba de perder 68 posições no ranking The Times Higher Education, o principal ranking desempenho das universidades atualmente.
“A instituição paulista passou do 158º lugar no ano passado para um grupo que vai do 226º ao 250º na nova lista do THE (Times Higher Education), publicação anual britânica divulgada desde 2004. A USP, que já figurou entre as 200 melhores instituições de ensino, caiu para o grupo que está entre as posições 226 e 250” (Folha de SP, Cotidiano 04/09).
É de se perguntar, ademais, se a família Frias lê os seus próprios editoriais.
Se sim, cabe arguir se na escolha dos chefes da redação, o “núcleo produtivo” da empresa, os jornalistas, são reconhecidos como titulares do direito qualificado de eleger os ocupantes dos cargos.
A fragilidade da argumentação elitista não precisa ser espancada para evidenciar limites.
O expurgo das maiorias da cabine eleitoral é apenas uma velha aspiração conservadora.
Na Constituinte abortada de 1823, que deveria elaborar a 1ª Carta pós- Independência, propunha-se que o voto fosse uma derivação da propriedade da terra.
O recorte mínimo para obter ‘um título’ de eleitor seria uma renda equivalente a 150 alqueires de mandioca.
Afinal, que consistência teriam as escolhas do novo regime, se contaminadas pela opinião de uma maioria, como lembra a Folha, desprovida de outros cabedais, que não os interesses imediatistas, alvoroçados então pela lombriga da pobreza?
O pensamento amarelecido expresso no editorial do modernoso veículo da Barão de Limeira filia-se monotonamente à tradição de um país que deixou de ser colônia, sem abdicar da senzala.
Em 1888, quando libertou os negros, a elite sonegou-lhes a cidadania ao descartar uma reforma agrária emancipadora.
Cento e vinte e cinco anos depois,ela continua demonizada nas páginas de ‘Folha’.
Abolição feita, o grau de instrução virou a mandioca da vez: analfabetos foram impedidos de frequentar a cabine eleitoral até quase o final do século 20.
Foi só em 1988, com a Constituinte Cidadã, ora completando 25 anos, que o Brasil universalizou o direito ao voto.
A contragosto, diga-se.
Endinheirados e seu sistema emissor volta e meia ressuscitam a saudosa métrica da mandioca.
Na recaída, o vassourão elitista cuida de expurgar novamente os pobres da cabine eleitoral.
Nos protestos de junho, por exemplo, quando a Presidenta Dilma foi à raiz do problema e defendeu um plebiscito para definir as bases da reforma política, a revista ‘Veja’ não hesitou.
Rasgou a cartolina da figuração democrática e apertou o gatilho do velho trabuco que a anima: a proposta de plebiscito de ‘Veja’ incluía uma consulta para cassar o direito de voto “de quem recebe dinheiro do governo”.
Os Civitas, que embolsam milhões vendendo suas publicações para o governo tucano de São Paulo?
Não. O alvo eram os 14 milhões de lares beneficiados pelo Bolsa Família e outros programas sociais.
Algo como uns 25 milhões de eleitores mais pobres do país.
O que está em causa, portanto, quando a elite brasileira discute democracia, são interesses elevados.
Em nome de uma singular concepção de pureza política –que, diga-se, encontra aderência em togas e ambientalistas imaculados-- Folha, Veja e assemelhados, querem expurgar fetiches e excessos que, levados ao pé da letra, tornam o regime perigosamente vulnerável aos instintos primários da plebe rude.
A precaução da mandioca, de 1823, vale para a USP de 2013, diz a Folha.
Postado por Saul Leblon
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