O STF e a nudez do rei



Barroso e Zavaski terĆ£o uma trajetĆ³ria semelhante Ć  de Fux? Ou irĆ£o demonstrar mais apego aos princĆ­pios que defendem?

NinguĆ©m quer enxergar uma verdade simples sobre o Supremo Tribunal Federal. Como acontece naquela fĆ”bula em que sĆ³ um menino – em sua inocĆŖncia – consegue avisar a populaĆ§Ć£o do reino que o rei estĆ” nu, a votaĆ§Ć£o de 6 a 5 a favor dos embargos infringentes demonstrou uma verdade que poucas pessoas sĆ£o capazes de enxergar: aqueles ministros que, liderados por Joaquim Barbosa, assumiram o compromisso pĆŗblico de condenar os rĆ©us do mensalĆ£o a penas altĆ­ssimas, Ć  altura do “maior escĆ¢ndalo da histĆ³ria, encontram-se em minoria.

Vamos pedir ajuda Ć  matemĆ”tica e Ć  polĆ­tica. Hoje a maioria liderada por Joaquim reĆŗne cinco votos, os mesmos que asseguraram as condenaƧƵes no ano passado. Muitas daquelas penas foram obtidas por 7 votos, mas essa vantagem desapareceu com duas aposentadorias e novas indicaƧƵes.



Comparando os times que votaram nos embargos, Ć© razoĆ”vel prever uma troca compensatĆ³ria de posiƧƵes. Celso de Mello, autor do voto tĆ£o sĆ³lido a favor do direito aos embargos, logo voltarĆ” ao time anterior, pois estĆ” convencido da culpa dos acusados.

Carmen Lucia, que ficou contra embargos infringentes, dando um voto sem informaƧƵes completas, pois nĆ£o levou em conta uma decisĆ£o definitiva do Congresso a respeito, tem como caminho natural assumir uma posiĆ§Ć£o favorĆ”vel aos acusados, na hora do debate sobre o mĆ©rito de cada embargo. Em 2012, ela foi uma das responsĆ”veis pelos quatro votos que permitem a JosĆ© Dirceu, JosĆ© Genoino e DelĆŗbio Soares, e outros cinco rĆ©us, contestar a condenaĆ§Ć£o por “formaĆ§Ć£o de quadrilha.” Carmen Lucia mudou de votos em vĆ”rios momentos do julgamento mas a situaĆ§Ć£o, agora, Ć© um pouco especial.

Qualquer movimento para mudar de posiĆ§Ć£o exigirĆ” uma ginĆ”stica difĆ­cil, pois nĆ£o estamos diante de um novo julgamento, mas diante de embargos que pretendem tĆ£o somente reduzir penas e mesmo inocentar determinados rĆ©us. Embora seja claro que todos podem mudar seus votos de culpado para inocente, Ć© duvidoso que se possa fazer o movimento contrĆ”rio. jĆ” que nĆ£o estĆ” em pauta um embargo para agravar penas e condenaƧƵes.

Em funĆ§Ć£o disso, ao debater o crime de formaĆ§Ć£o de quadrilha, que envolve diretamente 8 rĆ©us, a minoria entra no jogo com quatro votos.

Restam dois votos, trazidos por JosĆ© Luiz Barroso e Teori Zavaski. Eles vĆ£o decidir a parada. Herdeiros dos votos de Ayres Brito e Cesar Pelluso, que votaram contra os rĆ©us, eles sĆ£o vistos, em estado natural, como simpĆ”ticos aos rĆ©us.

E aĆ­ estĆ” a surpresa na roupa do rei. Se os dois votos ficarem com a minoria, os rĆ©us serĆ£o beneficiados.

Caso os dois votos se dividam, caminhando um para cada lado, o julgamento terĆ” o mesmo resultado de 2012.

Tanto Barroso como Zavaski jĆ” disseram claramente que tĆŖm crĆ­ticas importantes Ć s sentenƧas iniciais do Supremo. Barroso admitiu que discordava das penas e de muitas sentenƧas. Falou em “ponto fora da curva” quando depĆ“s no Senado, mas, na hora de votar nos embargos declaratĆ³rios, desobedeceu sua consciĆŖncia com o argumento de que nĆ£o queria afrontar o trabalho dos novos colegas embora tivesse claro o erro de sua condenaĆ§Ć£o.

Zavaski deixou claro, inclusive, que enxerga elementos para uma decisĆ£o ainda mais drĆ”stica do que os embargos. Falou em “revisĆ£o criminal,” que representa, sim, um novo julgamento. Mas, no voto sobre os declaratĆ³rios, tambĆ©m preferiu nĆ£o chocar-se com os novos colegas.

