Papa prepara “uma reviravolta” na Igreja


Teólogo Anselmo Borges leu na entrevista de Francisco o prenúncio de uma Igreja “menos moralista” relativamente a práticas como o aborto. Isilda Pegado lembra que este continua, porém, a ser pecado para a Igreja.
Francisco deu a sua primeira grande entrevista ao fim de seis meses de papado REUTERS


Uma “reviravolta na Igreja” é como o teólogo Anselmo Borges classifica a entrevista do Papa Francisco divulgada na quinta-feira por várias revistas jesuítas, incluindo a portuguesa Broteria.

“O Papa quer recentrar a Igreja no Evangelho. O que ele diz na entrevista é que, antes da religião, está esta busca pela justiça e pela felicidade das pessoas”, sublinhou o teólogo, aplaudindo de pé a crítica que o novo Papa faz ao “moralismo” e ao “legalismo” reinantes entre os membros da Igreja.

“Ele diz que o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, ou seja, a Igreja não pode continuar obcecada por temas como o sexo, não pode estar constantemente centrada nisso.”

Dando provas de uma postura inédita, Francisco faz questão de recusar para si e para a Igreja o papel de juízes relativamente a comportamentos como a homossexualidade e práticas como o aborto.

“Se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la […]. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível”, afirmou o Papa, apelando a uma postura mais compassiva, até porque “o confessionário não é uma sala de tortura, mas lugar de misericórdia”.

Depois de ter lido estas linhas, Anselmo Borges vê a defesa de uma Igreja “mais compassiva e menos julgadora”, capaz de abarcar “as pessoas feridas no sentido moral em vez de as excluir”. O que o teólogo não viu foi uma clarificação sobre se a Igreja “aceita ou não o exercício da homossexualidade” nas mesmas condições da heterossexualidade.

“Acho que ele não se pronunciou claramente sobre isso, pelo menos não do mesmo modo que defendeu recentemente a integração plena dos divorciados recasados, no sentido de eles poderem comungar como todos os outros”, conclui Anselmo Borges.

O lugar das mulheres na Igreja
Relativamente ao aborto, a postura do Papa é igualmente compassiva: “Penso também na situação de uma mulher que carregou consigo um matrimónio fracassado, no qual chegou a abortar. Depois esta mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos. O aborto pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de avançar na via cristã. O que faz o confessor?”, interpela o Papa, depois de sublinhar que a grandeza da confissão consiste no “facto de avaliar caso a caso e de poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa que procura Deus e a sua graça”.

O que Isilda Pegado, presidente da Federação Portuguesa pela Vida, que se tem batido contra a descriminalização do aborto, vê de novo nestas palavras é a linguagem, mais do que uma alteração da postura da Igreja. “A postura de fundo é a mesma, isto é, não deixa de haver no aborto a destruição de uma vida humana a que a Igreja se opõe”, interpreta.

Porque a Igreja “não é só para virtuosos, mas para os pecadores também”, a activista antiaborto sublinha que o Papa pressupõe, no exemplo que dá, o arrependimento da mulher. “É uma questão bem diferente de o homem tornar o acto que é negativo em positivo”, frisa. E insiste que o que o Papa Francisco está a dizer “é que a Igreja não deve excluir as pessoas que cometeram erros”. Com uma linguagem diferente, sim. “Nova, bonita, mais adequada ao século XXI”, adjectiva.

Embora assumidamente defensor de uma presença feminina “mais incisiva na Igreja”, o Papa é pouco taxativo quanto à sua tradução prática. Ao mesmo tempo que defende que “o génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes”, Francisco rejeita o que classifica como “machismo de saias”, parecendo com isso descartar a ordenação sacerdotal das mulheres. “Não me pareceu aberto a essa possibilidade”, interpretou Anselmo Borges.

“Acho que ele ainda não sentiu que tenha forças para dar acesso total às mulheres”, concorda Maria João Sande Lemos, do movimento Nós Somos Igreja, que se vem batendo há vários anos pela ordenação sacerdotal das mulheres. “Tenho pena que ele não tenha ido por aí, mas penso que esta guerra deve ser das mais difíceis e, por isso, imagino que ele sinta que tem de ir com cuidado.”

Para esta responsável, “enquanto o celibato dos padres não deixar de ser obrigatório, a ordenação das mulheres sairá sempre prejudicada”. Porquê? “Enquanto no subconsciente das hierarquias da Igreja as mulheres continuarem a ser o demónio e a representar o pecado, será difícil dar passos no sentido da plena igualdade”, responde.

“As mulheres já assumiram na sociedade civil a plenitude da sua cidadania, só na Igreja é que continuam a ser cidadãs de segunda”, sublinha ainda Maria João Sande Lemos. Mas, apesar de ter detectado um tom algo paternalista” nas palavras de Francisco relativamente a esta questão, a activista considerou a entrevista “excelente”.

“Acho que o que ele está a fazer é uma preparação da Igreja, da hierarquia e dos católicos mais à direita. Não quererá ter muitas frentes de batalha em simultâneo”, interpreta.

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