Restaram canhões e espiões



Projeto do governo brasileiro para criar regras internacionais para a espionagem eletrônica é mais relevante do que parece

Tratado com pouco caso e mesmo ironia, o projeto do governo brasileiro para criar regras internacionais para a espionagem eletrônica é mais relevante do que parece.

À primeira vista, parece uma ideia sem sentido. Deixando claro que não admite a hipótese de abrir mão do direito auto atribuído de vigiar povos e países à revelia de seus governos, Barack Obama chega a dizer que a espionagem é uma alternativa preferível às operações militares diretas. Seria um mal menor.


Do ponto de vista de quem espiona, seria uma opção indolor, mais civilizada do que bombardeios, menos complicada de impor a uma população cada vez mais hostil a aventuras militares no estrangeiro.

Do ponto de vista de quem é espionado, ela implica em ataques à soberania e ameaça a direitos. Invisível, é quase impossível de combater. Seu efeito daninho é inegável. Permite um grau infinito de manipulação nas relações internacionais, já que uma das partes tem acesso aos segredos da outra.

A melhor atitude seria cruzar os braços e conformar-se com essa situação?

Seguindo este raciocínio seria pura ingenuidade tentar obrigar o governo dos Estados Unidos, titular de um orçamento militar sem comparação no planeta, aceitar regras que contrariem seus interesses. Parece óbvio, já que as relações entre os países não se alimentam de declarações gentis,  mas envolvem um conflito permanente de interesses econômicos e conveniências  políticas. A tese não esgota a  discussão, porém.

Se é impossível adivinhar o que Washington pretendia exatamente  quando convidou Dilma Rousseff para uma visita de Estado, é fácil reconhecer que a reação de Brasília, ao cancelar a viagem, representou uma derrota para o governo americano.

Quaisquer que fossem os projetos dos EUA para o futuro das relações com o Brasil, eles terão de ser repensados e reformulados por causa da espionagem. Sua diplomacia perdeu boa parte da capacidade de iniciativa em relação a principal liderança regional – e isso não é pouca coisa, ao contrário do que poderia o  complexo de  vira lata.

Existem benefícios e acordos que os países só podem assinar quando recebem um tratamento de nação amiga. Isso ficou um pouco difícil, digamos,  com a descoberta de que, em sua intimidade, o governo americano cultiva uma postura hostil em relação ao governo brasileiro. Essa situação agravou-se um pouco mais diante da recusa em revelar, após o escândalo, quais segredos haviam sido capturados e até partilhados com aliados preferenciais, a começar pela Inglaterra, que também tiveram acesso aos bastidores secretos do Brasil. Alimentada, em grande parte, por várias camadas geológicas de lealdade mútua das diplomacias, tanto a espionagem como a reação posterior tiveram um efeito didático sobre as preferencias reais de Washington.

Outra consequência foi atualizar o debate sobre a necessidade do governo brasileiro reforçar medidas destinadas a proteger seus segredos e a privacidade de seus cidadãos. A visão de que, com o fim da Guerra Fria, passamos a conviver num planeta alimentado por princípios democráticos e respeito mútuo pelos direitos dos povos, tão cara ao conservadorismo de todas as latitudes, revelou-se um lamentável conto do vigário ideológico.

Não precisamos exagerar nas ilusões. É óbvio que acordos de igualdade entre países desiguais raramente são cumpridos  pela parte mais forte. As folhas de papel não costumam ter prioridade sobre diferenças econômicas, políticas e militares. Isso vale para o comércio, para o meio ambiente, para energia nuclear e para a espionagem -- que deve ser vista como aquilo que é, um passo inicial para práticas de dominação.

A experiência histórica ensina que estes acordos podem ser úteis, justamente, para proteger os direitos da parte mais fraca. Criam obrigações que podem gerar punições às nações faltosas. Permitem que a legitimidade de um organismo internacional – como a ONU – possa ser empregada como instrumento de pressão contra a mais forte. Resolvem? Dificilmente.

Mas um acordo pode ajudar na exata medida em que pode constranger. Reforça o isolamento de quem age por conta própria. Pode estabelecer limites que possivelmente serão desobedecidos – mas que podem gerar medidas punitivas quando isso for descoberto e denunciado.