Nesta situaĆ§Ć£o, a pergunta Ć© saber se, na hora de reduzir penas, condenar ou absolver, Barroso e Zavaski serĆ£o capazes de manter-se coerentes com as convicƧƵes jurĆ­dicas que defenderam ao longo da carreira – e que manifestaram tambĆ©m quando pleiteavam, legitimamente, por uma indicaĆ§Ć£o ao STF – ou se irĆ£o corrigir-se. HĆ” antecedentes.

Indicado pela presidenta Dilma Rousseff, como os dois, o novo relator, Luiz Fux, durante sua candidatura a ministro, deixou em seus interlocutores a certeza de que seus princĆ­pios jurĆ­dicos apontavam para uma postura favorĆ”vel aos rĆ©us. Nomeado, surpreendeu muitos de seus padrinhos com a posiĆ§Ć£o contrĆ”ria.

A pergunta, agora, Ć© se Barroso e Zavaski terĆ£o uma trajetĆ³ria semelhante Ć  de Fux. Ou se irĆ£o demonstrar mais apego com os princĆ­pios que defenderam atĆ© aqui.

Esta Ć© a questĆ£o que vai decidir a aĆ§Ć£o penal 470. NĆ£o hĆ” nada que outros ministros possam fazer a respeito. Mesmo Joaquim, com todos os seus poderes de presidente, nĆ£o tem grande Ć”rea de aĆ§Ć£o, atĆ© porque colecionou poucos aliados e muitos inimigos na Corte.

Muito menos Fux. Cria-se, assim, a possibilidade de uma decisĆ£o soberana por parte do Supremo. Este Ć© o incĆ“modo. Ɖ insuportĆ”vel para muitas pessoas e imensos interesses. Quem aguenta a liberdade de consciĆŖncia de um juiz quando ela pode desmanchar uma narrativa (palavrinha chique, nĆ£o?) longamente construĆ­da depois da entrevista de Roberto Jefferson?

Quem assistiu ao massacre enfrentado por Celso de Mello sabe muito bem o que se deve esperar. Talvez um pouco mais de sangue. Celso de Mello, de qualquer forma, nĆ£o debatia uma decisĆ£o definitiva, mas o direito aos embargos. O conflito, agora, Ć© saber quem vai para a cadeia, quem terĆ” regime aberto, quem fica no regime fechado.

E claro: qual a foto serĆ” exibida na campanha eleitoral de 2014. Quem vai falar o que nos debates. Se houver uma revisĆ£o das penas, serĆ” possĆ­vel mostrar que as condenaƧƵes iniciais possuĆ­am um componente de erro e arbĆ­trio. Se tudo for confirmado, serĆ” possĆ­vel alegar que houve um julgamento justo e mesmo assim "esses mensaleiros" nĆ£o conseguiram ser inocentados.

Toda a verdade e especialmente, toda mitologia em torno do mensalĆ£o, o “maior escĆ¢ndalo de corrupĆ§Ć£o da histĆ³ria”, estarĆ” em jogo.

Em busca de um voto para mudar um placar teoricamente desfavorĆ”vel, os dois receberĆ£o tratamento impiedoso caso queriam preservar sua “isenĆ§Ć£o, imparcialidade e independĆŖncia,” como disse tĆ£o bem Celso de Mello.

Clientes antigos de Barroso serĆ£o examinados, os votos de Teori em instĆ¢ncias inferiores, onde fez sua carreira, serĆ£o revirados, num vale tudo que novamente irĆ” colocar de forma transparente o carĆ”ter subdesenvolvido e deprimente em que se debate questƵes do judiciĆ”rio em nosso PaĆ­s.

Claro que se farĆ” o possĆ­vel para criminalizar as indicaƧƵes de ambos, associando a escolha de Dilma a um interesse partidĆ”rio. Como se grandes adversĆ”rios dos rĆ©us petistas – como Joaquim Barbosa e, antes dele, Ayres Britto nĆ£o tivessem a mesma origem.

Cabe esclarecer um ponto de partida. NĆ£o acho que o judiciĆ”rio seja um aparelho polĆ­tico, que deve servir de correia de transmissĆ£o de forƧas partidĆ”rias. Mas existem pontos de contato entre as convicƧƵes jurĆ­dicas de determinados juĆ­zes e o universo polĆ­tico do paĆ­s em que residem. Ɖ assim no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, a pauta das campanhas presidenciais inclui o judiciĆ”rio e a nomeaĆ§Ć£o de juĆ­zes identificados com cada partido. Ɖ natural. Depois de eleito, um presidente irĆ” escolher juĆ­zes que em sua visĆ£o, se batem por princĆ­pios mais adequados para o paĆ­s. E Ć© bom que este debate seja feito de forma clara e assumida.


Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOƉ em BrasĆ­lia, Ć© autor de "A Outra HistĆ³ria do MensalĆ£o". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direĆ§Ć£o na VEJA e na Ɖpoca. TambĆ©m escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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