A diplomacia gera comentários impacientes por parte de quem foi educado para admirar gestos heroicos e mudanças instantâneas.

Mas o simples debate sobre a situação pode ter efeitos positivos. A denúncia da participação americana em golpes militares na América Latina, nos anos 60 e 70, levou a uma didática lavagem de roupa suja de seus diplomatas e adidos militares comprometidos com rupturas antidemocráticas. As iniciativas golpistas não terminaram mas se tornaram mais sinuosas e mais difíceis. O retorno às práticas  democráticas se tornou mais urgente e mais fácil.

Criada no final da Segunda Guerra como um quadro de negociação internacional para impedir aventuras  semelhantes ao nazismo, a própria ONU, hoje em dia, tem muito de fantasia e pouco poder real. Costuma ser desmoralizada de modo regular pela postura imperial do governo americano.

Seria o caso de propor seu abandono em nome de uma visão crua e realista das relações internacionais?

Claro que não. A ONU tornou-se um estorvo porque a humanidade evoluiu, para melhor, nos últimos 50 anos.

Os esforços norte-americanos para esvaziar a ONU  são uma reação a essas mudanças.

Pretendem  construir uma ordem mundial com base em sua diplomacia unilateral, para reorganizar o mundo e suas riquezas conforme as conveniências e interesses de sempre.

Desse ponto de vista, uma entidade onde cada país tem direito a um voto só pode tornar-se um obstáculo a ser combatido. Será ainda mais combatida se abrir espaço para uma partilha mais equilibrada de seu sistema de poder, que envolve os acentos permanentes no Conselho de Segurança.

Não se critica a ONU porque é, muitas vezes, ineficiente para atingir compromissos humanitários nem porque foi incapaz de construir uma situação internacional mais harmônica. Ela é criticada por suas virtudes, na verdade.

A principal é ter-se transformado num obstáculo civilizado aos projetos hegemônicos norte-americanos. O esforço para desmoralizar a ONU  pretende desmoralizar toda tentativa de negociação internacional, toda tentativa de criar uma força capaz de resistir – mesmo numa posição de fraqueza relativa, quem sabe apenas simbolicamente, ou quase.  

O debate sobre espionagem coloca-se neste ambiente.

Aos céticos, cabe perguntar: quem poderia imaginar que, após tantas guerras e tanta carnificina, seria possível construir um código de guerra e definir direitos de prisioneiros que décadas antes eram executados e empilhados em valas comuns,  sem piedade?

Também podemos ouvir, até hoje, os risos irônicos que acompanharam a Carta dos Direitos Humanos da ONU que proibia a tortura.

Nem os crimes de guerra nem a tortura deixaram de ocorrer, é verdade. O próprio George W. Bush, que assumiu o governo no inicio do século XXI, assinou decreto legalizando a tortura. Nenhum oficial responsável pelas masmorras de Bagdá foi punido. Guantanamo permanece escandalosamente intocável.

Mas as cláusulas que definem a proibição da tortura e pedem respeito aos direitos humanos representam um avanço em direção a um mundo em que seria melhor viver. Sinalizam uma forma de resistência.

O debate, no fundo, é este. Num planeta em mudança e grandes deslocamentos, onde a riqueza muda de mãos e de geografia, a dominação americana, uma herança do século XX, só pode manter-se com apoio num máquina militar – onde a espionagem tem papel essencial – mais espalhada e cada vez mais poderosa. Não é opção. É o destino desenhado pelas forças que comandam o Estado daquele país.

Por causa dele, Barack Obama não tem o que dizer a respeito – pode sorrir amarelo, mudar de assunto e, é claro, preparar uma nova guerra. Também pode contar com sorrisos irônicos que criam desânimo.

Na delicada realidade em que vivemos, falta capacidade,  a Washington, para retirar o mundo do precipício econômico em que seus bancos de investimentos jogaram a humanidade.

Segundo estimativa de dois economistas norte-americanos, formulada a partir de dados da Receita Federal, os ricos, os célebres 1% da pirâmide de renda, embolsaram 95% dos ganhos da recuperação. Aquela camada de 0,1% de milionários, com rendas anuais superiores a US$ 1,9 milhão, ficaram com 60% dos ganhos. Este é o horizonte, hoje.

Restaram os canhões e os espiões.

Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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